As Bruxas de Eastwick / The Witches of Eastwick

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3.0 out of 5.0 stars

Ao rever As Bruxas de Eastwick em 2004, depois de ter visto na época do lançamento, em 1987, anotei poucas frases: “Eu tinha esquecido de como é bom esse filme. Me surpreendi com o quanto ele é inteligente, sarcástico, ferino. Como todos os fantásticos atores estão bem.”

E acrescentei: “Esse George Miller é o australiano da trilogia Mad Max – não sei se eu me lembrava disso.”

Ao rever mais uma vez agora, dez anos depois, para finalmente fazer uma anotação maior sobre ele, me diverti muito, é claro. De fato, os atores fantásticos estão todos excelentes, é tudo muito bem realizado, há momentos maravilhosos, belas sacadas, diálogos inteligentes. O prazer de ver aquele trio de mulheres lindas – Cher, Susan Sarandon e Michelle Pfeiffer – não tem preço.

Mas ficou me martelando uma dúvida no fundo da cabeça: será que essa história, que afinal de contas foi criada pelo grande John Updike (1932-2009), quer dizer alguma coisa, além da brincadeira óbvia?

As três lindas mulheres pedem um homem – e são atendidas

Lembrando rapidinho a trama básica, de que todo mundo se lembra:

Na pacata, linda, arborizadíssima, pequetita cidade de Eastwick, na Nova Inglaterra, à beira mar – fundada em 1640, população 7.680 almas –, vivem três mulheres lindas, gostosas, interessantes, três boas amigas, na flor da idade madura, que estão, no momento focalizado, solitárias, carentes de companhia masculina, de amor, de afeto, de sexo.

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Reúnem-se, as três, todas as terças-feiras, para conversar, jogar cartas, tomar uns drinques. Numa noite dessas, ficam falando sobre o desejo de que chegasse à cidade um estranho, um desconhecido, um homem bonito (mas não demais), que soubesse conversar, que soubesse ser afetuoso.

Desejo feito, desejo expresso – desejo atendido: surge na cidade um milionário esquisito, que compra a mansão mais cara da região, um casarão histórico, que havia pertencido a um dos fundadores do lugar.

Vem na pele de Jack Nicholson – então no auge da fama, da glória, do estrelato na melhor das idades, antes de ficar velho (chamar a velhice de melhor idade é uma babaquice insana).

É uma espécie assim de Enviado do Diabo. Pode talvez ser o Diabo ele mesmo, uma de suas muitas manifestações. É o mesmo que negociou a alma com Fausto, a eterna juventude com Dorian Gray. O que permite se apresentar ao respeitável público, pedindo sua simpatia, no rock com letra de Mick Jagger e música de Keith Richards

Nesta sua aparição no corpo de Jack Nicholson – nos gestos largos, na boca sujérrima, nos dentes imensos, na voz ampla, ressonante –, Belzebu, o mofino, o sarnento, o sujo, o tinhoso, o tisnado vem especialmente machista. O porco-chauvinismo em pessoa. Toda a grosseria do machismo milenar acumulada num único homem.

Como o anjo da perdição do Teorema de Pasolini, interpretado pelo então jovem e belo Terence Stamp, o tinhoso de Jack Nicholson passa a rola em todo o mundo – no caso específico, nas nossas três lindas mulheres. E, se o linguajar parece chulo, é porque é mesmo, porque tenta imitar o linguajar da própria coisa ruim, que fala sem parar as palavras “dick” e “pussy”.

Passados os primeiros momentos em que há algum ciúme entre elas, as três mulheres relaxam, deixam de lado essa história de exclusividade, monogamia, e literalmente gozam muito, vivem momentos de intensa felicidade.

E aí a cidadezinha inteira cai de pau naquelas três mulheres que estão tendo um prazer pecaminoso.

Felícia (Veronica Cartwright), a dona do jornal local, que é assim uma espécie de líder da caretice, da carolice, do conservadorismo da região, começa a ter problemas comportamentais seriíssimos, por absoluta incapacidade de viver num lugar em que algumas pessoas são felizes por trepar adoidadamente.

E então, por causa disso, as três mulheres passam a pensar em se livrar do Diabo do prazer.

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Seria uma fábula sobre a repressão à sexualidade na América?

Confesso: das duas primeiras vezes que vi o filme, não fiquei procurando sentido, moral da história. Me diverti muito – e pronto.

Desta vez, fiquei de fato pensando: fora divertir os leitores com a história de três mulheres lindas que soltam as frangas com o Diabo, teria John Updike querido dizer alguma coisa com As Bruxas de Eastwick?

Teria o renomado, respeitadíssimo escritor feito uma fábula sobre a repressão à sexualidade na América em função de preceitos religiosos?

Seria As Bruxas de Eastwick uma fábula a respeito das implicações do medo do hedonismo sobre a capacidade criativa das pessoas na sociedade americana contemporânea?

Em suma, what the fuck?

O Guide des Films do mestre Jean Tulard não fornece resposta a meus questionamentos. Diz ele: “Na paisagem linda de Eastwick vivem três mulheres livres e independentes, Alexandra, Jane e Sukie, que sonham com o companheiro ideal. Ele se apresenta sob a forma de um milionário excêntrico, Daryl Van Horne. Mas Felicia Alden, antes de (eu censuro a informação por considera-la spoiler), avisa: é o diabo. Nossas três feiticeiras, depois de alegres festejos, vão tentar romper a magia negra. (E aí o texto adianta mais um spoiler.) Updike forneceu a Miller o pretexto de uma comédia fantástica. Jack Nicholson é finalmente um demônio ‘bom diabo’”.

A última frase é interessante. (Nunca há um verbete no Guide de Jean Tulard que não tenha algo interessante.)

De fato: em O Iluminado/The Shining (1980), de Stanley Kubrick, com base no livro de Stephen King, Jack Nicholson tinha feito uma criatura do mal, o mal em si. Aqui, ele é o Diabo – mas um diabo bom, que apareceu ali para atender ao chamado de três mulheres lindas, sedutoras. E ele dá a elas o que elas querem: sexo, companhia, diversão.

O Diabo veio porque foi chamado. A culpa, afinal de contas, se há culpa, é de quem o chamou.

Será esta, então, a moral da história: devemos tomar cuidado com os nossos desejos, porque eles podem se tornar realidade?

O roteirista tomou muitas liberdades ao adaptar o livro

Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Fantasia animada, colorida, sobre três mulheres com fome de homem numa cidade de cartão postal da Nova Inglaterra que, sem saber de seus próprios poderes de bruxaria, evocam o homem máximo: o diabo. Atuações magnéticas e produção de primeira mantém o interesse do espectador o tempo todo, embora o filme passe bruscamente de fantasia sensual para farsa de humor negro e para terror total, e termine não fazendo muito sentido.”

zzeast4Hum… Nada mal, a resenha do autor do guia de filmes mais vendido do mundo. Ele informa ainda que é “livremente adaptado” do livro de John Updike. O que indica que o roteirista Michael Cristofer tomou muitas liberdades ao adaptar a história original.

Dou uma rápida olhada na filmografia de Michael Cristofer, e ela não é lá essas coisas, não. Entre os roteiros que ele assina estão o de Fogueira das Vaidades (1990), em que a história trágica, apavorante, criada por Tom Wolfe foi transformada numa comédia, e Pecado Original (2001), uma adaptação que me pareceu bem ruim do mesmo livro de Cornell Woolrich que inspirou Truffaut a fazer A Sereia do Mississipi (2001).

A partir de um trecho, o roteiro se afasta bastante do que Updike escreveu

The Witches of Eastwick, o livro, foi lançado por John Updike em 1984. O próprio autor definiu a obra como uma tentativa de acertar as contas com as suas “detratoras feministas”. Hum… Tentativa perigosa. As feministas podem ter passado a odiar ainda mais o escritor depois que ele criou esse Diabo que, como já disse antes, é o suprassumo do machismo mais imbecil que se pode conceber.

zzeast0Nunca soube disso: em 2008, Updike publicou The Widows of Eastwick, mostrando a vida de Alexandra, Jane e Sukie já velhinhas e, como diz o título, viúvas. Foi a última novela que o autor publicou.

Pelo que diz a Wikipedia em inglês, o roteiro do filme segue bem próximo da trama criada por John Updike até um certo momento – e, a partir aí da metade, se distancia brutalmente do original. Eis o resumo da trama na enciclopédia:

“A história, passada na cidade fictícia de Eastwick, em Rhode Island, segue as bruxas Alexandra Spofford, Jane Smart, and Sukie Rougemont (os papéis, respectivamente, de Cher, Susan Sarandon e Michelle Pfeiffer), que adquiriram seus poderes após deixar ou serem deixadas por seus maridos (embora Alexandra seja viúva). A confraria das três é perturbada com a chegada de um tipo que parece o diabo, Darryl Van Horne. O misterioso Darryl seduz cada uma das mulheres, encorajando-as a usar todos os seus poderes e criando um escândalo na cidade. As três mulheres dividem Darryl em relativa paz…”

Então: até aqui, livro e filme são bem parecidos – embora no filme as três mulheres não tivessem, a princípio, conhecimento de seus poderes de bruxa.

Mas, a partir daqui, a história do livro se distancia demais da mostrada no filme:

“As três mulheres dividem Darryl em relativa paz até que ele, surpreendentemente, se casa com uma jovem inocente, Jenny. Elas resolvem se vingar da moça, fazendo com que ela tivesse câncer.”

Credo, que horror. Mas tem mais lógica do que o que acontece no filme com a pobre coitada da Felicia, cujo único crime é ser careta, carola.

Aliás, como trabalha bem nesse papel triste e difícil a atriz Veronica Cartwright.

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Roger Ebert chama a atenção para as sobrancelhas de Jack Nicholson

Prossegue o verbete da Wikipedia sobre o livro: “Updike descreveu sua novela como sendo ‘sobre o poder feminino, um poder que a sociedade patriarcal sempre negou’. Muitos estudiosos viram o livro como fortemente pró-feminista, ‘uma inteligente união com o feminismo e um raro caso de novelista masculino escrevendo pelo ponto de vista das mulheres’. Alguns expressaram a preocupação de que o livro pode ser misógino, já que ele parece reforçar as concepções patriarcais de mulheres como bruxas e de mulheres necessitando de um homem para poder crescer; outros acham que o livro pode ser mais uma sátira dessas idéias.”

É. O terreno em que a história trafega é mesmo pantanoso, perigoso. A qualquer momento pode-se cair na areia movediça.

Roger Ebert, o crítico que gostava de filmes e de ver filmes, deu 3.5 estrelas em 4. O texto dele é delicioso:

“Tudo é feito com sobrancelhas ambidestras. Jack Nicholson pode elevar apenas uma de suas sobrancelhas para expressar sua intenção de escapar da prisão após cometer um crime, ou ele pode elevar as duas em uníssono para indicar seu delírio quando ele já conseguiu escapar. Nos anais da linguagem corporal, o dele pode ser um talento pequeno, mas é crucial, porque faz com que conspiremos com Nicholson; ele está dividindo seu encanto vulgar conosco.

“Ele faz muito isso em The Witches of Eastwick, em que ele interpreta o diabo – um papel para o qual nasceu. Ele se descobre em Eastwick, uma sonolenta cidadezinha da Nova Inglaterra, depois de ter sido invocado por três entediadas donas de casa que não encontraram aquilo que procuram entre a população masculina local. Nicholson é exatamente aquilo que elas estavam procurando porque, por definição, ele pode ser todas as coisas para todas as pessoas.”

E bem mais adiante:

The Witches Eastwick é baseado na novela de John Updike, o que deve ter sido um campo minado para George Miller, o diretor. Fantasias em geral ficam melhores nas páginas do que na tela, porque na imaginação elas não parecem tão ridículas quanto às vezes são ao ser reduzidas a imagens. Há momentos em The Witches Eastwick que se esticam de forma nada confortável – o clímax do filme, por exemplo, é exagerado –, mas ainda assim em muitos momentos este filme parece uma história plausível sobre pessoas implausíveis. As atuações garantem isso. E as sobrancelhas.”

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“Jack Nicholson esperou a vida inteira por um harém como aquele”. Bem, qualquer homem…

Pauline Kael diz que o personagem de Jack Nicholson é tão repulsivo que chega a ser engraçado – “ele é um bufão inspirado”. “As três belas cujos desejos de um homem combinados é forte o suficiente para trazer esse diabo de Nova York para a cidade (fictícia) de Eastwick, na Nova Inglaterra, são Cher como uma escultora, Susan Sarandon como uma celista e professora de música e Michelle Pfeiffer como uma repórter. (Uma morena, uma ruiva e uma loura, elas perderam seus maridos por morte, divórcio ou deserção.) Metade das cenas não faz muito sentido, e as do final poderiam vir com um letreiro: ‘Precisa-se desesperadamente de um final’. Mas mesmo nos seus momentos mais lixo o filme vai em frente. E essas três mulheres são um trio maleável – não há qualquer problema com os ossos de ninguém ali. Nicholson esperou a vida inteira por um harém como aquele.”

Hêhê. Estava num dia de especial bom humor, a primeira dama da crítica americana.

De fato: que harém, meu.

Só lembrando um pouco, rapidinho. Em 1987, o ano de lançamento do filme, tanto Cher quanto Susan Sarandon estavam no esplendor dos seus 41 aninhos (elas são de 1946). Michelle Pfeiffer é bem mais nova, de 1958, e estava portanto com 29. Uma criança.

Michelle Pfeiffer estava se transformando numa estrela de primeira grandeza, depois de Scarface (1983), Um Romance Muito Perigoso (1985) e O Feitiço de Áquila (1985).

Cher já era uma estrela da música fazia mais de duas décadas, e, no cinema, vinha de dois grandes sucessos, Silkwood – O Retrato de uma Coragem (1983), pelo qual foi indicada ao Oscar de atriz coadjuvante, e Marcas do Destino/Mask (1985), pelo qual teve indicação ao Globo de Ouro de melhor atriz em drama.

Susan Sarandon também já tinha uma carreira consolidada, depois de diversos filmes de sucesso ou de público ou de crítica: A Primeira Página (1974), Quando as Águias se Encontram (1975), The Rocky Horror Picture Show (1975), O Outro Lado da Meia-Noite (1977), Pretty Baby (1978), No Limite do Paraíso (1979), Atlantic City (1980), Fome de Viver (1983).

Com bruxas como essas três, para que raios ficar procurando significados profundos para a história do encontro delas com o diabo?

Anotação em novembro de 2014

As Bruxas de Eastwick/The Witches of Eastwick

De George Miller, EUA, 1987

Com Jack Nicholson (Daryl Van Horne), Cher (Alexandra Medford), Susan Sarandon (Jane Spofford), Michelle Pfeiffer (Sukie Ridgemont),

e Veronica Cartwright (Felicia Alden), Richard Jenkins (Clyde Alden), Keith Jochim (Walter Neff), Carel Struycken (Fidel), Helen Lloyd Breed (Mrs. Biddle), Caroline Struzik (Carol Medford)

Roteiro Michael Cristofer

Baseado no romance homônimo de John Updike

Fotografia Vilmos Zsigmond

Música John Williams

Montagem Hubert de la Bouillerie e Richard Francis-Bruce

Produção Warner Bros., The Guber-Peters Company, Kennedy Miller Productions. DVD Warner Bros.

Cor, 118 min

R, ***

8 Comentários para “As Bruxas de Eastwick / The Witches of Eastwick”

  1. Me diverti horrores quando vi o filme pela primeira vez! E sua postagem criou a vontade de assistir de novo. Tenho dúvidas se ainda existe na videolocadora do meu bairro…

  2. Espetáculo de filme e de texto sobre ele. Assinaria em baixo, não fosse impróprio tomar para si uma obra literária. A análise em detalhe, o enaltecimento da beleza das divas, o divino endemoniado. Um filme para todo o sempre. Revê-lo, uma obrigação.

  3. Uau, Marco! Caramba, isso é o que eu chamo de ganhar o dia, a semana, o mês.
    Olhe, muitíssimo obrigado por sua extrema gentileza.
    Espero que você tenha interesse em voltar ao site para ler sobre outros filmes.
    De novo, muitíssimo obrigado. Um abraço!
    Sérgio

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