O casal Ruth Gordon e Garson Kanin escreveu o roteiro de A Costela de Adão, de 1949, especialmente para seus amigos Katharine Hepburn e Spencer Tracy, assim como faria também com o roteiro de A Mulher Absoluta/Pat and Mike, que o mesmo George Cukor dirigiria três anos depois.
Kate e Tracy, no entanto, só aparecem na tela quando o filme está com quase seis minutos. Nos primeiros cinco minutos, após os rápidos créditos iniciais, vemos uma tragédia familiar, interpretada por três grandes atores: Judy Holliday, Tom Ewell e Jean Hagen.
Doris Attinger (Judy Holliday, na foto acima) segue o marido, Warren (Tom Ewell), pelas ruas de Nova York. Segue de longe, sem que ele perceba. Fica de tocaia diante do prédio em que ele trabalha. Quando ele entra num edifício residencial, vai atrás. Tira da bolsa um revólver, dá uma olhada num folheto, um guia de como atirar, e entra no apartamento. O marido está com a amante, Beryl Caighn (o papel de Jean Hagen).
O que está acontecendo é uma tragédia, mas o tom do que vemos na tela é de farsa. Os três ótimos atores estão todos over-acting, fazendo muito mais caretas e gestos largos do que seria admissível – Cukor encena a tragédia familiar como algo grotesco, canhestro, ridículo. Muitas vezes a vida tem situações assim: trágicas – mas ao mesmo tempo grotescas, canhestras, ridículas.
Doris atira. Atira uma, duas, três, várias vezes. Só uma das balas atinge o marido infiel. Ele cai no chão. A amante grita, a mulher traída arregala os olhos diante do fato de que uma das balas que fez disparar do seu revólver deixou o marido no chão.
Corta, e vemos a notícia estampada nos jornais. Os jornais contam que esposa traída foi até o ninho de amor do marido infiel, flagrou-o com a outra e tentou matá-los; só um tiro acertou o marido, no ouvido, de raspão.
Corta, e vemos uma criada levando a bandeja de café da manhã, na qual há lugar para os jornais matutinos, para perto do quarto do casal.
Adam e Amanda se amam de paixão – mas vão lutar um contra o outro no tribunal
E aí, sim, vemos, depois de cinco minutos de filme, o casal mil do cinema de Hollywood – Spencer Tracy e Katharine Hepburn.
Ele, Adam Bonner, veremos logo em seguida, é assistente do promotor de Nova York. Ela, Amanda Bonner, é advogada.
Os dois se amam de paixão. Tratam-se por Pinky (o apelido dele) e Pinkie (o dela).
Amam-se de paixão, respeitam-se, admiram-se, tratam-se de igual para igual – como deveria ser em todos os casamentos, em todos os relacionamentos.
Adam será encarregado de atuar como promotor no julgamento de Doris Attinger; deverá tentar conseguir a pena máxima pela tentativa de homicídio.
Amanda decide defender a ré. Vai basear toda a sua defesa na desigualdade entre os sexos: se um homem é infiel, tudo bem; se uma mulher é infiel, é uma puta. Se um homem atira na mulher infiel, a sociedade entende que ele agiu em defesa da honra; se uma mulher atira no marido infiel, a sociedade entende que ela é uma criminosa.
Lutar no tribunal um contra o outro não é algo que faça bem a um casamento. Nem mesmo um casamento tão bom, tão feliz, quanto o de Adam e Amanda Bonner.
Até a escolha dos nomes dos personagens é inteligente
Quando um filme é inteligente, que maravilha.
Adam Bonner. Que bela sacada até para escolher o nome do personagem. Adam, Adão, o primeiro homem que o Deus de duas das principais religiões do mundo criou. Adão, de quem Deus tirou um osso da costela para a partir dele construir um outro ser, a mulher. (Outro dia vi uma deliciosa piada: Deus criou o homem. Aí teve uma idéia melhor – e criou a mulher.)
Bonner, que remete a bone, osso – essa coisa de que somos feitos, além de carne, sonhos, esperanças, decepções, frustrações, e uma incrível capacidade de cada parte do corpo ficar doente.
Amanda. O estado de quem está amando, ou sendo amada. Bom pretexto para usar no filme a canção “Farewell, Amanda”, de Cole Porter. Não é, de fato, uma das melhores canções do genial compositor, mas encaixa bem na história. No mesmo prédio em que vivem Adam e Amanda, mora Kip (David Wayne), um pianista, compositor, que é absolutamente fã da mulher do assistente do promotor. Na verdade, Kip gostaria mesmo era de comer a adorável vizinha. E então ele compõe para ela a música que na vida real foi composta por Cole Porter.
Comédias românticas que tratavam da questão séria da igualdade de direitos
Dos nove filmes que Spencer Tracy e Katharine Hepburn fizeram juntos, entre 1942 e 1967, cinco são comédias românticas – gostosas, divertidas, engraçadas. Este A Costela de Adão é uma das comédias mais hilariantes delas, talvez a mais.
Mas é fascinante notar que esses cinco filmes, para além da graça, do humor, tratam de um assunto sério, importante, fundamental: a igualdade de direitos (e deveres) entre homens e mulheres.
Nestas sete décadas entre A Mulher do Dia/Woman of the Year, lançado em 1942, e os dias de hoje, houve avanços tremendos, colossais, em direção a essa igualdade entre os sexos. Negar isso seria não apenas desconhecimento dos fatos mas simples e arrematada loucura. Mas dizer, em sentido contrário, que a humanidade já conseguiu atingir um bom grau de igualdade dos gêneros seria da mesma forma ou ignorância ou loucura.
(É exatamente o mesmo que se pode afirmar com relação ao direito de igualdade entre as pessoas de cor de pele diferente – tema, aliás, do nono e último filme feito pela dupla Tracy-Hepburn, Adivinhe Quem Vem Para Jantar, de 1967: já se caminhou bastante para a frente, já houve melhora brutal, gigantesca, em diversas partes do mundo – mas ainda não se chegou a uma situação que poderíamos admitir como ótima, sequer muito boa.)
O que é fascinante, nas comédias da dupla, é que elas vieram antes do período das maiores conquistas do feminismo, os anos 60 e 70. Eram à frente de seu tempo, eram arrojadas, eram vanguardistas, eram libertárias. Sutilmente – mas firmemente – subversivas, batendo-se contra o status quo reinante.
Ainda hoje, mais de meio século depois das marchas feministas, da queima dos sutiãs nas ruas, nos anos 60, continuamos longe da plena igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. Não apenas há menos mulheres que homens em cargos de chefia nas grandes empresas, como a média salarial das mulheres permanece inferior à dos homens, como volta e meia demonstram diferentes pesquisas.
E muito pior ainda: na maioria dos casos, à mulher continua cabendo a tal da carga dupla, às vezes tripla de trabalho. Um imenso número de mulheres obteve o direito de trabalhar fora – mas seus maridos ainda não assumiram o dever de no mínimo partilhar em doses iguais os deveres dentro de casa. E então elas trabalham fora, e trabalham dentro, na limpeza, na cozinha, na tábua de passar, no cuidado com os filhos.
Se é assim hoje, neste admirável mundo novo da década de 2010, imagine-se nos anos 40 do século passado.
Em A Costela de Adão, um candidato a jurado é interrogado pela advogada de defesa Amanda Bonner-Kate Hepburn: – “O senhor é a favor da total igualdade de direitos entre o homem e a mulher?” O sujeito olha para a advogada com a expressão de absoluta surpresa, de absoluto choque, como se tivesse acabado de ver um ET, um alien: – “Certamente que não!”, responde ele, enojado diante de tal possibilidade acintosa, inadmissível, impensável.
Foram filmes à frente do seu tempo, arrojados, vanguardistas
Ao rever agora, mais uma vez, este delicioso filme de George Cukor lançado em 1949, fiquei pensando nisso. As comédias em que essas figuras sensacionais, Spencer Tracy e Katharine Hepburn, encenam para nos divertir com a guerra dos sexos são muito mais que isso, divertidas comédias sobre a guerra dos sexos: são também, ou no mínimo foram, no seu tempo, arrojadas, vanguardistas, libertárias proclamações a favor de um direito humano fundamental.
É sempre bom a gente se lembrar disso.
Então, antes de seguir em frente, só para lembrar, eis aí, em ordem cronológica, as comédias protagonizadas pelo extraordinário casal Tracy-Hepburn:
A Mulher do Dia/Woman of the Year, de George Stevens, 1942. Apesar de todas as imensas diferenças entre eles, dois repórteres de jornal de Nova York se apaixonam, e se casam. Mas a vida em comum não é nada fácil para Sam, repórter esportivo, um tipo simples, povão; Tess é uma mulher rica, elegante, sofisticada, especialista em política internacional, em muitas coisas superior a ele;
Sem Amor/Without Love, de Harold S. Bucquet, 1945. Na Washington da época da Segunda Guerra Mundial, Jamie Rowan se casa sem amor com o cientista Pat Jamieson, e se torna assistente dele; vão finalmente se aproximar;
Este A Costela de Adão/Adam’s Rib, de George Cukor, 1949;
A Mulher Absoluta/Pat and Mike, de George Cukor, 1952. Pat é uma atleta talentosa em vários esportes, mas, diante do namorado, erra todas as jogadas; Mike é um agente de atletas, tipo mandão e bastante malandrão; ele pensa que vai controlar a vida e a carreira dela, mas ela é uma força da natureza, e ele acabará aprendendo com ela que a vida com uma companheira à sua altura, de igual para igual, é muito melhor do que se achar o dono dos outros.
Amor Eletrônico/Desk Set, de Walter Lang, 1956. Uma história de rivalidade, competição profissional na era do início da computação; ela, Bunny Watson, dirige um banco de dados; ele, Richard Sumner, chega para implantar ali gigantescos mainframes (alguém se lembra o que era isso?) de uma empresa moderníssima, a International Business Machine (alguém se lembra desse nome? de suas iniciais, talvez?), e Bunny e suas funcionárias acham que vão perder o emprego.
As filmagens foram uma oportunidade para os amantes ficarem juntos à vontade
O casal Ruth Gordon-Garson Kanin, que assina os argumentos e os roteiros de A Costela de Adão e de A Mulher Absoluta, era, como já foi mencionado no início desta anotação, amigo do casal Kate-Tracy. Os dois casais, no entanto, eram bastante diferentes entre si. Ruth e Kanin foram casados no papel entre 1942 e 1985, o ano em que ela morreu. Já Kate e Tracy foram amantes entre 1942, quando fizeram o primeiro dos nove filmes juntos, até 1967, o ano em que contracenaram em Adivinhe Quem Vem Para Jantar e em que ele morreu. A questão era que Spencer Tracy era casado desde 1923 com Louise Treadwell; tinham dois filhos, e não tiveram jamais a idéia de se divorciar só porque aconteceu de ele encontrar, quase duas décadas depois do sagrado matrimônio, a mulher de sua vida.
Uma Mulher Fabulosa (A Remarkable Woman), a biografia de Katharine Hepburn escrita por Anne Edwards, relata que, ao longo dos anos 40, Kate preferiu descuidar de sua própria carreira para dar mais atenção a seu relacionamento com Tracy. Estava sempre à procura de roteiros que pudessem servir ao casal. “No inverno de 1948 o dia a dia da existência tinha se tornado extremamente desestimulante. Kate tinha lido dezenas de roteiros e não encontrara nenhum que pudesse servir para os dois. Tracy, quando não estava trabalhando, voltava naturalmente ao vício. Além disso, em Hollywood, Tracy tinha que levar em consideração Louise e as crianças. As aparências precisavam ser mantidas.”
Ah, sim, o vício. Spencer Tracy, um dos maiores atores do cinema americano, um dos maiores atores do cinema mundial, era viciado. Não em heroína, cocaína, haxixe, ópio. Era viciado em álcool. Cachaça. Booze. Nunca se livrou do vício.
Para o casal Kate-Tracy, ter um roteiro como o de A Costela de Adão deve de fato ter sido uma maravilha absoluta. E ainda por cima o amigo George Cukor fez questão de filmar em Nova York, e não em Hollywood. “Isso significava”, escreve Anne Edwards, “que Kate podia ficar em sua casa e Tracy no Waldorf, apenas algumas ruas adiante, e que os dois podiam ir a pé para as locações. Nova York também lhes garantia a máxima privacidade. Em Hollywood, não só a imprensa sabia o endereço dos atores, mas as companhias de ônibus de turistas também. Em Nova York havia mais turistas, mas que não estavam interessados em bisbilhotar a vida dos artistas ou suas casas”.
Três grandes atores nos papéis secundários
Leonard Maltin dá ao filme a cotação máxima de 4 estrelas: “Comédia inteligente, sofisticada (de autoria de Ruth Gordon e Garson Kanin) sobre marido e mulher da área de Direito em lados opostos no mesmo caso de assassinato. Uma das maiores comédias de Hollywood sobre a batalha dos sexos, com Tracy e Hepburn apoiados por novatos Holliday, Ewell, Hagen e Wayne. Cole Porter contribuiu com a canção ‘Farewell, Amanda’.”
Hummmm. Não se trata de um caso de assassinato, e sim de tentativa de assassinato, mas isso é um detalhe.
Mas seriam Judy Holliday, Tom Ewell e Jean Hagen propriamente novatos, newcomers?
Judy Holliday tem filmes na sua carreira a partir de 1944. No ano seguinte ao deste A Costela de Adão, 1950, viraria estrela com Nascida Ontem, que lhe deu o Oscar.
Tom Ewell teve participações minúsculas em filmes a partir de 1940, e esteve em séries de TV a partir de 1948. Tudo bem: de fato, seu primeiro papel visível, importante, foi neste filme aqui. Apenas seis anos depois, em 1955, teve a sorte grande de contracenar com Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado/The Seven Year Itch, de Billy Wilder.
Já Jean Hagen de fato estreou em A Costela de Adão, no papel da amante de Warren Attinger. No ano seguinte, 1950, estaria no elenco de O Segredo das Jóias/The Asphalt Jungle, do grande John Huston (em que Marilyn Monroe faz um pequeno papel). E em 1952 faria, com brilho, o papel da estrela do cinema mudo que tem voz de taquara rachada no clássico Cantando na Chuva; por essa interpretação, foi indicada ao Oscar.
O Guide des Films do mestre Jean Tulard diz o seguinte sobre o filme que, na França, teve o título de Madame Porte La Culotte: “A graça dessa comédia soberba tem a ver com a fabulosa troca de balas entre os dois protagonistas. O casal Tracy-Hepburn pôde se imortalizar neste filme finamente esculpido por Cukor.”
O título Madame Porte la Culotte, aprendo no dicionário, quer dizer “Madame manda mais que o marido”.
Para falar sério: quem atira em alguém merece ser condenado
Dá para falar sério sobre esta comédia – e eu gostaria de dizer que, no caso específico da tragédia familiar desses pobres, miseráveis, desafortunados Attinger, marido e mulher, eu, pessoalmente, acho que o promotor público está correto, e a advogada de defesa está errada.
Quem atira em alguém deve ser condenado pelo que fez. Mesmo se não conseguiu matar. Tentou matar, então deve ser condenado a alguma pena.
Tá certo, pode haver circunstâncias atenuantes – e circunstâncias atenuantes é o que não falta ali: não só o marido era infiel, ausente, como ainda batia na mulher.
Mas não se pode simplesmente admitir que não é crime o fato de a mulher ter atirado na direção do marido e de sua amante.
O princípio básico é a igualdade – de direitos e de deveres. Se a mulher tiver mais direitos do que o homem, então negamos todo o princípio básico.
Sempre que, em nome de uma discriminação, uma injustiça do passado, por maior que ela tenha sido, deixarmos de lado o princípio básico da igualdade, estamos ferrados.
Anotação em janeiro de 2014
A Costela de Adão/Adam’s Rib
De George Cukor, EUA, 1949
Com Spencer Tracy (Adam Bonner), Katharine Hepburn (Amanda Bonner)
e Judy Holliday (Doris Attinger), Tom Ewell (Warren Attinger), David Wayne (Kip Lurie), Jean Hagen (Beryl Caighn), Hope Emerson (Olympia La Pere), Eve March (Grace), Clarence Kolb (juiz Reiser), Emerson Treacy (Jules Frikke), Polly Moran (Mrs. McGrath), Will Wright (juiz Marcasson), Elizabeth Flournoy (Dr. Margaret Brodeigh)
Argumento e roteiro Ruth Gordon e GarsonKanin
Fotografia George J. Folsey
Música Miklós Rózsa
Com a canção “Farewell, Amanda”, de Cole Porter
Montagem George Boemler
Produção MGM. DVD Warner Bros.
P&B, 100 min
R, ***1/2
Não foi este filme que inspirou-se no divórcio do Raymond Massey??? Assisti, mas não lembro direito (lembro da Jean Hagen, minha querida Lina Lamont)…
Senhorita, você tem razão. Eis o que diz o IMDb:
“Massey’s divorce from his ex-wife Adrianne Allen was the inspiration for the 1949 film A Costela de Adão (1949). Each was represented by one half of a famous husband-and-wife team of divorce lawyers, Dorothy Whitney and her husband William Dwight Whitney. After the trial was over, the Whitneys divorced. The ex-Mrs. Whitney married Massey, and the ex-Mrs. Massey married the ex-Mrs. Whitney’s ex-husband.”