Uma bela surpresa: um fascinante filme, mistura de thriller e romance, com uma trama complexa, intrigante, atualíssima, que faz lembrar o clima dos romances de John Le Carré ou Frederick Forsyth.
Tem o ritmo, o tom, o gosto de um thriller de espionagem, de guerra fria, disputas de agências de inteligência de Estados Unidos e Europa versus Rússia – só que passado nos dias de hoje, e com a ação acontecendo em torno das operações financeiras do mundo globalizado.
Usei a expressão “surpresa” porque nunca tinha ouvido falar nele, ou no diretor Éric Rochant. Pegamos para experimentar, basicamente porque o elenco tem Cécile de France, essa atriz interessantíssima. O elenco tem ainda Jean Dujardin, que ficou mundialmente famoso graças ao imenso sucesso de O Artista, de Michel Hazanavicius, 120 prêmios, inclusive cinco Oscars, e o americano Tim Roth.
Esses grandes nomes, assim como todo o elenco secundário, estão extremamente bem. Cécile de France tem uma das melhores interpretações de sua carreira até aqui. Está absolutamente arrebatadora.
A trama, sensacional, é de autoria do diretor Éric Rochant
Quebra de Conduta, no original Möbius (vou falar desta palavra mais adiante), é daqueles filmes artesanalmente perfeitos, todos os quesitos técnicos bem cuidadíssimos. Mas o que mais impressionou de fato foi a bela trama à la John Le Carré. É surpreendente ver, nos créditos finais (não há créditos iniciais) a expressão “écrit et realisé par Éric Rochant”. O cara não apenas rege a orquestra com maestria, mas também escreveu toda a partitura.
Quem é esse Éric Rochant, meu Deus do céu e também da terra?
Roteirista, diretor, nascido em Paris, em 1961. Estudou cinema na Idhec. Seu primeiro curta-metragem, Présence Féminine, de 1987, ganhou o César de melhor curta de ficção. Em 1989, estreou no longa com Un Monde Sans Pitié, que, segundo a Wikipedia, traçava um retrato de uma juventude desencantada, e ganhou o César de melhor filme de estréia, o César de melhor ator iniciante para Yvan Attal e ainda o Prêmio Louis-Delluc.
Les Patriotes, de 1994, sobre os serviços secretos israelenses, seu terceiro longa, foi exibido no Festival de Cannes, mas foi um fracasso de público.
Fez um thriller, Anna Oz, em 1996, uma comédia, Vive la République!, em 1997, um filme de gângsters, Total Western, em 2000 – mas nenhum deles teve grande bilheteria na França. Em 2001, realizou um documentário para a TV, Traders, sobre um jovem trader do mundo financeiro globalizado e informatizado. Deve ter sido um ensaio geral para este Quebra de Conduta – que juntou o universo das finanças com o dos serviços secretos que ele havia abordado no filme de 1994.
O nome Vive la République! provocou um leve clique no meu velho disco rígido. Fui conferir, e de fato vimos o filme, Mary e eu, na TV a cabo, em 1999. Na época, só anotei os dados básicos da ficha técnica (no elenco estão Hippolyte Girardot, Antoine Chappey, Atmen Klif, Florence Pernel, Mathilde Seigner), e dei nota 2.5.
Depois de ver este Quebra de Conduta, dá vontade de rever a comédia de 1997 e procurar os demais filmes desse realizador.
O fato de o IMDb não trazer os títulos em português da maior parte dos filmes de Rochant indica que eles não foram exibidos no circuito comercial brasileiro.
Alice, a protagonista, é um absoluto gênio nas operações financeiras
A trama criada por Éric Rochant gira em torno de Alice, jovem gênio do mundo das finanças – o personagem de Cécile de France, que, em especial nas primeiras sequências, nos pareceu com um rosto bem diferente dos de outros filmes da garota belga.
Alice é um absoluto gênio nas operações financeiras. Quando a narrativa está bem adiantada, cita-se que ela trabalhou no Lehman Brothers, o banco gigantesco, o quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos, o que não podia quebrar e quebrou, em setembro de 2008, dando início à mais série crise do capitalismo desde o crash da Bolsa de Nova York em 1929.
Alice até brinca que foi ela que fez o Lehman quebrar, com suas apostas ousadas.
Francesa filha de pai americano, Alice havia sido impedida de trabalhar como trader nos Estados Unidos pela SEC, a xerife do mercado de capitais, a Comissão de Valores Mobiliários americana. E agora está trabalhando em Mônaco, em um banco pertencente a uma família de milionários russos; o dono do banco chama-se Ivan Rostovsky, e é interpretado por Tim Roth (ao centro na foto abaixo).
Logo no início da narrativa, Alice faz uma operação gigantesca envolvendo bancos espanhóis; por sua experiência, sabe que a Espanha está para enfrentar problemas sérios de solvência, e ela está apostando nisso para fazer o banco ganhar uma fortuna. Mas é uma jogada arriscada, e o seu chefe a instrui para desfazer a operação.
Com uma segurança absoluta, uma postura que beira ou ultrapassa a arrogância, ela explica ao chefe suas razões – e ele é obrigado a engolir o lance da fedelha genial.
A operação será, naturalmente, um grande sucesso, e o próprio patrão, Ivan, ficará impressionado com Alice. Convida-a para um almoço, depois para uma visita à sua mansão de magnata russo, aquela coisa que extrapola tudo o que pudermos imaginar sobre aparência de riqueza.
Uma complexa trama de espionagem e contra-espionagem no mundo das finanças
Os negócios de Ivan Rostovsky estão sendo acompanhados de perto por uma grande força-tarefa que inclui policiais especializados em fraudes financeiras de Mônaco e da França. Quem chefia essa força-tarefa é um homem com toda pinta de todo-poderoso, de quem conhece tudo, que se apresenta como Moïse (o papel de Jean Dujardin).
A suspeita, é claro, é de que as operações do banco do russo fazem lavagem de dinheiro ilegal.
E não é só a força-tarefa de Mônaco e França que acompanha as atividades de Ivan. Também as autoridades financeiras dos Estados Unidos estão de olho nele, e até mesmo a CIA, a agência central de inteligência do governo americano.
A força-tarefa aborda Alice, para convencê-la a trabalhar para eles – para conseguir informações internas dos negócios de Ivan Rostovsky. A recompensa será a permissão para que ela volte a trabalhar no mercado financeiro americano.
Até aí já há imensa complexidade. Mas a coisa é ainda mais complexa. Envolve também a FSB, a agência de inteligência da Rússia, a sucessora do que, nos tempos do Império Soviético, era a KGB.
Quando a narrativa já está bem adiantada, Ivan dirá uma frase ótima. Algo assim (não é transcrição literal, cito de memória): “A história da União Soviética é a história da disputa de poder entre a KGB e o Partido Comunista. A KGB venceu.”
Como se sabe, Vladimir Putin foi chefe da KGB. Uma imagem do novo czar de todas as Rússias aparecerá quando a narrativa está chegando ao fim.
No meio da trama intrincada, uma belíssima história de um amor impossível
No meio da trama de espionagem no mundo das altas finanças, o realizador Éric Rochant faz com que Alice e Moïse – que não é o que parece ser no início da narrativa – se apaixonem.
E é uma belíssima história de amor.
As cenas de sexo são absolutamente espetaculares.
Não, não há explicitudes, não há nada que sequer chegue perto dos quase-pornô do roteirista Joe Eszterhas, tipo Instinto Selvagem e O Fio da Suspeita.
As cenas são belíssimas por causa dos ângulos da câmara do diretor de fotografia Pierre Novion – uma câmara discreta, mais romântica, poética, do que óbvia – e da interpretação dessa extraordinária garota Cécile de France.
É de fato uma belíssima história de amor, um amor impossível. Ela me fez lembrar muito da história entre Katya, a estonteante jovem russa (o papel de Michelle Pfeiffer) e o editor inglês sem pátria nem esperança Barley (interpretado por Sean Connery) de A Casa da Rússia, de Fred Schepisi, baseado no romance de John Le Carré. E aqui me arrependo por não ter tido coragem de escrever nem sobre o filme, que revi algumas vezes, nem sobre o livro, que li com imenso prazer há não muito tempo.
Gostaria de assegurar que esse relato que fiz sobre a trama de Quebra de Conduta não tem spoilers. O que relatei aparece nos minutos iniciais do filme; o encontro de Moïse e Alice se dá quando o filme está com 25 minutos.
A partir daí haverá muitas, muitas surpresas.
Os produtores pensaram em Audrey Tautou para o papel. Mas Cécile de France está soberba
O AlloCine, o ótimo site sobre o cinema francês, cita o que eu já disse lá em cima: que o realizador Éric Rochant já havia, em 1993, com Les Patriotes, abordado o mundo da espionagem. O site acrescenta que Rochant fez muita pesquisa sobre esse universo, e leu diversos livros sobre a CIA, a KGB, os serviços secretos de França e Grã-Bretanha.
Informa-se ali também que os produtores pensaram em Audrey Tautou para o papel de Alice. Não teria sido uma má escolha. Audrey Tautou e Cécile de France são exatamente da mesma geração – a primeira é de 1976, a segunda, de 1975; suas carreiras são paralelas; as duas trabalharam juntas em Albergue Espanhol (2002).
Mas penso que a escolha de Cécile de France acabou sendo mais adequada. Sua interpretação – repito – é absolutamente brilhante.
O site francês também informa que, apesar de muitos realizadores trabalharem hoje com câmaras digitais, Éric Rochant preferiu fazer seu filme no sistema antigo, usando película de 35 mm. Segundo ele, a pele dos personagens fica melhor na película. E o filme tem muitos big close-ups da pele, em especial de Jean Dujardin e sobretudo de Cécile de France.
Bem, Möbius, o título original.
O próprio filme dá – na voz de um personagem que só aparece numa seqüência já quase no final da narrativa – a explicação sobre o que a fita de Möbius. Minha sobrinha Valéria, gênio em matemática, saberia dar uma explicação soberba. Eu, que mal sei quanto são 7 x 8, transcrevo o que diz a Wikipedia:
“A fita de Möbius ou banda de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta numa delas. Deve o seu nome a August Ferdinand Möbius. Möbius estudou este objeto em 1858 tendo em vista a obtenção de um prêmio da Academia de Paris sobre a teoria geométrica dos poliedros.”
Ficou claro?
Bem, no filme (e na fotinho aí) fica bem claro. E é um filme que merece ser visto.
Anotação em novembro de 2013
Quebra de Conduta/Möbius
De Éric Rochant, França-Bélgica-Luxemburgo, 2013
Com Jean Dujardin (Moïse), Cécile De France (Alice),
e Tim Roth (Ivan Rostovsky), Émilie Dequenne (Sandra), John Lynch (Joshua), Maksim Vitorgan (Sobchak), Brad Leland (agente da CIA), Branka Katic (Ava), Wendell Pierce (Bob), John Scurti (Honey), Michael G. Shannon (o pai de Alice), Pierre Baux (Birnbaum), Vicky Krieps (Olga), Vladimir Menshov (Cherkachin), Aleksey Gorbunov (Khorzov, o guarda-costas)
Argumento e roteiro Éric Rochant
Fotografia Pierre Novion
Música Jonathan Morali
Montagem Pascale Fenouillet
Produção Récifilms, Axel Films, Les Productions du Trésor, EuropaCorp, JD Prod, France 3 Cinéma. DVD Paris Filmes
Cor, 103 min
***
Título em Portugal: Möbius – Laço Mortal.
O filme traz bom entretenimento, com aquele “climão” de espionagem e boa pegada dos protagonistsa (Cécile e Jean). Muito bom!
Gostei muito do filme, eu gosto desse tipo de história. A trama é intrincada e exige um pouco mais de atenção, mas com a presença marcante do Jean Dujardin, isso não é difícil. Ô homem bonito! Mês passado vi um outro filme com ele, “Un balcon sur la mer”, e não gostei, só o que salvou mesmo foi sua fina estampa na tela. Você falou no Sean Connery, e o Dujardin me lembra um pouco o Sean nos seus tempos áureos de galã: o mesmo formato de rosto, tipo de nariz, boca grande. Ô lá em casa! (só o acho meio envelhecido para quem tem apenas 41 anos. Aposto que é o cigarro). Nesse caso, os big close-ups do diretor desfavorecem os atores, pois escancaram as rugas, marcas do tempo etc.
A Cécile de France está mesmo com o rosto diferente, demorei a me acostumar. Tive a impressão de que ela fez alguma plástica, preenchimento labial, não sei. Até os dentes separadinhos quase não apareceram. O cabelo também estava bem mudado.
Ela está mesmo ótima, eu gosto das suas atuações, e sempre me espanto quando vejo o quanto ela é alta.
Também sempre me impressiono ao ver os atores europeus mudando de uma língua para outra com a maior facilidade. Fiquei curiosa pra saber se o Dujardin falou mesmo russo ou se foi dublado.
Acho que você já falou o que podia com bastante propriedade; só me resta recomendar o filme para quem gosta desse tipo de trama.
Não resisti e vi o filme novamente para poder tirar algumas dúvidas e poder prestar menos atenção nos diálogos, e mais nos personagens.
Meu comentário pode conter spoiler:
Eu não entendo de espionagem, e continuo sem entender que tipo de ligação o personagem do John Scurti tinha com Alice. Pelo que já vi em outros filmes e séries, a CIA pode contratar qualquer pessoa que ela queira por um certo período, ainda que curto, para ajudá-la em alguma operação. Pode ser uma pessoa comum, sem treinamento, só basta que ela tope. A Alice me pareceu uma dessas, pois quando a coisa começou a dar errado, eles disseram que ela não era profissional e que quanto menos soubesse melhor seria para ela ( o Moïse teve a mesma preocupação, disse que ela não tinha treinamento). Mas o Honey tinha uma preocupação com ela, que eu não entendi de onde saiu, pois o filme não mostra nenhuma ligação entre os dois (às vezes acho que peguei uma legenda ruim, e algumas coisas foram mal traduzidas. Preciso ir atrás de outra). De todo modo, pode ser que a preocupação dele fosse a de um funcionário da CIA que contrata uma pessoa comum para ser “agente”, e se sente responsável pela vida dela.
Ver novamente o Jean Dujardin encher a tela não foi nenhum sacrifício, e o interessante é que além de lindo, ele atua muito bem; geralmente no cinema, os galãs costumam ser canastrões. E vendo pela segunda vez, eu notei que ele não tem uma beleza dita perfeita, como a do Tom Cruise, nos seus tempos de glória, por exemplo, mas esbanja charme por todos os poros. E essa despreocupação do cinema e dos atores europeus com a aparência eu acho bacana (ele não tem dentes perfeitos nem fez clareamento, e isso não o deixou menos bonito); já o Brad Leland, que aparece somente no final falando da fita de Möbius, me assustou com aqueles dentes ao estilo “teclas de piano”.
Mas a padronização americana de beleza já vem mordendo as atrizes européias. A Cécile De France, claramente fez alguma plástica (e ainda é jovem para isso) e já notei o mesmo fenômeno ocorrer com outras atrizes do velho mundo. E uma coisa que aconteceu com frequência na história e me irritou, e que também não é comum ocorrer em filmes europeus, foi ver o cabelo da Alice extremamente penteado e escovado em todas as cenas, até na cena onde ela tinha acabado de transar com o Moïse: ele foi levado pelo guarda-costas do russo, ela ficou toda preocupada dando telefonemas, e quando ele voltou ela estava extremamente penteada e escovada, sem um fio fora do lugar.
O que sempre me impressiona em filmes de espionagem é a facilidade com que eles matam e mandam matar, como se estivessem trocando de roupa.
E nada como uma ex-namorada/ficante/amante que ainda guarda sentimentos para desconfiar e descobrir um romance “secreto”, hein?! Sorte dele que a ex parecia ter bom caráter. E para mim, uma das melhores cenas do filme, é aquela onde ele dá um jeito de atender ao telefonema da Alice no carro, com quase todos os agentes (seus subordinados) dentro, disfarçando a conversa, falando em código. Para mim foi tocante.
Filme ótimo! Nossa, mexeu muito comigo as cenas de amor dos dois! Que clima, lindos os dois! Um pouco complexo o filme mas muito bom!
Como sempre, adoro ver seus comentários, Sérgio!
Abraços
Assisti a esse filme no domingo e revi ontem.
Impactante. Assino embaixo de tudo o que você descreveu. As cenas de sexo realmente são obras de arte. Delicadas e tão convincentes!
Para quem acompanha a história da Rússia, como eu, aquela frase foi espetacular. Quem comanda a FSB (KGB) comanda o país.
Eu queria escrever sobre o filme, mas você já disse tudo. Menos uma coisa: o Jean Dujardin é belo, charmoso, de tirar o fôlego.
Eu gostei da trama do filme. Só acho que o final deixou a desejar. Poderia haver uma explicação para os últimos acontecimentos. Ex.: quem tentou matá-la?
Fiquei com muito gosto de quero mais.
Gostei muito deste filme! E adorei toda a resenha feita por ti! O ator Jean Dejardin é ótimo e conheci neste filme a Cecília também, de quem gostei bastante!