Intocáveis é uma maravilha, uma beleza, um grande filme. Essa é a verdade dos fatos, é o que importa.
Mas devo confessar – já que estas minhas anotações aqui sempre foram pessoais e intransferíveis, e fogem da objetividade como o diabo da cruz – que tenho um problema com Intocáveis, assim como com outros filmes recentes que já chegam imensamente incensados, como, por exemplo, outro que vi na mesma época, O Lado Bom da Vida/Silver Linings Playbook.
O problema não é desses belos filmes, pelamordedeus. O problema é exclusivamente meu.
Quando vejo belos filmes recentes que já foram amplamente, unanimemente incensados, tenho preguiça de anotar sobre eles. Mas se todo mundo já falou tanto, já falou tudo, mais bem falado do que eu poderia falar, por que então fazer uma anotação sobre eles?
Dúvidas metafísicas de quem se meteu a fazer um site sobre os filmes que vê…
Sobre O Lado Bom da Vida, por exemplo, decidi sem dúvidas metafísicas que não vou escrever. Pra quê? O filme foi um extraordinário sucesso, teve prêmios de montão; o marketing em cima da figura de Jennifer Lawrence já é imenso demais – até nauseantemente imenso demais. É um belo filme, sem dúvida, mas acho que não teria uma única consideração a respeito dele que já não tenha sido feita por centenas de outras pessoas.
Uma demonstração de que filmes de grande qualidade podem ser sucesso de público
Sobre Intocáveis, também de extraordinário sucesso, centenas de outras pessoas já escreveram, é claro. Mas gostaria de meter meu bedelho. Até porque faço questão que ele esteja no meu site.
Duas coisas ficaram me martelando na cabeça depois que, encantados, mesmerizados, Mary e eu nos entregamos ao prazer de vê-lo.
A primeira: Intocáveis é uma daqueles excelsas, augustas provas de que nem sempre o que cai no gosto do povo é ruim. Obter imenso sucesso popular não significa que a obra é porcaria. O que pode também ser dito e entendido da maneira inversa: um filme não precisa ser chato, pretensioso, intelectualóide, babaca, metido a besta, para ser grande obra.
Os cinéfilos de narizinho arrebitado (tenho um sério problema com eles) acham que, para ser de qualidade, de “arte”, os filmes precisam necessariamente ser papo-cabeça, ser tudo o que passa longe do mainstream, do que pode ser compreendido e amado pelas pessoas que não possuem narizinho arrebitado, que não freqüentam palestras de diretores (em geral chatas, empertigadas, metidas a besta).
Intocáveis é um filme bem feitíssimo, finíssimo, da mais alta categoria em termos de qualidade artística. Ninguém que de fato ama o cinema enquanto expressão artística poderia torcer o nariz diante dele.
E no entanto foi um dos filmes de maior bilheteria na França, a pátria do cinema, o país que inventou o cinema tal qual o conhecemos hoje, o país que tem os maiores estudiosos, historiadores, críticos sérios do cinema.
A edição brasileira do DVD proclama que o filme teve mais de um milhão de espectadores neste país pobre, periférico, em que oito em cada dez alunos da quinta série não conseguem entender um texto simples.
Os de narizinho empinado até que gostariam de falar mal do filme, já que ele teve uma recepção popular tão boa. Mas fica difícil para eles, diante da qualidade do filme.
Não costumo ler as críticas dos filmes antes de vê-los, mas é claro que a gente vê os títulos nos jornais, na internet. Não me lembro de ninguém que tivesse tido a ousadia de meter o pau em Intocáveis.
Ao contrário do que em geral se faz, Intocáveis não demoniza os ricos
A segunda coisa que ficou na minha cabeça após ter visto enfim o filme (em geral vejo os filmes novos vários meses depois que eles estrearam no cinema) é extraordinária.
Intocáveis não demoniza os ricos, os burgueses.
Já falei isso aqui dezenas de vezes, mas é preciso repetir: para o cinema italiano feito no pós-guerra, em especial, mas também para o francês, quem é trabalhador braçal, explorado, é bom, digno, perfeito. Do modo contrário, quem é rico, burguês, patrão, é necessariamente filho da puta, imbecil, vazio, doente da cabeça e do pé.
Os cinemas francês e italiano – e nos anos 60 e 70 era difícil achar um filme francês que não fosse co-produção com a Itália, e vice-versa – seguiam fielmente a cartilha marxista, ou filo ou pseudo-marxista: se é pobre, é bom. Se é rico (e o rico incluía todo mundo que não passasse por necessidades básicas), é porcaria.
“Tu sei uma piccola borghesa, Sandra, ma io, non”, dizia o personagem interpretado por Jean Sorel em Vagas Estrelas da Ursa, que o mestre Luchino Visconti fez em 1965. Essas palavras, que ouvi tantas vezes quando era um garoto que amava Visconti e De Sica e Antonioni, ficaram na minha cabeça para sempre.
Burguês, pequeno ou grande, era o horror dos horrores para os grandes realizadores franceses e italianos de 1945 em diante. Praticamente todos os realizadores franceses e italianos importantes cuspiram em cima dos personagens que tinham a infelicidade de ter teto e comida.
Os cinemas francês e italiano, mesmo os dos grandes, era marxistamente (ou pseudo-marxistamente) maniqueísta.
Claro, havia exceções. Só para dar um exemplo: os filmes de Agnès Varda e seu marido Jacques Demy não chamavam os não pobres de filhos da mãe – mas concentravam-se na vida dos trabalhadores mais humildes. Philippe de Broca fazia o elogio da vida simples, das pessoas comuns.
Mas, de uma maneira geral, o que prevalecia era o maniqueísmo. Claude Chabrol fez uns 39 filmes para dizer que todo burguês (ou seja: qualquer pessoa que não fosse trabalhador sem qualificação) é idiota, imbecil, ruim da cabeça e do pé, fedido, doido, chato.
Chato, na verdade, é Claude Chabrol.
O despossuído dá ao milionário movimentos – e a alegria de viver
Peço perdão por ter me estendido tanto.
O fato é que Intocáveis rompe uma tradição de décadas do cinema francês.
Philippe (o papel do sempre bom François Cluzet) é podre de rico. Não é um pequeno burguês, não. É milionário.
O outro protagonista da história é pobre de marré-de-cy. Driss (Omar Sy) é um africano que chegou à França ainda criança, de família miserável.
Temos então que Intocáveis é um encontro entre um milionário cultíssimo e um despossuído de quase tudo.
Com o detalhe de que o milionário tinha ficado tetraplégico. E o imigrante que tem tudo para ser um marginal, um delinquente, dará ao milionário movimentos – e a alegria de viver.
Há diversos diálogos memoráveis no filme, mas eu destacaria um.
Um advogado e parente do milionário Philippe o adverte: a ficha de Driss não é boa, ele havia passado seis meses preso por assalto. É preciso ter cuidado com ele. Até porque – ele diz – essas pessoas da periferia não têm compaixão.
E então Philippe responde: – “É isso que eu quero. Alguém que não tenha compaixão.”
Há histórias reais que têm desfecho feliz
O final do filme é positivo, otimista, esperançoso.
Os cinéfilos de narizinho empinado, que em geral se dizem “de esquerda” gostariam de contestar. Ah, não, não pode haver final positivo, otimista, esperançoso! Final feliz é coisa de cinema americano, de Hollywood! Final feliz é maneira de enganar as massas! O final teria que ser terrível, para que os espectadores saíssem do cinema revoltados, querendo derrubar o sistema capitalista!
O final é feliz porque o filme se inspira numa história real, e – embora isso choque muita gente – há histórias reais que têm desfecho feliz.
Philippe, o tetraplégico interpretado por François Cluzet, na vida real chama-se Philippe Pozzo di Borgo. Nos créditos finais, vemos algumas cenas em que ele aparece, ao lado do jovem africano que foi seu cuidador. E somos informados de que Philippe Pozzo di Borgo vive hoje no Marrocos.
A dupla de diretores Eric Toledano e Olivier Nakache viajou até o Marrocos para se encontrar com Philippe, apresentar seu projeto de fazer o filme e obter sua concordância. Philippe não só concordou como deu aos realizadores diversas informações sobre sua vida e sugestões. Permaneceram em contato durante a época da redação do roteiro e das filmagens.
O que Philippe deixou claro é que não desejava que a história de sua vida fosse retratada de forma a causar piedade, compaixão. Cultíssimo, de um bom humor a toda prova, queria que fosse um filme bem humorado – e, sem dúvida, os realizadores conseguiram satisfazer o desejo da pessoa retratada na obra: Intocáveis é uma deliciosa comédia. O humor está presente ao longo de todos os seus maravilhosos 112 minutos. O filme é tão bem humorado que aproveita para fazer uma deliciosa gozação sobre a arte abstrata (foto acima).
O ator François Cluzet também viajou até o Marrocos para se encontrar com o homem que iria retratar. Observou cuidadosamente a forma de Philippe falar, respirar, mexer a cabeça.
Os autores mudaram a nacionalidade do personagem por causa do ator Omar Sy
Os créditos dizem “inspirado em uma história real”. Em geral usa-se o termo “inspirado” para ressaltar que a obra não pretende ser cem por cento fiel aos fatos reais, que não é a transcrição exata dos fatos. Ou seja: é tudo verdade – mas com algumas, ou muitas licenças.
Por exemplo: o Driss da vida real, o imigrante africano que se tornou cuidador do verdadeiro Philippe Pozzo di Borgo, é um argelino chamado Abdel. Os diretores Toledano e Nakache mudaram a nacionalidade do personagem para africano do Oeste porque faziam questão que ele fosse interpretado por Omar Sy, com quem já haviam trabalhado em filmes anteriores, Nos Jours Hereux, de 2006, e Tellement Proches, de 2009. (O IMDb não traz os títulos em português desses dois filmes, o que indica que não tiveram lançamento comercial no Brasil.)
Sábia decisão, a deles, de escolher Omar Sy para o papel de Driss. É um belo ator, nos dois sentidos, o estético e o artístico. Tem uma fina estampa, um jeitão de homem forte e ao mesmo tempo levemente desengonçado, troncho. Tem uma ginga de negão de periferia que era indispensável para compor o personagem.
O site AlloCiné, de onde tirei diversas dessas informações (outras estão no IMDb), diz que Omar Sy resolveu emagrecer uns dez quilos para interpretar Driss. Ele estava mais gordo, mais cheio, na época, e entendeu que era preciso dar uma afinada para se parecer mais com aquele negão de periferia, esperto, um tanto safado, mas cheio de auto-confiança.
Intocáveis é o segundo filme francês mais visto em seu país
Intocáveis foi o escolhido pela França para participar da corrida ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Não obteve a indicação ao Oscar, mas colecionou 22 prêmios e 31 outras indicações. Para o César, o Oscar francês, teve 9 indicações, inclusive nas categorias de melhor filme, melhor direção, melhor roteiro original e melhor ator tanto para François Cluzet quanto para Omar Sy. O único César que acabou levando foi para Omar Sy.
Alguns números. O filme teve um orçamento confortável. Não de um blockbuster americano, mas bastante confortável para garantir uma produção caprichada – 9,5 milhões de euros.
Só na França, teve 19,213 milhões de espectadores.
Em apenas nove semanas de exibição na França, já era o segundo filme francês de maior número de ingressos vendidos, tendo já ultrapassado O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Só não tinha conseguido bater o campeão A Riviera Não é Aqui/Bienvenue Chez les Ch’tis. (No acumulado, a comédia de Dany Boon também vence este Intocáveis, mas por pouco, com 20,328 milhões de espectadores.)
Na Alemanha, foi visto por 8,8 milhões de pessoas, e foi o filme de maior bilheteria no país em 2012, batendo concorrentes como 007: Operação Skyfall, A Era do Gelo 4 e A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2. Tornou-se o filme francês de maior sucesso na Alemanha em toda a história.
Também na Holanda foi o filme francês mais visto da história, batendo o recordista anterior, A Chave de Sarah.
Já foi dito que no Brasil teve mais de 1 milhão de espectadores. O número não é tão fulgurante quanto os europeus, mas não deixa de ser absolutamente impressionante – e mais ainda se lembrarmos que não é um filme de ação, de aventura, de super-heróis, mas sobre um tetraplégico.
Maravilha de filme. Maravilha de comprovação de que filme bom pode fazer sucesso – e de que um filme não precisa ser chato para ser bom.
Anotação em outubro de 2013
Intocáveis/Intouchables
De Éric Toledano e Olivier Nakache, França, 2011
Com François Cluzet (Philippe), Omar Sy (Driss),
e Anne Le Ny (Yvonne), Audrey Fleurot (Magalie), Clotilde Mollet (Marcelle), Alba Gaïa Bellugi (Elisa), Cyril Mendy (Adama), Salimata Kamate (Fatou), Absa Diatou Toure (Mina), Grégoire Oestermann (Antoine)
Roteiro Éric Teledano e Olivier Nakache
Fotografia Mathieu Vadepied
Música Ludovico Einaudi
Montagem Dorian Rigal-Ansous
Produção Quad Productions, Ten Films, Canal+, CinéCinéma,
TF1. DVD Califórnia Filmes.
Cor, 112 min
****
Título em Portugal: Amigos Improváveis.
Caro Sérgio
Muito bom o site, pelo estilo do texto, simples e direto, pela grande variedade de informações adicionais. Entrei hoje vou consultar sempre, fiquei fã mesmo.
Um pequeno reparo: na referência do filme francês Intocáveis, um dos diretores está grafado nas fontes que consultei como Eric Toledano e não Teledano.
Parabéns, Sérgio
Caro Paulo, muitíssimo obrigado pela mensagem, pela gentileza e pela correção. Já acertei o nome do diretor, que havia grafado erradamente.
Um abraço.
Muito divertido e sobretudo humano Os Intocáveis, com essa dupla dinâmica, o tetraplégico Phillipe e o cuidados Driss. Na seleção de quem vai cuidar do deficiente chovem candidatos, todos cheios de qualificações mas sem o que Phillipe procura: afetividade, alegria, alguém que o faça retomar o gosto pela vida!
É aí que aparece Driss, mas não querendo o cargo e sim que o patrão assine que ele compareceu e não foi aceito para continuar recebendo o auxílio-desemprego. Mas é contratado e ambos passam por situações hilariantes, como lavar os pés com xampu, recusar-se a colocar as meias elásticas e tarefas mais íntimas. Eles se tornam cúmplices, correndo no carro até serem parados por policiais e até voam juntos no pentereme que lesou Phillippe. E Driss obriga o patrão a conhecer enfim a mulher com quem se corresponde já há seis meses, acontecendo o happy end a que o post se refere.
http://www.sospesquisaerorschach.com.br
Sergio, você que entende tudo de cinema, me diz uma coisa: se dinheiro não fosse problema, o que seria necessário pra montar um cinema que passasse só os filmes que eu quisesse passar? Digo filme mesmo, em película. A quem eu devo pedir autorização? Com quem eu negocio os filmes? Negocio no Brasil? Preciso ir lá fora? Quem traduz e legenda? E se for só filme velho? Melhora a situação? Piora? Ouvi faz tempo um papo de que cópia com mais de x anos era queimada. Isso é verdade? Muita pergunta? Me desculpe. Agradeço e dou parabéns pelo site desde já.
Ih, Heitor, eu não entendo tudo de cinema!
E sobre isso que você pergunta – sobre o mercado de exibição, exibidores – de fato não entendo lhufas. Coisa alguma!
Eu sugeriria que você procurasse no Google por “sindicatos de exibidores de cinema”. Lá você poderia achar o endereço ou o telefone, e fazer a consulta…
Um abraço.
Sérgio
“os filmes de Agnès Varda e seu marido Jacques Demy não chamavam os menos que pobres de filhos da mas – mas concentravam-se na vida dos trabalhadores mais humildes.”
Essa frase é assim mesmo? “de filhos da mas – mas concentravam-se?”
Tinha um erro de digitação na frase. Era para ser filhos da mãe. Já corrigi. Obrigado, Heitor. Um abraço.
Sérgio