Chamas do Destino / Le Bazar de la Charité

Nota: ★★★☆

A partir de um fato real – uma tragédia, um incêndio em área nobre de Paris em 1897 que causou 126 mortes, quase todas de mulheres ricas –, a escritora e roteirista Catherine Ramberg criou uma história absolutamente fascinante, impressionante, magnífica.

A minissérie Chamas do Destino, no original Le Bazar de la Charité, co-produção França-Bélgica de 2019 lançada pela Netflix, tem várias qualidades, mas sem dúvida a maior delas, a que deixa o espectador de boca aberta e queixo caído é a história, a trama, a forma com que são mostradas as vida de três mulheres – fictícias – que estavam no prédio do lugar chamado Bazar da Caridade no dia em que ele foi inteiramente destruído em apenas meia hora por um incêndio devastador.

Ao longo de oito episódios de cerca de 50 minutos cada, as vidas de Adrienne, Rose e Alice, as peripécias que o destino traça para elas, deixam o espectador fascinado, chapado.

Chamas do Destino é um monumento de criatividade, de inventividade, de engenhosidade.

Ficaram pipocando na minha cabeça os nomes de Janete Clair, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva, Ivany Ribeiro, Marcos Rey, Manoel Carlos, Glória Perez, Silvio Abreu, Lauro César Muniz, Benedito Ruy Barbosa – os grandes criadores das tramas dos folhetins brasileiros. Tenho a absoluta certeza de que todos eles se poriam de pé para aplaudir, como na ópera, a maestria com que foi criada a trama deste novelão.

É um novelão. Tem muita coisa que a rigor, a rigor, roça na inverossimilhança. Há exagero, muita situação incrível demais. Mas, diacho, não são assim os folhetins, as novelas? E a vida da gente às vezes não parece mesmo um imenso novelão?

E a verdade é esta: não me lembro de ter visto nos últimos anos outro novelão tão fascinante, uma história tão bem construída quanto esta aqui.

Catherine Ramberg é a principal responsável pela série – ela é a criadora, ao lado de Karin Spreuzkouski. É quem assina o roteiro e os diálogos – o cinema francês sempre fez questão de identificar claramente quem escreve os diálogos. As duas tiveram a colaboração de um terceiro roteirista, Yves Ramonet, conforme mostram os créditos iniciais, que são bastante específicos na parte do que em geral se chama de argumento e roteiro:

“Uma série criada por Catherine Ramberg e Karin Spreuzkouski, a partir de uma história e personagens de Catherine Ramberg. Arcos narrativos Catherine Ramberg, Karin Spreuzkouski e Yves Ramonet. Roteiro e diálogos Catherine Ramberg.”

“Arches narratives.” Achei a expressão chiquetérrima. Jamais tinha ouvido falar. Mas os arcos narrativos são de fato excelentes…

Obra basicamente de duas mulheres, com a colaboração de um homem na criação da história e um homem, Alexandre Laurent, na direção, este Le Bazar de la Charité é uma exaltação da força, do poder, da inteligência, da astúcia, da resistência das mulheres. Alice, Adrienne e Rose, as três protagonistas, são, todas elas, pessoas extraordinárias.

Elas são interpretadas, respectivamente, por (da esquerda para a direita na foto abaixo) Camille Lou, Audrey Fleurot e Julie De Bona, três belas e competentes atrizes,

Há uma quarta mulher importantíssima na trama, Madame Huchon (interpretada pela ótima veterana atriz e diretora Josiane Balasko), que é também uma força da natureza.

Fascinantemente, há na trama um garoto aí de uns meros 14 anos, e duas crianças, um menino de uns 6 e uma menina de uns 10, todos eles com participação importante, fundamental na história – algo que não é comum, de forma alguma. Na imensa maioria das vezes, as crianças aparecem como bibelôs, enfeites; aqui, não – esses três são protagonistas da história.

Quatro mulheres fortes, fortíssimas. Três menores de idade de grande importância na história.

Os homens são quase coadjuvantes, apenas.

Na grande tragédia que realmente existiu, e a partir da qual todos os personagens e situações da minissérie foram criados, os homens tiveram um papel vergonhoso.

Os homens fizeram tudo para fugir o mais rapidamente possível – e conseguiram escapar, deixando as mulheres para trás. Como já foi dito, e a minissérie repete algumas vezes, quase todas as vítimas fatais do incêndio do Bazar da Caridade foram mulheres.

Quase todas as vítimas eram mulheres – e ricas

Isso é mostrado para o espectador logo de cara, assim que começa o primeiro dos oito episódios da minissérie. “Esta ficção é inspirada em fatos reais”, diz o primeiro letreiro. E explica, relata, situa o espectador:

“Paris, primavera de 1897. Todos vão ao Bazar da Caridade, lugar de venda de objetos para ajudar os necessitados. Em menos de 30 minutos, o edifício de madeira é destruído pelo fogo, prendendo dentro dele os visitantes. O resultado é trágico, mais de 120 mortos e centenas de feridos. Quase apenas mulheres.”

Jamais tinha ouvido falar nessa tragédia. Tudo bem, há muita tragédia na História – mas 126 mortos e centenas de feridos, num incêndio num local nobre de Paris… Meu Deus!

Está na Wikipedia em Português: “O Bazar de la Charité (Bazar de Caridade) era um evento organizado anualmente pela aristocracia católica francesa. Fundado em 1885 por Harry Blount e presidido pelo barão Armand de Mackau, o bazar tinha como objetivo a venda de lingeries, bijuterias e diversos outros itens em benefício dos pobres. Com sede em Paris, foi destruído por um grave incêndio em 4 de maio de 1897, causando 129 mortes – a maioria das quais eram mulheres da alta sociedade parisiense.”

Pequena, mínima discrepância: a série fala em 126 mortes, a Wikipedia hoje fala em 129.

A primeira das três mulheres que serão as protagonistas da história que vemos – três horas antes do incêndio, como nos informa um letreiro – é Adrienne de Lenverpré (o papel de Audrey Fleurot, na foto abaixo, repito). Adrienne é riquíssima, mora num palacete extraordinário – mas o marido, Marc-Antoine de Lenverpré (Gilbert Melki), é um absoluto canalha. Ele acaba de descobrir que Adrienne consultou um advogado sobre um possível divórcio, e então manda chamar a mulher para uma confrontação. Pergunta se há outro homem – há, conforme veremos pouco depois, mas Adrienne nega. Ele diz que não haverá divórcio, de forma alguma. Dá uns fortíssimos tabefes na mulher que diz amar e que não conseguiria perder, informa que a filhinha deles, a espertíssima Camille (Rose de Kervenoaël), linda como um anjo renascentista, uns 10 anos de idade, será levada para um internato, e ordena que ela vá ao Bazar da Caridade, para gastar muito dinheiro e demonstrar que ele é muito rico e poderoso. Seguirão os dois na carruagem; ele a deixará perto do bazar e prosseguirá até o Senado. É senador, está em disputa pela presidência da Casa.

Quando a carruagem dá uma paradinha numa praça, Adrienne chama um pequeno jornaleiro que está por ali, e pede um exemplar do jornal La Chouette, a coruja. Paga o jornaleiro com uma nota grande, diz que ele pode ficar com o troco – em seguida, vemos o garoto examinar um papelzinho que veio enrolado na nota: “Encontro às 19h15 na frente do bazar”.

O jornaleiro, o pequeno vendedor de jornal nas ruas, essa figura que não tem uma palavra específica para designá-lo em Português, que em Espanhol é canillita, o personagem de “Preludio para un canillita”, aquela maravilha de Astor Piazzolla e Horacio Ferrer, se chama Léo (Sacha Pinault). É o adolescente de uns 14 anos que terá grande importância na trama.

Em 12 minutos, conhecemos os protagonistas todos

Entre a sequência em que de Lenverpré espanca Adrienne e depois os dois saem de sua mansão na carruagem e aquela em que Adrienne compra um exemplar do jornal e entrega para o pequeno jornaleiro um recado para seu amante, há uma sequência em que ficamos conhecendo as duas outras protagonistas da história.

Em primeiro plano, vemos o cocheiro de uma carruagem que chega ao Bazar da Caridade. Chama-se Jean Rivière (Aurélien Wiik). Quando a carruagem pára diante do bazar, primeiro desce Alice de Jeansin (Camille Lou, na foto abaixo), e logo atrás dela sua dama de companhia, Rose, a mulher do cocheiro (o papel de Julie De Bona).

Alice caminha rumo à porta de entrada do bazar, enquanto Jean pede para Rose esperar um minuto. Ele quer mostrar para ela as passagens que comprou num transatlântico rumo a Nova York: estão finalmente para realizar o sonho de se mudar para o Novo Mundo, tentar a vida, finalmente deixar de ser cocheiro e dama de companhia de ricos.

É tudo tremendamente bem criado, bem inventado, bem arquitetado.

Dentro do abarrotado Bazar da Caridade (segundo a Wikipedia, “um galpão de 80 metros de comprimento e 13 metros de largura”), a rica, jovem e belíssima Alice se encontra rapidamente com sua tia, Adrienne. (Adrienne é irmã de Mathilde, a mãe de Alice, que é interpretada, e muito bem, por Florence Pernel.) Encontra-se também, e não rapidamente, com seu namorado, Julien de la Ferté, rapaz riquíssimo (o papel de Théo Fernandez).

No lugar cheio de gente rica, Alice tromba com um rapaz evidentemente pobre, um trabalhador. Vale a pena transcrever o diálogo.

A moça rica: – “Preste atenção!”

O moço pobre: – “Foi você que me atropelou. Mas tudo bem.”

A moça rica: – “Você poderia se desculpar.”

O moço pobre: – “Me desculpar por quê? Por trabalhar? Então, me perdõe por trabalhar. Você ao menos sabe o que é trabalhar? Tente prestar mais atenção da próxima vez. Você derrubou isso. (E entrega o bracelete que ela havia deixado cair. Aí inclina-se diante dela, num gesto de gozação.) Até mais, Alteza!”

Alice encontra-se ainda com sua grande amiga Odette de la Trémoille (Linsay Rousseau), moça riquíssima. Logo que se encontram, perto do lugar em que um mágico mostra seus truques, Odette faz um gesto com a mão, e Alice percebe logo que ela está com um novo anel. Odette confirma: – “É a última criação de Cartier. A princesa de Gales tem o mesmo.”

Odette está com seu filho, Thomas (Adrien Guionnet), garotinho aí de uns 6 anos. Thomas é o terceiro menor de idade importante na história, juntamente com Léo, o vendedor de jornais, e Camille, a filha de Adrienne e do mau caráter de Lenverpré.

Quando o primeiro episódio de Le Bazar de la Charité está aí com apenas 11 ou 12 minutos, o espectador pode até não saber (eu não sabia), mas já foi apresentado às três protagonistas da história, ao adolescente e às duas crianças importantes na trama, e ao anel que terá também papel fundamental no novelão que vai se desenrolar.

E já conheceu também o herói, o mocinho, o good guy – Victor Minville (o papel de Victor Meutelet), o jovem anarquista que virá, bem depois, a ser acusado de ter jogado uma bomba para botar fogo no Bazar da Caridade.

Camille LOU

Tudo é contado sem recorrer a flashbacks

De fato, é estonteantemente bem engendrada a trama de Le Bazar de la Charité – e o primeiro episódio é a perfeição da arte de se contar história.

O incêndio todo acontece no primeiro episódio.

Toda a minissérie é narrada em rigorosíssima ordem cronológica (com uma pequeniníssima, rapidíssima exceção no episódio 5, quase imperceptível).

É a típica situação que poderia usar e abusar de flashbacks, para mostrar um tanto do passado das três personagens centrais. Mas não. A roteirista e autora Catherine Ramberg optou pela velhíssima e excelente ordem cronológica.

Uma grande quantidade de eventos da história fictícia das três mulheres – Adrienne, Rose e Alice –, e também de outros acontecimentos que parecem não diretamente ligados a elas é apresentada ao espectador antes do início do incêndio.

Odette queria olhar alguns stands, e então o garoto Thomas fica sob os cuidados de Rose, a dama de companhia. Rose, o garoto Thomas e também Alice e seu namorado Julien vão à sala do cinematógrafo.

Adrienne sai do bazar mais cedo para se encontrar com o amante, aquele que ela havia chamado com o papelzinho entregue ao garoto Léo – Hugues Chaville, o papel de François-David Cardonnel. Hugues é repórter importante do jornal La Chouette.

A sequência do incêndio é magnífica – e angustiante

A ficção é uma absoluta maravilha – na ficção você pode fazer o que bem entender.

Claro: se você não tiver talento, fará porcarias.

Essa moça Catherine Ramberg, talento extraordinário, de se aplaudir de pé como na ópera, criou, inventou, tirou da cachola uma série fascinante de histórias a partir do fato real que foi o incêndio do Bazar da Caridade.

Aparentemente, na vida real nunca se chegou a uma conclusão sobre o que teria provocado o incêndio – que se alastrou tão rapidamente e fez tantas, tantas vítimas.

Mas na ficção pode-se tudo – e então, na minissérie, Catherine Ramberg inventou que o incêndio começou na sala do cinematógrafo, a sala que exibia para um público extasiado aquela recentíssima invenção, o cinema, as imagens em movimento.

Rose está lá na sala, com o garoto Thomas no colo – e é uma das primeiras a perceber o iniciozinho do fogo, junto do projetor. O homem do projetor tenta apagar o fogo. Rose, esperta, sai da sala de projeção, procura rapidamente por Odette e por Alice; como não as encontra de imediato, sai do prédio do bazar, pede a uma empregada de outra família que está do outro lado da rua que tome conta de Thomas, e volta para o bazar para buscar a patroa e a amiga da patroa.

O incêndio se alastra rapidamente, rapidissimamente, e o espectador percebe que aquele prédio é uma armadilha, um absurdo: só tem uma porta de saída, a porta dianteira, que é dessas de rodar, como as de alguns hotéis, e portanto transforma o prédio praticamente numa prisão.

Quando a multidão tenta sair, aglomera-se junto à porta. A saída é difícil, demorada.

A sequência do incêndio é tremendamente bem feita, e tremendamente angustiante.

Três vidas que mudam completamente após a tragédia

O incêndio muda completamente o curso da vida das três protagonistas da história.

No desespero de escapar, Julien se esquece da namorada Alice – e ainda dá um empurrão em Rose, jogando-a no chão, antes de conseguir passar pela porta de rodar e sair para a rua.

Alice é salva exatamente pelo anarquista Victor, que consegue abrir um buraco na parede do prédio e tira lá de dentro algumas pessoas.

Sua vida tomará rumos completamente inesperados. Ela passa a ter desprezo por Julien – mas, ao mesmo tempo em que se apaixona pelo pobretão que a salvou, se sentirá obrigada a manter o compromisso de se casar com Julien, porque ele é riquíssimo e seu pai está à beira da falência.

Adrienne já não estava mais no prédio quando o incêndio começou – estava com o amante em uma carruagem. Ao ver o incêndio, a confusão toda, toma uma decisão: não vai voltar para casa, para o marido que ela detesta e que tirou dela a filha. Deixará que todos pensem que morreu no incêndio. E ficará na casa do amante, o jornalista Hugues, enquanto pensa em como reaver a filha Camille.

Sua vida não será nada fácil, de forma alguma. Muitíssimo ao contrário. O marido tem poder e maldade em doses amazônicas, jupiterianas.

Das três, Rose é a que mais sofre na carne com o incêndio: fica com boa parte do corpo queimada, desfigurada, inclusive a face direita, a testa.

Os hospitais ficam abarrotados de feridos no incêndio. Assim como Marc-Antoine de Lenverpré percorre os hospitais à procura de Adrienne, a milionária Madame Huchon faz a via crucis à procura de sua filha Odette. Ao ver Rose, com praticamente todo o corpo enfaixado, deixando à mostra só a boca e os grandes olhos azuis, Madame Huchon acredita ter encontrado Odette. Como Rose protesta, diz que não é, Madame Huchon prossegue a procura; no necrotério, vê um corpo inteiramente carbonizado, com, no dedo, um caríssimo anel – a última criação de Cartier, idêntico ao da princesa de Gales.

Madame Huchon pega o anel, volta àquele hospital e diz para os médicos que Rose é sua filha Odette. E leva Rose para casa.

Os pobres são muito bons, os ricos, muito maus

Não houve spoiler algum. Tudo o que relatei, toda essa grande quantidade de fatos, acontece no primeiro dos oito episódios de Chamas do Destino. É só o começo da história fascinante.

A trama maravilhosa, os personagens fortes, marcantes, são, como já disse, a melhor das qualidades da minissérie. Mas não a única.

É uma produção cuidadosa, esmerada. Figurinos, direção de arte – é tudo impecável.

O diretor Alexandre Laurent e seu diretor de fotografia Jean-Philippe Gosselin capricham nos movimentos de câmara. Há sempre belíssimos travellings, alguns longos, quase plano-sequências, que são capazes de deixar absolutamente encantados os cinéfilos.

Mas tem também defeitos.

Há, por exemplo, uma excessiva simplificação de alguns personagens, de grupos de pessoas, de situações. E há, ao fundo, em um segundo plano, aquela visão extremamente comum no cinema francês (e também, e de forma ainda mais aguçada, no cinema italiano) de que pobre é bom, rico é ruim.

Por exemplo: o grande herói, Victor, o anarquista que salva vidas, inclusive a de Alice, é tão pobre quanto bom. Seu caráter é imaculado. É a perfeição, um anjo.

Já o grande bandido, Marc-Antoine de Lenverpré, é tão rico quanto mau. É o horror, o demônio. (E o ator que o interpreta, Gilbert Melki, é um pavor. Não sei se por absoluta falta de talento, ou por decisão dele e do diretor Alexandre Laurent, o fato é que Gilbert Melki faz caretas demais, exagera no over do over. É uma interpretação que destoa de todo o resto do elenco.)

De Lenverpré se cerca de bandidos mal encarados – os “apaches”, como são chamados. No entorno de Victor, é o contrário. As pessoas que convivem com ele no cabaré de bairro pobre são todas boas, simpáticas, solidárias.

Hugues Chaville, o jornalista do La Chouette, é tão bom repórter quanto bom caráter. É classe média. Já Henri de la Trémoille, o marido de Odette, é rico, de família aristocrática – e é uma pustema, um imbecil, um idiota. “Um porco”, como diz a própria sogra, Madame Huchon.

Os bons, os maus. Sem muito espaço para a existência de coisa alguma entre um extremo e outro. Coisa típica de novelão – que, afinal, a série é mesmo.

O jornal La Chouette é um perfeito exemplo da coisa da simplificação. Fica parecendo que Paris só tinha esse jornal: todo mundo o lê, dos mais ricos aos mais pobres – embora ele pareça ser um jornal popular. É para La Chouette que Hugues trabalha, e também o outro repórter capaz de fazer às autoridades perguntas difíceis, embaraçosas. Foi La Chouette que cobriu – 15 anos antes da época da ação – o caso do assassinato da cantora Eva, um caso que se torna importante na trama a partir do episódio 5. E são exemplares de La Chouette que o garoto Léo vende nas ruas da cidade.

Aliás, Léo, pobre de marré deci, é também um herói.

Três belas e competentes atrizes

Antes de passar às considerações finais, gostaria de registrar alguns poucos pontos.

* Creio que dá para afirmar com alguma certeza que o jornal La Chouette é como Adrienne, Rose e Alice: uma ficção. Não existiu esse jornal. Existiu um semanário com esse nome exatamente no final do século XIX, a época em que se passa a ação, mas era publicado em Bordeaux.

* “As cenas do incêndio, que ocupam dois terços do primeiro episódio, necessitaram dez dias de filmagens e um importante trabalho de preparação”, diz o AlloCiné, o site que tem absolutamente tudo sobre os filmes franceses. E ele transcreve uma frase do diretor de produção Marc Brégain ao jornal Figaro: “Cenas de fogo dessa envergadura, na França, isso nunca tinha sido feito, nem mesmo para um longa-metragem. É uma proeza ao mesmo tempo técnica e artística.”

Digo eu: é bem verdade. As sequências do incêndio são formidáveis. Diretores de filmes-catástrofe hollywoodianos aplaudiriam.

O AlloCiné prossegue: “Embora efeitos especiais tenham sido acrescentados na etapa de pós-produção, as chamas, imensas, eram bem reais no set de filmagens. As atrizes Julie De Bona e Camille Lou (que fazem respectivamente Rose e Alice) guardam lembranças particularmente fortes ‘Nós ficávamos muito perto das chamas. Às vezes, eu não conseguia parar de chorar. Era tão perturbador pensar que aquilo aconteceu de verdade’, testemunhou Camille Lou à Télé Loisirs.”

* Não conhecia Camille Lou nem Julie De Bona. São, as duas, atrizes muito belas. Como Rose, a personagem de Julie De Bona, aparece quase todo o tempo com o rosto maquiado e trabalhado (muitíssimo bem maquiado e trabalhado, é preciso dizer) para mostrar as horrorosas marcas de queimaduras, são poucas as cenas em que podemos vê-la com toda sua beleza.

Julie De Bona nasceu em Paris, em 1980; tem quase 50 títulos em sua filmografia, iniciada em 2002, a maior parte deles de séries de TV. O AlloCiné destaca suas participações nas séries Le Secret d’Elise, Le Tueur du Lac e Coup de Foudre à Noël, da TF1 – o canal que é um dos produtores desta série aqui.

Camille Lou, que faz Alice, é a mais jovem das três atrizes principais da série – nasceu na cidade de Maubeuge, em 1992. A mais jovem, e a mais esplendorosamente bela entre três mulheres belas. Começou a carreira em 2015, e este foi o sétimo título de sua filmografia. Sétimo título, e a terceira série de TV. Com a beleza faiscante que tem, dá para dizer que para essa menina o céu é o limite.

A mais conhecida das três é Audrey Fleurot, que é também a mais velha (nasceu em 1977) e a mais experiente (tem quase 60 títulos na filmografia). Fiquei absolutamente surpreso ao ver que meu 50 Anos de Filmes tem cinco filmes em que Audrey Fleurot trabalha – a rigor, quatro filmes e uma série: As Mulheres do 6º Andar / Les Femmes du 6ème Étage (2010), A Delicadeza do Amor / La Délicatesse (2011), Intocáveis / Intouchables (2011), O que as Mulheres Querem / Sous les Jupes des Filles (2014) e a série inglesa Safe (2018).

A série defende uma tese – e apresenta uma bela moral

Sim, há defeitos, falhas na minissérie criada por Catherine Ramberg e Karin Spreuzkouski, como tentei expor aí acima.. Mas eles não fazem de Le Bazar de la Charité uma série ruim, de forma alguma. É uma bela série, sem dúvida.

Depois que terminamos de ver a série, fiquei durante dias pensando na fantástica trama, na belíssima história e nos personagens que Catherine Ramberg criou. Foi depois de alguns dias que me caiu a ficha: além de contar uma história prodigiosa, um novelão que deixaria com inveja aqueles autores brasileiros todos que citei lá em cima, Le Bazar de la Charité apresenta uma tese.

Uma tese: em 1897, um século após a Revolução, a da liberté egalité fraternité, a que baniu a monarquia e levou à guilhotina dezenas de pescoços de quem não concordava com a nova ordem, a França continuava dividida entre a aristocracia de um lado e os pobres ou remediados de outro.

Plus ça change, plus c’est la même chose. Ou, no belo dizer do personagem de O Leopardo de Giuseppe di Lampedusa, “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.” Ou, em Português pouco castiço, chulo – perdõem a grosseria –, mudam as moscas, a porcaria permanece a mesma.

Mas nem tudo estava perdido – diz a moral da história, pelo que entendi. Contra a avareza, a maldade insana de um Marc-Antoine de Lenverpré e seus pares, os aristocratas conservadores, há sempre seres humanos dignos, corretos, como o homem do serviço secreto Célestin Hennion (Stéphane Guillon) e o jovem anarco-idealista Victor Minville. E há a imprensa livre, sempre alerta para divulgar as tramóias dos donos do poder.

Não me parece uma má moral da história, de forma alguma. Muitíssimo ao contrário.

Anotação em janeiro de 2020

Chamas do Destino/Le Bazar de la Charité

De Catherine Ramberg e Karin Spreuzkouski, criadoras, França-Bélgica, 2019

Diretor Alexandre Laurent

Com Audrey Fleurot (Adrienne de Lenverpré), Julie De Bona (Rose Rivière), Camille Lou (Alice de Jeansin)

e Gilbert Melki (Marc-Antoine de Lenverpré, o marido de Adrienne), Josiane Balasko (Madame Huchon, a mãe de Odette), Antoine Duléry (Auguste de Jeansin, o pai de Alice), Florence Pernel (Mathilde de Jeansin, a mãe de Alice), Théo Fernandez (Julien de la Ferté, o namorado de Alice), Victor Meutelet (Victor Minville, o anarquista herói), François-David Cardonnel (Hugues Chaville, o jornalista amante de Adrienne), Stéphane Guillon (Célestin Hennion, o agente do serviço secreto), Aurélien Wiik (Jean Rivière, o marido de Rose), Rose de Kervenoaël (Camille de Lenverpré, a filha de Adrienne), Sacha Pinault (Léo, o garoto amigo do jornalista Hugues), Linsay Rousseau (Odette de la Trémoille, a filha de Madame Huchon), Sylvain Dieuaide (Henri de la Trémoille, o marido de Odette), Adrien Guionnet (Thomas de la Trémoille, o filho de Odette), Gilles Cohen (o prefeito Leblanc), Christine Paolini (a governanta dos Lenverpré)

Roteiro Catherine Ramberg, com Karin Spreuzkouski e Yves Ramonet,

Baseado em história e personagens de Catherine Ramberg

Diálogos Catherine Ramberg

Fotografia Jean-Philippe Gosselin

Música Feançois Liétout

Montagem Jean de Garrigues e Emmanuel Douce

Casting Stéphane Finot

Figurinos Valérie Adda

Na Netflix. Produção Quad Television, TF1,

Cor, cerca de 400 min (6h40).

***

Título em inglês: The Bonfire of Destiny

6 Comentários para “Chamas do Destino / Le Bazar de la Charité”

  1. Acabei de ver ontem e gostei bastante, acho que é uma série de qualidade.
    Embora tenha alguns exageros como o Sérgio menciona.
    Mas no geral está muito bem; em especial fiquei muito impressionado com a cena do incêndio.
    Alguns actores masculinos estão muito mal como é o caso do actor que interpreta Marc-Antoine de Lenverpré.
    O Sérgio costuma chamar “careteiros” a este tipo de actores. Eu nuca vi esta palavra escrita noutro lado, apenas no 50 anos de filmes.
    Há uma palavra inglesa para isto que é “overacting” que me parece melhor.
    Outro actor que também é uma lástima é o que interpreta Julien de la Ferté o noivo de Alice de Jeansin.
    Acho que nunca vi um actor representar tão bem um imbecil total, um idiota completo; merecia um prémio: um balde estrume.

  2. Uau, Fátima!
    Esse seu comentário é de tirar o fôlego, deixar a gente vermelho de vergonha mas ao mesmo tempo todo feliz, tendo que abrir as janelas porque o ego não cabe na sala…
    Desculpe a brincadeira… Eu só queria agradecer pela sua gentileza!
    E dizer que seria legal se você se interessasse por voltar outras vezes ao site, para ler sobre outros filmes e/ou séries…
    Um abraço, e obrigado!
    Sérgio

  3. Esse maniqueísmo de que você fala creio ser uma aguçada estratégia para colocar uma lente de aumento sobre o comportamento das aparências do século XIX, e não um erro. Os valores de vida da aristocracia não se adaptaram ao mundo do dinheiro. Era um
    Tempo com um ritmo bastante diferente do atual (que permite relativizações). Lá, no século XIX, havia uma “produção da vida”, que exigia maneiras diferentes (verdadeiros borrões com
    a consciência do século XXI) de relacionar-se.

  4. Belíssima resenha, vim em busca de inspiração para meu texto do jornal da escola e sai sem folego. Cada detalhe, cada comentário, as criticas e elogios, foram coerentes e impressionantes.
    Agradeço!

  5. Uma série maravilhosa. Nos prende do início ao fim. As mulheres tem papéis surpreendentes!!

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