A Riviera Não é Aqui / Bienvenue Chez les Ch’tis

Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: A Riviera Não é Aqui é uma gostosa comédia, simples, despretensiosa, previsível, às vezes roçando na bobagem – mas, sobretudo, muito engraçada. Foi um extraordinário fenômeno de bilheteria na França, um sucesso avassalador.

Estourou nas bilheterias do país logo de cara: com 25,5 milhões de euros na primeira semana de exibição, foi recorde absoluto para um filme francês. Chegou a 20,2 milhões de espectadores na França, e tornou-se o filme francês de maior número de ingressos vendidos em toda a história.

Por isso, não dá para falar aqui só do filme em si – é impossível não falar dele também como um blockbuster, um fenômeno cultural.

Bem, mas primeiro o filme.

É uma gozação, uma enorme brincadeira sobre os regionalismos, as características específicas das regiões de um país, os modos, os costumes, o jeito de falar. Algo como fazem tantas centenas de piadas sobre a lendária preguiça baiana. Ou, por exemplo, uma gozação sobre os hábitos dos gaúchos, como eu fiz num longo texto sobre Porto Alegre, depois de passar lá uma deliciosa semana.

Uma enorme brincadeira sobre estereótipos.

E brincar com estereótipos pode ser uma canoa furada. Pode ser uma coisa preconceituosa, ofensiva – como dizer que os baianos são preguiçosos, os cariocas, malandros e os portugueses, burros, por exemplo. Pode ser ofensivo – mas também pode ser simplesmente uma brincadeira gostosa, divertida, hilariante.

É o caso deste filme aqui.

Interessante: ele me fez lembrar muito o tipo de humor da dupla René Goscinny e Albert Uderzo, os criadores de Astérix e Obelix, os imbatíveis, irredutíveis gauleses. Astérix e Obelix estão sempre estranhando os costumes dos diferentes povos – como, por exemplo, a mania dos bretões de beber aquela coisa sem graça, e que além de tudo não dá barato, a quente água. E, após cuidadosa observação dos hábitos de um determinado povo, Obelix sempre bate com os nós dos dedos da mão direita na cachola dura e filosofa: “Esses bretões (ou romanos, ou egípcios, ou suíços, o que for) são uns neuróticos”,

         Pior que ser suspenso, que ser demitido: transferido para o Norte

A região objeto da imensa gozação de A Riviera Não é Aqui é a Nord-Pas-de-Calais – o cantinho no extremo norte, a rigor nordeste da França, encostado na Bélgica, cuja principal cidade é Lille. Basta olhar no mapa: fica mais perto de Londres do que de Paris.

O herói – ou anti-herói – da história é Philippe Abrams (interpretado por Kad Merad, que fez o pai da família trágica do pesado drama Não se Preocupe, Estou Bem!/ Je vais bien, ne t’en fais pas). Philippe é, há muitos anos, funcionário dos Correios; vive na cidadezinha de Salon-de-Provence, bem no Sul da França, não muito longe de Marselha, mas sua mulher, Julie (Zoé Félix), uma chata de galocha, buzina na cabeça dele o tempo todo que quer se mudar para uma cidade da Riviera, a costa dourada da França, um dos lugares mais charmosos e badalados do mundo.

Philippe pede a ajuda de um amigo, funcionário do setor de Recursos Humanos dos Correios. Em desespero, diante da encheção de saco da mulher, se faz passar por deficiente físico – os deficientes têm prioridade nas remoções. Mas sua farsa é descoberta, e seu amigo do RH informa que tem uma má notícia para ele:

– “Fui suspenso?” – pergunta Philippe.

– “Pior” – responde o amigo.

– “Demitido!”

– “Pior”.

Pior que ser demitido: foi transferido para Nord-Pas-de-Calais.

Na primeira referência do filme a Nord-Pas-de-Calais que se faz no filme, se diz que ir para lá é pior que ser demitido!

Philippe vai ver um velhinho que teve, no passado, a pior experiência possível – morar durante um tempo em Nord-Pas-de-Calais. O velhinho narra para ele sua experiência como o pior filme de terror. Fala da chuva constante, do frio terrível, que pode chegar a menos 40 graus. E pronuncia a palavra Norte como se estivesse pronunciando uma horrenda maldição: “C’est du Nord! Du Noooooord”.

         Pronuncia-se Nord-Pas-de-Calais como se fosse o nome do diabo

Philippe combina com a pentelha da mulher que vai primeiro, na frente; mais tarde ela irá, levando o filho único do casal, que tem aí uns dez anos.

Mete-se na estrada. Um guarda rodoviário o pára; tem que multá-lo por andar a apenas 50 km/h, velocidade baixa demais, que pode causar acidentes. O pobre Philippe explica que não tem muita pressa para chegar – afinal, está indo para Nord-Pas-de-Calais.

– “Nord-Pas-de-Calais?” – repete seu guarda, horrorizado, como se estivesse pronunciando o nome do diabo. E deixa o coitado ir embora sem multa.

Ele prossegue a viagem – e Jacques Brel, o grande Jacques Brel, o maior nome da música popular francesa de todos os tempos, nascido na Bélgica, começa a cantar “Le Plat Pays”, maravilhosa, extraordinária canção, pérola das pérolas, em que, numa melodia sublime, faz o elogio de seu país plano, “com catedrais por suas únicas montanhas”, incessantemente varrido pelo vento do Leste, “com o Mar do Norte por último terreno vago, e as dunas onduladas para frear as ondas”.

Estamos com uns 10, 12 minutos de filme – e, com Jacques Brel, o filme me ganhou definitivamente.

         O lugar descrito como o inferno vai se revelar, é claro, uma delícia

O ponto da França mais distante da sonhada Riviera, perto demais da Bélgica. Um lugar isolado, distante, onde chove sem parar e no auge do verão a temperatura chega a ameno zero grau, onde a comida é péssima, nojenta, as pessoas bebem sem parar, tamanha a infelicidade, e, além de tudo, ainda falam uma coisa quase inteiramente ininteligível, que faz lembrar o francês só muito vagamente – o ch’tis do título original, Bienvenue Chez les Ch’tis, bem-vindo à terra dos ch’tis.

O inferno na Terra.

Essa é a descrição que se faz no início do filme de Nord-Pas-de-Calais.

O espectador mais atento terá visto, nos créditos iniciais, que o filme foi produzido com a cooperação do Nord-Pas-de-Calais. Praticamente todos os filmes franceses, se não todos, trazem, nos créditos, agradecimentos à região administrativa em que foi feito. (Basta reparar: todos os filmes passados em Paris, por exemplo, trazem a expressão “en collaboration avec Île-de-France”.)

Mas mesmo o espectador mais desatento sabe que, nas comédias onde inicialmente se fala muito mal de um lugar, acabará havendo a reviravolta, e o filme terminará com loas entusiásticas a esse mesmo lugar. É assim, por exemplo, em Recém-Chegada/New in Town, em que a personagem central, interpretada por Renée Zellweger, uma executiva de Miami, é enviada para New Ulm, uma cidadezinha de menos de dez mil habitantes, no gélido Estado de Minnesotta, vizinho do Canadá – ou de qualquer outro filme do mesmo tipo.

         Os atores demonstram que estão se divertindo – e o filme nos conquista

O diretor Dany Boon (à direita na foto) nasceu lá em Nord-Pas-de-Calais – e, nos créditos finais, dedica o filme à sua mãe, ch’tie autêntica. Dany Boon foi o autor do argumento e é um dos co-roteiristas do filme. Ele interpreta Antoine Bailleul, um dos funcionários da agência dos Correios da pequenina Bergues, para onde o nosso pobre anti-herói é removido como castigo por ter se fingido de deficiente físico ao tentar uma remoção para a Riviera.

O filme vai acompanhar as aventuras de Philippe como novo diretor da agência de Bergues, onde trabalham, além de Antoine, a bela Annabelle (Anne Marivin), Fabrice (Philippe Duquesne) e Yann (Guy Lecluyse), todos legítimos ch’tis, que só falam no mais autêntico ch’tis.

Há vários momentos em que os atores exageram nos gestos, nas palhaçadas – é quando o filme roça na mais pura bobagem, à la Renato Aragão e os Trapalhões, ou Casseta e Planeta. Mas as situações são tão divertidas, os atores são tão simpáticos, demonstram tão claramente que estão se divertindo à beça ao fazer o filme, que A Riviera Não é Aqui nos conquista inapelavelmente.

         As piadas sobre a língua, claro, perdem bastante com as legendas

Como boa parte da graça do filme é a linguagem usada pelos personagens, o ch’ti, é natural que se perca muito com as legendas em português. Na versão do filme em DVD, lançada no Brasil pela Flashstar, os tradutores fizeram um danado de um esforço para adaptar as piadas sobre a língua, mas, por melhor que tenha sido o trabalho deles, perde-se muito. Transformaram, por exemplo, todos os s em ch – ichto, chanduíches.

Mas fica sem sentido a confusão que Philippe faz quando ouve, por exemplo, “le sien”, o seu, pronunciado como “le chien”, o cão.

Pode ser que a barreira da língua leve o filme a não ter, nos demais países que não os de língua francesa, o sucesso que teve na França. Em entrevista a Luiz Carlos Merten, do Estadão, o diretor Dany Boon reconheceu o problema, mas argumentou que o filme também foi muito bem, por exemplo, no mercado japonês.

Foi o terceiro filme dirigido por Dany Boon – os dois anteriores também foram comédias.

Não é um filme fino, chique, intelectual, sofisticado. Não. É simples, despretensioso, popular – e terrivelmente engraçado. Não é de se admirar que tenha caído no gosto popular em seu país.

         O país dos filmes autorais se rende ao filme simples

A pátria do cinema, o país em que foram feitos os primeiros filmes – pelos irmãos Auguste e Louis Lumière, em 1895 -, muito provavelmente o país com maior número de salas de cinema per capita do mundo (5.364, em 2006), provavelmente o país em que mais se ama o cinema (189 milhões de ingressos vendidos em 2006), quinto maior produtor mundial de filmes, a França, como todos os demais países do mundo, enfrenta a dura concorrência do cinema americano, o mais rico do mundo, o mais poderoso, com seu marketing brutal e imbatível.

Por isso, mesmo sendo a França um dos países que mais adoram o cinema autoral, não há como a crítica cair de pau quando se consegue um grande sucesso de público.

A revista Studio, por exemplo, no seu número de fevereiro de 2008, colocou Dany Boon na entrevista mensal feita por quatro espectadores, e, na seção de críticas, deu 3 estrelas em 4 ao filme. “Eis aí enfim uma grande comédia popular que não se contenta em aplicar receitas fáceis”, diz a crítica assinada por Thiery Cheze, para quem o roteiro joga com clichês para melhor ridicularizá-los. Repara que é um belo trabalho do diretor de fotografia Pierre Haïm, que vai tornando os cenários mais e mais iluminados, menos cinzentos, à medida em que o personagem central vai se habituando à sua nova cidade, e conclui: “Bienvenue chez les Ch’tis talvez não seja perfeito. Mas suscita uma tal empatia que se esquecem depressa seus pequenos defeitos.”

Uai: parecido com o que eu já havia escrito aqui.

Na tabelinha de estrelas dos diversos críticos da Studio, o filme teve 3 vezes 3 estrelas e 2 vezes 2 estrelas, num total de 4.

Dois meses depois, no número de abril, a revista dava mais uma página, agora falando dos números fantásticos – até o fechamento da edição, o filme havia chegado a mais de 12 milhões de ingressos vendidos. “Ch’thistorique”, brincava a abertura da matéria. E, em novembro de 2009, a revista, já com o novo nome de Studio Ciné Live, ao apresentar a lista das 20 personalidades do cinema francês, botava Dany Boon no número 1, e o ator Kad Merad no número 3. (Espremida entre os dois, na segunda colocação, a atriz francesa mais internacional dos últimos anos, Marion Cotillard.)

Pô: com 20,2 milhões de espectadores na França, A Riviera Não é Aqui foi vista por 30% da população do país. Claro que não dá para comparar França, país rico, e Brasil, país de PIB alto mas PIB per capita bem baixo, mas seria algo assim como um filme brasileiro ser visto por 57 milhões de pessoas. Se Eu Fosse Você 2, segunda maior bilheteria do cinema brasileiro pós Retomada, ou seja, pós renascimento dos escombros deixados pelo governo Collor, foi visto por 6 milhões de pessoas no pais.

Se Eu Fosse Você 1 e 2, como se sabe, são filmes com dois grandes astros da TV brasileira, Tony Ramos e Glória Pires, dirigidos por um homem de TV, e da TV Globo, Daniel Filho. O protagonista de A Riviera Não é Aqui, Kad Merdad, de origem argelina como o nome indica, é um grande astro da TV francesa.

Pode ser irônico, mas é a verdade verdadeira: para ter sucesso, hoje, os filmes precisam de ajuda da televisão. Antes tida como a maior inimiga do cinema, a televisão agora é sua maior aliada.

A Riviera Não é Aqui/Bienvenue Chez les Ch’tis

De Dany Boon, França, 2008

Com Kad Merad (Philippe Abrams), Dany Boon (Antoine Bailleul), Zoé Félix (Julie Abrams), Lorenzo Ausilia-Foret (Raphaël Abrams), Anne Marivin (Annabelle Deconninck), Philippe Duquesne (Fabrice Canoli), Guy Lecluyse (Yann Vandernoout), Line Renaud (a mãe de Antoine)

Roteiro Dany Boon, Alexandre Charlot e Franck Magnier

Fotografia Pierre Haïm

Música Philippe Rombi

Produção Pathé, TF1 Films, participação Région Nord-Pas-de-Calais. DVD Flashstar.

Cor, 106 min

***

9 Comentários para “A Riviera Não é Aqui / Bienvenue Chez les Ch’tis”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *