O cinema adora reverenciar os filmes noir dos anos 1940, 1950. Cliente Morto Não Paga, no original Dead Men Don’t Wear Plaid, que Carl Reiner lançou em 1982, é uma das muitas homenagens ao noir que o cinema já fez.
É, certamente, a mais boba, deliciosamente boba, a mais escrachada, a mais hilariante das homenagens a um gênero que se caracterizava não pelo bom humor, pela leveza, mas pela densidade, pela tragédia.
Não sei se o detetive Philip Marlowe se divertiria com a gozação perpetrada por Carl Reiner, um diretor nada chegado a uma sutileza. Marlowe, se não estou enganado, se a memória não me falha, era um sujeito serião, sisudo, um tanto taciturno, casmurro.
Mas é bem provável que Bogie, o grande Humphrey Bogart, que interpretou o detetive criado pelo escritor Raymond Chandler, desse boas risadas. Bogie tinha lá seu lado bem humorado.
Detetives que bebem muito, apanham muito
Diz o livro … Ismos – Para Entender o Cinema, de Ronald Bergan, belíssima edição da Editora Globo:
“Nos anos 1940, Hollywood criou densos filmes de crime, em preto e branco. A estética fez sucesso na França, que só teve acesso às produções após a Segunda Guerra Mundial. Os críticos franceses definiram como noir o gênero que, para eles, refletia a ansiedade e o cinismo do pós guerra.”
O livro continua:
“O Cinema Noir deriva, em parte, do Expressionismo da década de 1920, ‘importado’ da Alemanha para os Estados Unidos por cineastas como Billy Wilder, Otto Preminger, Robert Siodmak e Fritz Lang. No entanto, há influência ainda mais direta, na cenografia e na atmosfera, do romance policial americano de Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M Cain e Cornell Woolrich.”
Sim, é isso. O noir é uma invenção de Hollywood, para a qual foram fundamentais os diretores europeus – em especial os de língua alemã, como os quatro citados acima –, o expressionismo alemão dos anos 1920 e os textos desses escritores americanos que haviam criado um novo tipo de literatura policial, um novo tipo de detetive.
As influências atravessam o Atlântico – ao contrário do Titanic, que não conseguiu fazer sua primeira travessia.
Foi um americano – Edgar Allan Poe – que criou a literatura policial tal qual a conhecemos hoje. Mas aí os ingleses se apoderaram do gênero, primeiro com Arthur Conan Doyle, e depois com Agatha Christie.
Os americaníssimos Raymond Chandler e Dashiell Hammett se insurgiram contra aqueles detetives – Sherlock Holmes, Hercule Poirot – que resolviam os mistérios com suas celulinhas cinzas do cérebro. E então criaram os hard-boiled investigadores profissionais, os detetives particulares, os private-eyes que vão à luta, vão às ruas, apanham pra cacete, levam porrada, bebem feito gambás, acordam de ressaca profunda, e volta e meia comem (ou são comidos pelas) suas clientes, ou as conhecidas das clientes.
Chandler, Hammett e cia. queriam desglamourizar os romances policiais à la Sherlock Holmes. Queriam mostrar que crime não é questão de celulinhas cinzentas – é coisa muito pior, em geral ligada a um esquema gigantesco de corrupção que não se supunha existir no início das investigações.
Os detetives que eles criaram eram o oposto exato de Sherlock Holmes, Hercule Poirot. Eles não compreendiam muito bem os casos em que se envolviam; apanhavam, levavam muita porrada, ficavam um tanto perdidos no meio das pistas – e, em geral, conseguiam esclarecer os casos de maneira mais fortuita, ocasional, do que propriamente porque tinham certezas absolutas de tudo.
O cinema noir veio numa época de grande desilusão, angústia
O novo tipo de romance policial americano feito por Hammett e Chandler vinha como expressão de uma época de dúvidas, pesadelos, horrores.
Em Império do Sol, Steven Spielberg demarcou o fim da idade da inocência com o dia em que a bomba atômica explodiu em Hiroshima.
De uma certa maneira, a invenção do hard boiled detective por Hammett, Chandler & Cia. tem tudo a ver com isso.
Nos anos 1930, surgiu o nazismo. Nos anos 1940, boa parte do mundo lutou contra o nazismo – mas a vitória não saiu barata. Milhões de pessoas voltaram para seus países de origem completamente sem ilusões, depois de ver tanta crueldade, tanto absurdo.
O pós-guerra foi tão cruel que até mesmo o mais believer de todos os cineastas, Frank Capra, fez em 1946 um filme sombrio, quase dark – A Felicidade Não se Compra/It’s a Wonderful Life.
O filme noir resultou da junção dessa angústia pós-guerra com os romances dos detetives hard-boileds e com a experiência dos realizadores nascidos na Europa e que haviam se mudado para a América.
Um humor grosso, grosseiro, ginasiano
Cacete! Estou aqui a tentar falar do que é o noir só porque revi Cliente Morto Não Paga.
A primeira sensação que tive ao rever o filme agora foi: meu Deus, como é bobo!
É bobo demais. É infantil. É no máximo ginasiano.
As frases que o protagonista fala referindo-se ao seu próprio pinto… Credo, acho que quando a gente tinha 14 anos já acharia aquilo ali de baixo nível.
Carl Reiner não é, de fato, o sujeito mais sutil da face da terra. Na verdade, e em especial neste filme aqui, ele é grosso. Grosseiro. Ginasiano.
O filme começa com a voz em off do protagonista, o detetive particular, o privete-eye Rigby Reardon (o papel de Steve Martin), contando do dia em que uma mulher apareceu em seu escritório.
A mulher, interpretada por Rachel Ward, bate à porta do escritório. O detetive vai atender. A moça começa a falar com ele, lê uma notícia no jornal velho que ele está lendo – e desmaia.
O detetive Reardon leva a moça para o sofá. Olha para um quadrinho pregado à parede que traz uma advertência de Philip Marlowe – “Não se apaixone por uma cliente” –, mas não resiste: pega nos peitos da mulher.
A mulher acorda e pergunta o que ele está fazendo. O detetive diz que, ao cair desmaiada, ela teve seus peitos lançados fora do lugar, e ele então estava tentando recolocá-los no lugar certo.
Tenho profundo nojo do politicamente correto. Acho todo tipo de graça bem-vindo. Desde que seja engraçada.
O humor sexista de Carl Reiner em Cliente Morto Não Paga não me agradou, nesta nova revisão. Não porque seja sexista, ou politicamente correto. Mas porque é grosso. Não gosto de grosseria. Prefiro a inteligência, a sutileza.
Inteligência, sutileza, são coisas que não comparecem a Cliente Morto Não Paga.
O maior valor de Cliente Morto Não Paga é que ele dá vontade de rever os filmes originais
Mas estou parecendo noticiário de TV, deixando para o fim o que é mais importante.
O que torna este filme grosseiro, grosso, ginasiano algo interessante é o fato de que ele inclui trechos de diversos filmes noir dos anos 1940, início dos 1950.
O roteiro é assinado por Carl Reiner, George Gipe e Steve Martin,
A história que eles criaram a rigor é incompreensível – como, de resto, muitas das tramas dos filmes noir originais são confusas, difíceis, enroladas. Mas na verdade a história, a trama, não importa. O que importa é que vemos, entrecortados com a trama, inseridas na trama (às vezes bem à força, a fórceps), cenas de diversos grandes filmes noir.
Talvez o maior valor de Cliente Morto Não Paga seja a vontade que eles nos dá de rever cada um daqueles filmes noir de verdade que ele mostra.
Eis a relação dos atores e dos filmes originais que foram inseridos na trama (em ordem de entrada em cena):
Alan Ladd em Alma Torturada/This Gun For Hire, 1942;
Barbara Stanwyck em Uma Vida por um Fio/Sorry – Wrong Number, 1948;
Ray Milland em Farrapo Humano/The Lost Weekend, 1945;
Ava Gardner em Assassinos/The Killers, 1946, e Lábios que Escravizam/The Bribe, 1949;
Burt Lancaster em Assassinos/The Killers, 1946;
Humphrey Bogart em À Beira do Abismo/The Big Sleep, 1946, No Silêncio da Noite/In a Lonely Place, 1950, e Prisioneiro do Passado/ Dark Passage, 1947;
Cary Grant em Suspeita /Suspicion, 1941;
Ingrid Bergman em Interlúdio /Notorious, 1946;
Veronica Lake em Capitulou Sorrindo/The Glass Key, 1942;
Bette Davis em Que o Céu a Condene/Deception, 1946;
Lana Turner em Estrada Proibida/Johnny Eager, 1941, e O Destino Bate à Sua Porta/The Postman Always Rings Twice, 1946;
Edward Arnold em Estrada Proibida/Johnny Eager, 1941;
Kirk Douglas em Estranha Fascinação/I Walk Alone, 1948;
Fred MacMurray em Pacto de Sangue/Double Indemnity, 1944;
James Cagney em Fúria Sanguinária/White Heat, 1949;
Joan Crawford em Acordes do Coração/Humoresque, 1946;
Charles Laughton em Lábios que Escravizam/The Bribe, 1949;
Vincent Price em Lábios que Escravizam/The Bribe, 1949.
Os nomes de todos esses atores aparecem nos créditos finais, junto com os títulos originais dos filmes. Uma das melhores coisas de Cliente Morto Não Paga é rever, ao final, as cenas em que cada um deles aparece, com a identificação dos filmes de onde elas foram retiradas.
No final do filme, uma bela homenagem a Edith Head
Há ainda, nos créditos finais, uma bela homenagem. Este é o texto que finaliza os créditos:
“Dead Men Don’t Wear Plaid foi o ultimo filme de Edith Head. A ela e a todas as pessoas brilhantes – em técnica e criatividade – que trabalharam nos filmes dos anos 1940 e 1950 este filme é afetuosamente dedicado.”
Mais que uma figurinista, Edith Head (1897-1981) foi uma lenda. Durante mais de meio século, ela foi sinônimo de figurinos do cinema americano – assim como Hal Pereira foi sinônimo de diretor de arte. Edith Head trabalhou em 437 filmes! Ganhou 8 Oscars, fora outras 17 indicações.
Leonard Maltin deu 2 estrelas em 4 a Cliente Morto Não Paga: “Um filme de uma piada só, baseado nos melodramas noir dos anos 1940, tem o detetive Martin interagindo com clipes de vários filmes da época, e uma cliente muito viva (Ward). Engraçado no início, mas sem história e com personagens de papelão, cansa rapidamente; aficionados vão se divertir mais que o espectador mediano. Dedicado à famosa figurinista Edith Head, cujo último filme foi este.”
Vejamos o que diz Pauline Kael:
“Steve Martin estrela como um detetive particular nesta imitação de filmes de detetives; o filme junta cenas de Martin com outras de filmes dos anos 40, como White Heat, The Glass Key e Double Indemnity – colocando o ator em cenas do passado. O diretor, Carl Reiner, trabalhou com dedicados artesões e conseguiu um conjunto harmonioso; até os níveis do som foram cuidadosamente equilibrados. Reiner e os outros devem ter ficado tão orgulhosos de seu trabalho artesanal que não registraram como era monótono o feito em que operaram. Eles tiraram fora sua única grande chance de fricção cômica – o contraste entre o velho e o novo. Martin tem algumas boas gagues tolas, mas você poderá descobrir que está lutando para se manter acordado – e perdendo. Com Rachel Ward como a curvilínea femme fatale de voz grave.”
É isso aí. Concordo plenamente com Maltin e Dame Kael.
Anotação em junho de 2013
Cliente Morto Não Paga/Dead Man Don’t Wear Plaid
De Carl Reiner, EUA, 1982
Com Steve Martin (Rigby Reardon), Rachel Ward (Juliet Forrest), Carl Reiner ( o mordomo e depois o marechal VonKluck), Reni Santoni (Carlos Rodriguez)
e mais diversos atores importantes em cenas de filmes dos anos 1940
Argumento e roteiro Carl Reiner, George Gipe e Steve Martin
Fotografia Michael Chapman
Música Miklos Rozsa
Montagem Bud Molin
Figurinos Edith Head
No DVD. Produção Aspen Film Society e Universal Pictures. DVD Universal.
P&B, 84 min
R, **1/2
Empregada doméstica…
Ah, e aquele café da manhã para o Burt Lancaster… Pra mim é 4 estrelas, por causa dele e do Vincent Price 🙂