(Disponível em DVD.)
A Grande Ilusão, que Jean Renoir escreveu com Charles Spaak e realizou em 1937, não tem uma cena de batalha sequer – mas é um dos melhores filmes de guerra que já foram feitos. Na verdade, um dos melhores filmes que já foram feitos.
É uma absoluta obra de arte, uma obra-prima.
Tinha visto há muito, muito, muito tempo, e na época não anotei nada. Ao rever para escrever sobre ele agora, quase como se fosse pela primeira vez, fui me surpreendendo com o brilho do filme a cada momento.
A Grande Ilusão tem uma sequência maravilhosa, esplendorosa, impressionante atrás da outra. Uma atrás da outra, sem parar.
O historiador George Sadoul fez uma sintética, correta sinopse no grande verbete sobre A Grande Ilusão em seu Dicionário de Filmes:
“Num campo de prisioneiros alemão, por volta de 1916-17, estão detidos vários oficiais: o aristocrata Boieldieu (Pierre Fresnay), o contramestre parisiense Maréchal (Jean Gabin), o banqueiro judeu Rosenthal (Marcel Dalio), etc. São transferidos para uma fortaleza comandada por von Rauffenstein (Erich von Stroheim), que confraterniza com Boieldieu, mas (spoiler, spoiler) quando dá cobertura à (spoiler, spoiler).
(Peço desculpas por não reproduzir toda a sinopse, mas cada vez fico mais preocupado com a necessidade de evitar que os meus comentários revelem fatos das histórias dos filmes que acontecem mais para o final da narrativa.)
“Essa obra idealista e pacifista surgiu como um aviso”
Gostaria de começar este comentário com algumas frases de bons, respeitados críticos.
“O clássico tratado de Renoir sobre guerra (…). Belas atuações realçam um roteiro eloquente.” (Leonard Maltin, que dá 4 estrelas em 4 ao filme.)
“Na forma, A Grande Ilusão é uma história de fuga, mas quem pensaria assim? É como dizer que Édipo Rei é uma história policial. Entre outras coisas, o filme é um estudo sobre as necessidades humanas e as sutis barreiras de classe entre um grupo de prisioneiros e seus captores durante a Primeira Guerra Mundial. (…) É uma das verdadeiras obras-primas das telas. (…) As atuações de von Stroheim, Fresnay e Gabin são em três diferentes estilos de representar, elas iluminam uma à outra.” (Pauline Kael, que não dá cotação – mas chama o leitor para mais considerações em um de seus livros, I Lost it at the Movies.)
“A universalidade de sua mensagem, seu sopro humanista, sua generosidade, seu humor autorizam todas as interpretações. Seu poder de emoção (Fresnay, Gabin, Dalio, Stroheim estão impressionantes) faz dele a obra-prima que bastaria para dar a glória a Renoir.” (Norbert Multeau, no Guide des Flms de Jean Tulard, que dá a cotação máxima de 4 estrelas.)
“A riqueza ideológica do filme está em sua ambiguidade. Nem a esquerda ‘progressista’, nem a direita ‘reacionária’ poderiam reivindicá-lo, como têm a tentação de fazer. O que é certo é que ‘todos os democratas do mundo devem ver este filme’, como disse (Franklin D.) Roosevelt (o presidente dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial).” (Claude Beylie, As Obras-Primas do Cinema.)
“Um estudo clássico de homens presos por Jean Renoir (…); um fascinante retrato de costumes, cortesias e atitudes militares que se evaporaram com a chegada da Segunda Guerra Mundial.” (CineBooks’ Motion Picture Guide, que dá 5 estrelas em 5.)
“A mensagem do filme de Renoir foi tão pungente que, quando os alemães ocuparam a França, A Grande Ilusão foi uma das primeiras coisas a serem confiscadas. Era ‘O inimigo público número um em forma de filme’, anunciou o ministro da Propaganda Joseph Goebbels, ordenando que o negativo original fosse apreendido.” (Roger Ebert, A Magia do Cinema.)
“Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, essa obra idealista e pacifista surgiu como um aviso. Com seu senso habitual de narrativa, Jean Renoir se apega a um microcosmo, e encontram-se em seu campo alemão de prisioneiros de guerra todas as características sociais da França do entre-guerras. (Jean-Claude Guilbert, Le Petit Larousse des Films.)
O melhor filme sobre as diferenças entre as classes
A Grande Ilusão, o filme em si, e mais os acontecimentos ao redor dele, sua “história de vida”, o fato de que os negativos originais desapareceram durante a Segunda Guerra Mundial, é tudo tão grande que daria um livro.
François Truffaut, que tinha uma admiração infinita por Jean Renoir. escreveu um belíssimo texto sobre o filme em 1974, que está entre seus escritos reunidos no livro O Prazer dos Olhos, lançado no Brasil em 2006 pela Jorge Zahar Editor, e a vontade que dá é de transcrevê-lo na íntegra aqui. Para o relançamento mundial do filme, creio que em 1958, o próprio Renoir deu um depoimento de quase cinco minutos, que foi incluído no DVD do filme lançado aqui pela DVD Continental, e a vontade que dá é de transcrever também na íntegra o que diz o autor.
E há os diálogos, os fantásticos, extraordinários diálogos, uma das maiores qualidades do filme – e é impossível não transcrever aqui ao menos alguns deles.
Mas eu gostaria, agora, de registrar um pouco do que o filme me passou, nesta revisão agora.
Para mim, A Grande Ilusão é o filme que mais maravilhosamente fala das diferenças entre as classes sociais. Mais ainda do que os dois filmes baseados na peça Pigmalião, de George Bernard Shaw, que trata exatamente desse tema numa das sociedades que mais dão importância a ele, a britânica – Pìgmalião (1938), e a versão em cima do musical da Broadway, My Fair Lady (1964). Mais do que os vários grandes filmes italianos com a visão marxista da luta de classes, como Os Companheiros (1963), A Classe Operária Vai ao Paraíso (1971), Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974).
A história criada por Jean Renoir e Charles Spaak mistura, embaralha a diferença entre as classes sociais com a diferença entre nacionalidades, entre pessoas de países em guerra – e o resultado da junção é fascinante, emocionante, comovente.
Nos filmes italianos de maneira geral, e também em muitos dos franceses, em geral feitos por realizadores comunistas, socialistas ou no mínimo de esquerda, os pobres, os das classes trabalhadoras são sempre apresentados como bons, e os ricos, como ruins da cabeça e doentes dos pés.
Jean Renoir passa longe, mas muito longe, abençoadamente longe desse maniqueísmo.
A classe social é mais forte que o patriotismo
Claro: o tenente Maréchal (o papel de Jean Gabin, que em 1937 já era um grande astro, e viria a ser um monstro, uma lenda viva do cinema) é o grande herói da história, a figura mais simpática, admirável de todos os personagens, com aquela sua força, sua firmeza de caráter. Seguramente é com ele que Renoir mais se identifica – embora Maréchal seja um operário, um homem das classes trabalhadoras, enquanto o cineasta era filho do pintor famosérrimo e rico.
Diz sobre Maréchal o crítico Jean-Claude Guilbert no Le Petit Larousse des Films: “Jean Gabin encarna aqui o personagem mais próximo do próprio Renoir, na linha de um mito erigido com Pépé le Moko. (Pépé le Moko é o protagonista do filme que leva seu nome, no Brasil O Demônio da Argélia, dirigido por Julien Duvivier naquele mesmo ano de 1937 e interpretado por Gabin.) Maréchal corresponde ao francês médio tal como poderia se representar então: cheio de bom senso, boca grande, rude, de coração bom e de patriotismo indefectível.”
O acaso faz com que o tenente Maréchal conheça, na prisão alemã onde estão soldados franceses, ingleses, americanos, russos, o capitão de Boeldieu e o tenente Rosenthal – os papéis, respectivamente, de Pierre Fresnay e Marcel Dalio. Vão conviver durante meses e meses nos mesmos alojamentos.
De Boeldieu é um aristocrata, um homem refinado, elegante – em praticamente tudo diferente, quase o oposto de Maréchal. Rosenthal é um judeu de família de banqueiros, muito mais rico naquele momento do que de Boeldieu, mas sem aquela aura de riqueza que vem de séculos, e sem a aceitação unânime da sociedade – o antissemitismo era uma marca na França de entre guerras. (Isso aparece, en passant, até em uma obra menor de Renoir, A Noite da Encruzilhada/La Nuit du Carrefour, de 1932, o primeiro filme com o comissário Maigret de Georges Simenon.)
Prossegue o crítico Jean-Claude Guilbert “Os diálogos de Charles Spaak se encarregam de fazer os protagonistas franceses com entonações e palavras diferentes, que denotam mais que longos discursos o fosso que os separa. Último vestígio da sedimentação provocada pela Revolução, Boeldieu simboliza uma aristocracia em deliquescência, que não pode se reconhecer em um mundo em que a honra caiu em desuso.”
Um operário, um aristocrata, um filho de banqueiros judeus.
Completa o grupo dos quatro personagens centrais de A Grande Ilusão o capitão von Rauffenstein, ele também um aristocrata, “um oficial de carreira do Exército Imperial Alemão”, como se define. O lendário Erich von Stroheim faz o capitão alemão – e é possivelmente uma das interpretações mais marcantes, mais admiradas, mais reverenciadas da História do Cinema. Dela diz Roger Ebert: “Até muitos que não assistiram ao filme conseguem identificar fotos stills do ferido ás da aviação von Rauffenstein, com o seu corpo retesado por um suporte cervical que lhe prendia o pescoço e as costas; seu olho cerrado observando tudo através de um monóculo.”
Depois de gravemente ferido, e impedido de pilotar, von Rauffenstein continua a servir ao Exército Imperial Alemão como comandante de uma prisão de inimigos tomados em batalha, numa belíssima e antiquíssima fortaleza. Aqueles três oficiais franceses – o de origem nobre, o judeu milionário e o operário – são transferidos para lá. E von Rauffenstein vai desenvolver um relacionamento quase fraterno com seu semelhante, seu igual, o aristocrata francês de Boeldieu.
O compatriota operário Maréchal explicita para Rosenthal, com todas as letras, que não se sente nada à vontade na companhia de de Boeldieu – mas o aristocrata alemão trata o francês como se fosse seu parente. Um é carcereiro, o outro é encarcerado, suas pátrias estão em guerra, mas eles são sembables, quase complices, praticamente frères.
O show alegre é interrompido pela “Marselhesa”
A transferência de vários prisioneiros – entre eles Maréchal, de Boeldieu e Rosenthal – para a fortaleza medieval comandada por von Rauffenstein acontece ali pela metade da narrativa. Antes, eles haviam estado em um imenso complexo para prisioneiros de guerra, em que dividiam com vários outros oficiais uma ampla cela-dormitório.
Maréchal e de Boeldieu são capturados juntos; depois que estão instalados na grande cela-dormitório, um dos oficiais conta para Maréchal que os presos daquele local estão construindo um túnel, que já está bastante adiantado – e pergunta se ele acha que o capitão de Boeldieu é digno de confiança, e pode ser também informado sobre o plano de fuga. Mais: será que ele, com aquele jeito de nobre, aceitará entrar no cronograma em que a cada noite um dos presos trabalha na construção do túnel?
De Boeldieu aceita com a maior naturalidade meter suas nobres mãos na tarefa de escavar a terra.; “Para mim é simples”, diz ele, a certa hora. “Um campo de golfe existe para se jogar golfe. Um campo de tênis é para o tênis. Um campo de prisioneiros é para fugir.”
Ah, diabo, os diálogos que Jean Renoir e Charles Spaak escreveram para aqueles ótimos atores!
De início, naquele primeiro campo de prisioneiros, há diálogos leves, bem-humorados. Os oficiais não chegam a ser maltratados, as condições da prisão não são terríveis – e ainda há as comidas que a família de Rosenthal envia, e ele divide alegremente com os colegas. Os oficiais decidem preparar uma apresentação teatral, para a qual convidarão presos de outras nacionalidades e também oficiais alemães. Chega de Paris um baú com roupas de mulheres – na apresentação, haverá um espetáculo em que vários dos franceses, vestidos de mulheres, dançarão como se estivessem em um cabaré.
Rola este delicioso diálogo, quando estamos com 27 minutos de filme:
Oficial professor (Jean Dasté), pegando uma peça no baú de roupas: – “Parece o vestido de uma criança!”
Maréchal: – “As saias das mulheres estão curtas agora. Logo abaixo dos joelhos.”
Cartier, o oficial ator (Julien Carette): – “Ouvi falar isso. Gostaria de estar lá para ver!”
Alguém comenta que as mulheres também estão usando cabelos mais curtos. E um outro brinca uma frase que faria as feministas de hoje amaldiçoarem o filme: – “Ih, se a gente deitar com uma mulher de cabelo curto vai parecer que é um rapaz… Quando a gente não está lá para controlar, as mulheres fazem besteiras…”
Antes da noite da apresentação teatral, chega a notícia de que os alemães haviam tomado Douaumont – e aquilo abala a moral dos oficiais.
Mas quando a apresentação acontece, tem todo o jeito de um grande sucesso. Renoir filma aquele bando de homens travestidos cantando no palco como se estivessem no Moulin Rouge – e a sequência é absolutamente leve, engraçada, deliciosa.
Até que Maréchal irrompe no palco segurando um papel e anuncia: – “Tomamos Douamony de volta!”
Há um silêncio sepulcral que dura um, dois segundos. A câmara mostra os oficiais alemães sentados na platéia, surpresos com a novidade.
Cartier, o oficial ator, que havia sido o solista em um número musical antes da entrada dos vários homens travestidos, começa a cantar “A Marselhesa”. Todos os franceses o acompanham.
A sequência é de emocionar um frade de pedra.
Corta, e Maréchal está preso em uma solitária.
O operário: “Que seja a última guerra”. O ricaço: “Que ilusão!”
Roger Ebert abre o texto sobre A Grande Ilusão em seu livro A Magia do Cinema lembrando que a sequência de Casablanca em que se canta A Marselhesa diante de um monte de nazistas é, evidentemente, uma influência do filme de Jean Renoir.
Verdade. E, diacho, como é também emocionante aquela cena do grande clássico de Michael Curtiz!
Da mesma maneira – diz Ebert – com que a escavação do túnel em A Grande Ilusão foi a influência para a escavação do túnel em Fugindo do Inferno/The Great Escape, o gigantesco sucesso dirigido por John Sturges, com Steve MacQueen, James Garner, Charles Bronson, James Coburn.
Só lembrando as datas: A Grande Ilusão, 1937. Casablanca, 1942. Fugindo do Inferno, 1963.
Roger Ebert não fala sobre os homens travestidos de mulheres, mas também nisso Jean Renoir foi um precursor. Não sei dizer qual foi o primeiro filme em que homens apareceram travestidos de mulher, mas lembro que Cary Grant foi visto assim em outro filme de guerra, uma comédia do metre Howard Hawks, A Noiva Era Ele/I Was a Male War Bride, de 1949. Muito mais cedo ainda, o mesmo Hawks havia botado Cary Grant em roupas de mulher em outra comédia, a amalucada, maluquérrima Levada da Breca/Bringing up Baby – mas também aquele clássico da screwball comedy de Hollywood é posterior a este A Grande Ilusão. É de um ano depois, 1938. Um ano antes do início da Segunda Guerra Mundial, a de 1939-1945.
Na época da guerra de 1914-1918, essa de que trata A Grande Ilusão, dizia-se que era a guerra para acabar com todas as guerras.
O operário Maréchal diz para o milionário Rosenthal: – “Temos que terminar essa porra dessa guerra, e que ela seja a última!”
É da resposta de Rosenthal que sai o título do filme: – “Que ilusão!”
A resposta parece uma premonição de Jean Renoir e Charles Spaak. Na guerra que começaria dois anos após o lançamento de A Grande Ilusão, seis milhões de pessoas do povo de Rosenthal seriam assassinadas.
O soldado alemão tem um gesto de simpatia pelo francês
Depois de dias na solitária para onde foi levado após incitar os presos franceses diante de oficiais alemães, Maréchal começa a berrar, a urrar de dor, de angústia. Um soldado alemão, um carcereiro, entra na sala para ver o que está acontecendo. É mais uma das tantas e tantas sequências cinematograficamente brilhantes e humanamente emocionantes desta obra-prima.
Um Maréchal-Jean Gabin de barba por fazer, rosto tomado pela angústia, berra que não aguenta mais, que quer ver pessoas, que quer ouvir pessoas falando a sua língua.
O soldado alemão seguramente era um operário, um trabalhador, assim como Maréchal. Diferentemente de de Boeldieu, de von Rauffenstein, não era um militar de carreira. Havia sido recrutado, obrigado a lutar em nome de seu país.
Ele entrega para seu sembable, que poderia ser complice, seu frère, uma gaita – e sai da cela.
Um colega dele pergunta por que o preso estava gritando tanto. Ele responde: – “Esta guerra está durando tempo demais”.
Fica por ali – e, quando ouve o som da gaita, dá um sorriso.
Ah, meu… Que maravilha de obra-prima do cinema!
Será o fim dos aristocratas, prevê o aristocrata alemão
Na outra ponta da estrutura de classes sociais, von Rauffenstein faz rapapés para de Boeldieu.
Para o capitão aristocrata e seus dois companheiros, o comandante da fortaleza reserva um belo aposento. E ainda pede desculpas: – “Sinto muito não poder alojá-lo sozinho”. Claro, seria um privilégio inadmissível. Ao que o francês responde: – “Agradeço, mas de qualquer modo não poderia aceitar.”
Algum tempo depois, soldados alemães fazem uma rigorosa busca no quarto dos três oficiais franceses, à procura de sinais de que poderiam estar preparando algo indesejado. E estavam certos eles, porque Maréchal e Rosenthal estavam preparando uma grossa e comprida corda a ser usada numa tentativa de fuga. O comandante von Rauffenstein entra no quarto e pergunta para de Boeldieu:
– “O senhor me dá sua palavra de honra de que não há nada contra o regulamento neste quarto?”
– “Sim”, mente o aristocrata. “Sim, mas por que a minha?”
E o alemão: – “A palavra de um Maréchal? De um Rosenthal?”
A palavra de inimigo aristocrata vale – a de um operário e a de judeu não.
Mais adiante, os dois aristocratas estão conversando nos aposentos particulares do comandante da fortaleza.
Capitão de Boeldieu: – “Por que o senhor faz uma exceção me convidando para vir aqui?”
Capitão von Rauffenstein: – “Porque seu nome é Boeldieu, oficial de carreira do Exército da França. E eu sou Rauffenstein, oficial de carreira do Exército Imperial da Alemanha.”
Capitão de Boeldieu: – “Mas meus camaradas também são oficiais.”
Capitão von Rauffenstein: – “Um ‘Maréchal’ e um ‘Rosenthal’, oficiais?”
Capitão de Boeldieu: – “Eles são ótimos soldados.”
Capitão von Rauffenstein: – “Um charmoso legado da Revolução Francesa”.
Capitão de Boeldieu: – “Nem o senhor nem eu podemos parar a marcha do tempo.”
Capitão von Rauffenstein: – “Boeldieu, eu não sei quem vai vencer esta guerra, mas seja qual for o resultado, será o fim dos Rauffensteins e dos Boeldieus.”
Capitão de Boeldieu: – “Nós não somos mais necessários.”
Capitão von Rauffenstein: – “Não é uma pena?”
Capitão de Boeldieu: – “Talvez”.
Que absoluta maravilha! Luchino Visconti, o aristocrata e comunista que fez um dos mais belos filmes sobre a decadência da aristocracia européia, O Leopardo (1963), seguramente babou com essa sequência do filme do não aristocrata e não comunista Renoir.
“Em 1914 não havia Hitler”, lembra Jean Renoir
“Senhoras e senhores, meu nome é Jean Renoir, sou o autor do filme A Grande Ilusão e estou muito feliz por poder apresentá-los a vocês”, diz o realizador, sentado diante de uma mesa de trabalho, olhando para a câmara, ou seja, para os olhos dos espectadores (na foto abaixo), no depoimento que deu para o relançamento mundial do filme, no final dos anos 50, creio que em 1958. O realizador fala em inglês, para atingir mais facilmente o maior mercado consumidor do mundo, o norte-americano.
“Se hoje me foi possível fazer isso é porque tive sorte. O negativo do filme foi perdido, diferentes partes foram cortadas por censores de diferentes países ao redor do mundo. Eu estava prestes a desistir quando, inesperadamente, recebi uma carta de uma senhora encantadora, que era capitã do Exército dos Estados Unidos, mais especificamente do departamento de filmografia do Exército. E ela encontrou o negativo do filme em um barracão em Munique. Ele havia sido levado para a Alemanha pelos nazistas durante a ocupação de Paris. O negativo estava sem cortes, novo em folha, e era o negativo da versão original do filme!”
Há aqui um corte; no início do depoimento, víamos Renoir em plano americano. Agora, a câmara se aproximou mais de seu rosto:
“Talvez vocês fiquem surpresos com certas situações, certas cenas que mostram prisioneiros franceses – poderiam ser ingleses, belgas, russos – se dando muito bem com os alemães. É preciso lembrar que a história acontece em 1914…”
Aqui, claro, há um erro do próprio Renoir; 1914 foi o ano no início da guerra; a ação do filme se passa quando a guerra já estava acontecendo havia algum tempo, em 1916 ou 1917.
“… e que em 1914 não havia Hitler. Em 1914, os nazistas ainda não haviam estragado o espírito do mundo. De uma certa maneira, é possível dizer que a guerra de 1914 foi quase uma guerra de gentlemen. Eu era um piloto, e tive um grande amigo, um bom lutador, o capitão Pinsard. Ele foi derrubado sete vezes pelos alemães, e foi levado sete vezes para campos de prisioneiros, e fugiu sete vezes. A história de A Grande Ilusão é baseada nas visões do capitão Pinsard.”
Renoir pega fotos e as expõe, uma a uma, para a câmara: – “Agora, gostaria de apresentar os atores. Aqui estão Pierre Fresnay e Jean Gabin; Jean Gabin está vestindo minha velha farda; eu também mudei um pouco desde aquele tempo.” (Aqui, Renoir, já bem gorducho, dá um sorriso.)
“Aqui está Erich von Stroheim, que faz o papel do comandante do campo de prisioneiros, explicando que é absolutamente impossível fugir daquela fortaleza.”
“A Grande Ilusão é a história de pessoas como eu, como você, capturadas pela essa horrível tragédia chamada guerra, mas também é a história das relações humanas, e esta questão é tão importante que, se não for resolvida, nós teremos que dizer adeus ao nosso belo mundo. É por isso que acredito que A Grande Ilusão é atemporal, e decidi exibi-lo novamente.”
Renoir levou três anos à procura de um produtor
Vou transcrever agora o início do texto que François Truffaut escreveu em 1974 sobre o filme, como prefácio do livro Classiques du Cinéma, e que foi incluído em O Prazer dos Olhos, lançado na França em 2000 e no Brasil em 2006.
Como depois de um texto de Truffaut não faz sentido escrever mais nada, faço aqui um rapidíssimo registro. A trilha sonora do filme é de autoria do lendário compositor húngaro Joseph Kosma (1905-1969), que compôs a melodia para o poema de Jacques Prévert “Les Feuilles Mortes”, uma das mais belas canções que há.
E Charles Spaak (1903-1975), belga de Bruxelas, tem 121 títulos como roteirista e/ou autor de diálogos em sua filmografia, entre 1929 e 1974. Escreveu para filmes de André Cayatte, Julien Duvivier, Marcel Carné, Philippe de Broca. É o pai de Catherine Spaak, aquela atriz de beleza espantosa.
E aqui vai o início do texto, recheado de informações interessantes, de François Truffaut sobre a obra-prima de seu ídolo.
“A Grande Ilusão é um dos filmes mais célebres do mundo, um dos mais amados; seu sucesso foi imediato em 1937, e no entanto foi, para Jean Renoir, um dos mais difíceis de realizar, como ele próprio conta em seu livro de recordações Ma Vie et mes Films: ‘A história da minha luta para obter financiamento para A Grande Ilusão poderia ser tema de um filme. Carreguei o manuscrito durante três anos, visitando os escritórios de todos os produtores franceses ou estrangeiros, convencionais ou de vanguarda. Sem a intervenção de Jean Gabin, nenhum deles teria se arriscado na aventura. Ele me acompanhou em várias tentativas. Encontramos afinal um financiador que, impressionado com a confiança cega de Jean Gabin, aceitou produzir o filme.’
“Se A Grande Ilusão não é um filme autobiográfico, suas raízes o são fortemente, pois Jean Renoir, ferido em 1915 quando era caçador alpino, mais tarde passou a integrar uma esquadrilha de observação. Perseguido em pleno céu durante uma missão por um avião germânico, o velho aparelho Caudron pilotado por Renoir foi salvo in extremis pela intervenção de um avião de caça francês pilotado pelo oficial Pinsard. Dezoito anos mais tarde, Jean Renoir estava nas Martigues rodando Toni quando o acaso o colocou em presença de seu salvador. Como as filmagens eram perturbadas pela proximidade de um campo de aviação, cuja balbúrdia comprometia as tomadas de som do filme, Jean Renoir fez diligências junto às autoridades militares, vendo-se, assim, diante do ex-oficial, agora general Pinsard: ‘Ele e eu adquirimos o hábito de jantar juntos sempre que tínhamos folga. Durante esses encontros, ele me contava suas aventuras de guerra. Fora abatido sete vezes pelos alemães. Nas sete vezes, conseguira aterrissar são e salvo. Nas sete vezes, conseguira fugir. A história de suas evasões me pareceu um bom trampolim para um filme de aventuras. Tomei nota dos detalhes que me pareciam mais típicos e arrumei aquelas folhas nas minhas pastas, com a intenção de fazer um filme.’
“Em seguida, Jean Renoir pediu a Charles Spaak para ajudá-lo a estabelecer um primeiro tratamento do que iria se tornar A Grande Ilusão, mas, como não gostava de ficar inativo, realizou primeiro O Crime do Senhor Lange, A Vida é Nossa, Um Dia no Campo e Bas-fonds (1936), que marca sua primeira colaboração com Jean Gabin, colaboração importante se pensarmos que prosseguirá com A Grande Ilusão (1937), A Besta Humana (1938) e O Can-can Francês (1954).
“Muita gente se indagou sobre a significação do título, A Grande Ilusão, que Renoir dera a seu filme depois de terminado; no entanto, basta escutar bem as últimas frases do diálogo, quando Maréchal (Jean Gabin) e Rosenthal (Marcel Dalio) vão se separar na neve na fronteira suíça: ‘Maréchal:- É bom que essa guerra de merda termine… esperando que seja a última. Rosenthal:- Ah, que ilusão!’
“A Grande Ilusão é portanto a idéia de que aquela guerra é a última, mas também a última ilusão da vida, a ilusão que todos têm do papel que desempenham na vida, e realmente acho que A Grande Ilusão poderia ter-se chamado A Regra do Jogo (e vice-versa), tanto é verdade que esses dois filmes, e muitos outros de Jean Renoir, referem-se implicitamente a esta frase de Pascal, que ele adora citar: ‘O que interessa mais ao homem é o homem.’”
Anotação em 7/2023
A Grande Ilusão/La Grande Illusion
De Jean Renoir, França, 1937
Com Jean Gabin (tenente Maréchal),
Pierre Fresnay (capitão de Boeldieu),
Erich von Stroheim (capitão von Rauffenstein),
Marcel Dalio (tenente Rosenthal)
e Dita Parlo (Elsa, a fazendeira alemã), Julien Carette (Cartier, o ator do show), Georges Péclet (o chaveiro), Werner Florian (sargento Arthur), Jean Dasté (o professor), Sylvain Itkine (tenente Demolder), Gaston Modot (o engenheiro), Little Peters (a filhinha de Elsa)
Argumento, diálogos e roteiro Charles Spaak & Jean Renoir
Fotografia Christian Matras
Música Joseph Kosma
Montagem Marthe Huguet, Marguerite Renoir e, da versão de 1958, Renée Lichtig
Direção de arte Eugène Lourié
Figurinos René Decrais
Assistente de direção Jacques Becker
Produção Albert Pinkovitch, Frank Rollmer, Réalisation d’Art Cinématographique (RAC);
P&B, 117 min (1h57)
R, ****
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