(Disponível na Amazon Prime Video em 3/2023.)
É surpreendente, quase inacreditável – mesmo em se tratando de Steven Spielberg, um dos maiores realizadores de cinema da História – como Os Fabelmans consegue, já nas sequências iniciais, desenhar para o espectador com absoluta perfeição os três personagens principais da história – a história da infância e da adolescência do próprio cineasta.
Sam, seis anos de idade, está com seus pais, Burt e Mitzi, na fila na calçada de um grande cinema – em Nova Jersey, no dia 10 de janeiro de 1952, como especifica um letreiro. Vai ser a primeira vez que o garoto entra em uma sala de cinema. O filme é O Maior Espetáculo da Terra/The Greatest Show on Earth, de Cecil B. DeMille, aquele que acompanha um circo, com James Stewart, Charlton Heston, Gloria Grahame, Dorothy Lamour.
Sam está um pouco assustado com a coisa de entrar numa grande sala em que as luzes vão estar todas apagadas. O pai e a mãe tentam – cada um à sua maneira – convencê-lo de que ele vai adorar, vai ver um monte de coisas bonitas, alegres.
– “Coisas alegres, como a luz vindo de uma gigantesca lanterna. As fotografias passam pela luz depressa, muito depressa. 24 fotos a cada segundo. No seu cérebro, cada fotografia fica por cerca de quinze-avos de segundo. Isso se chama persistência da visão. As fotografias passam mais depressa do que o seu cérebro consegue se livrar delas, e esse é o motivo pelo qual o projetor de cinema nos faz acreditar que as imagens paradas estão se movendo. Imagens em movimento.”
(Imagens em movimento. Em inglês, é mais direto ainda: “motion pictures” – o troço que passou a ser mais conhecido como movie, ou film. Filme, fita, na Última Flor do Lácio, Inculta e Bela.)
O cérebro de Sam, seis anos de idade, provavelmente ainda não havia conseguido absorver direitinho o que o Burt Fabelman (o papel de Paul Dano) acabava de dizer, quando então a mãe`(o papel de Michelle Williams) puxa o garoto para olhar para ela – enquanto a câmara do diretor de fotografia Janusz Kaminski faz um suave, elegante, movimento em volta dela mesma e se alça um pouco mais para cima, para mostrar mais do alto, ou seja, em contre-plongée, o rosto de Mitzi, que se abaixou para falar com o garoto:
– “Filmes são sonhos dos quais você nunca se esquece. Você vai ver. Quando terminar, você estará sorrindo à toa.”
Ainda não chegamos a 3 minutos do filme. Vamos entrar com os Fabelmans no cinema, vamos ver algumas cenas de grande impacto – em especial aquela em que uma locomotiva em alta velocidade joga para o alto um carro que estava à sua frente nos trilhos e em seguida bate contra uma outra composição.
Com menos de 10 dos 151 minutos de duração de Os Fabelmans, já sabemos que Burt é um engenheiro, que raciocina o tempo todo como um engenheiro; que Mitzi é uma mulher de imensa sensibilidade, amante das artes, uma sonhadora. E que o garoto Sam, bem mais parecido com a mãe do que o pai, apaixonou-se loucamente, perdidamente, fatalmente, pelas moving pictures, os movies, os films.
Os 141 minutos que virão depois passam depressa, bem depressa, como as coisas boas da vida sempre passam.
Uma família calorosa, carinhosa, afetuosa
A família que representa a sua no filme autobiográfico é mostrada por Spielberg como um tanto excêntrica, levemente, suavemente desajustada ou no mínimo fora do padrão mais “normal”, mas, sobretudo, calorosa, carinhosa, afetuosa. Os Fabelmans se amam – e, diabo, existe uma característica mais importante em uma família do que o fato de que todos se amam, e são calorosos, e demonstram o amor uns pelos outros?
Mitzi – a gente vai vendo – teve boa formação como pianista clássica; não chegou a iniciar uma carreira, porque se casou e logo veio Sam, e em seguida vieram Natalie e Reggie. Mais tarde, ainda viria a raspa do tacho, como se dizia antigamente, Lisa. Mas, mesmo cuidando da casa e da filharada, ela sempre manteve o gosto pelo piano, a paixão por Bach.
Inteligente, centrado, aplicado, o engenheiro Burt enveredou-se logo pelo campo ainda muito novo e pouco conhecido da computação. E foi se dando bem profissionalmente.
Burt tinha um grande e inseparável amigo, que trabalhava com ele na RCA, em Nova Jersey, naquele início dos anos 50 – Bernie Loewy (o papel de Seth Rogen). Bernie vivia jantando na casa dos Fabelmans, passando as tardes de domingo com a família – e os meninos o chamavam, com toda a lógica, de tio. A mãe de Burt, Hadassah Fabelman (Jeannie Berlin), uma senhorinha rígida, sisuda, não gostava muito disso: nós a vemos, em um jantar, lembrando os netos – na frente de Bernie – que ele não era da família.
Mas a Vovó Fabelman não terá importância na história. Bem ao contrário de Bernie.
Quando surge uma belíssima chance na carreira de Burt, um emprego na General Electric em Phoenix,Arizona, Mitzi insiste em que o marido deve levar Bernie para trabalhar junto dele. E então lá se vão os Fabelmans, titio Bernie inclusive, rumo ao Oeste.
Bem mais tarde, surgirá uma ainda mais fantástica oportunidade profissional na carreira de Burt – um emprego na já então imensa e respeitabilíssima International Business Machine, a IBM, no Norte da Califórnia.
O filme se passa nos três lugares – New Jersey no começo, Arizona no meio e, na parte mais para o final, Califórnia. Mas creio que a maior parte da ação é o período longo em que os Fabelmans moraram no Arizona – é lá que os três filhos mais velhos deixam de ser crianças e viram adolescentes. É lá, portanto, que é feita a substituição dos atores que fazem os filhos de Burt e Mitzi, Sai o garotinho Mateo Zoryan Francis-DeFord, entra o jovem Gabriel LaBelle.
No papel de Natalie, sai Alina Brace, entra Keeley Karsten. No de Reggie, sai Birdie Borria, entra Julia Butters. A atriz-mirim que faz a caçulinha Lisa é Sophia Kopera
Exatamente como os Fabelmans do filme, os Spielbergs – o engenheiro Arnold, Leah e os filhos Steven, Anne, Nancy e Sue – passaram vários anos em Phoenix, Arizona. (Mais adiante vou tentar registrar outras coincidências entre a vida real e o que o cineasta mostra no seu filme.)
O garotinho dominou as artes de filmar e montar
Ainda bem garotinho, ainda morando em Nova Jersey (e portanto ainda interpretado pela graça desse menino Mateo Zoryan), Sam se mostra um fantástico talento no trato das máquinas filmadoras caseiras e dos filmes de celulóide em que elas gravavam as imagens paradas que, reproduzidas velozmente, 24 quadros por segundo, nos dão a impressão de que estão movendo.
O danado do garotinho não apenas vai adquirindo cada vez mais o domínio de filmar – seja lá o que for, as irmãs fazendo caretas, as irmãs fantasiadas de múmias egípcias, inteiramente cobertas com papel higiênico, todos os rolos de papel higiênico da casa usadas para um filmetinho –, como também da arte ainda mais complexa de montar.
É fascinante, é fantástico: desde garotinho, Sam aprende a arte da montagem, que muitos na profissão entendem como a parte mais importante de todo o processo de se fazer um filme – e Spielberg nos mostra como seu alter-ego Sam vai fazendo a coisa. Ele corta os negativos, separando uma tomada da outra, para depois unir (edit, em Inglês, montar, como se diz em Português) com a tomada seguinte da história – que não precisa ter sido filmada na ordem cronológica da trama.
Já adolescente, em Phoenix, o jovem Sam (agora interpretado por Gabriel LaBelle) desenvolve mais e mais seu talento para dirigir atores, coordenar as ações de um grande grupo de atores – seus colegas de escola. Ele assiste no cinema à obra-prima de John Ford O Homem Que Matou o Facínora/The Man Who Shot Liberty Valence (1962), e em seguida filma com os colegas um western. E logo faz um filme de guerra.
Igualinho que nem seu criador. O adolescente Steven Spielberg de fato fez um curta-metragem western e um outro de guerra. O que leva a gente a pensar que é estranho o fato de o profissional Spielberg – autor de algumas das mais belas sequências de batalha jamais filmadas, em O Resgate do Soldado Ryan, de 1998 – jamais ter feito um western, este que é um dos mais antigos gêneros do cinema e o mais essencialmente norte-americano.
Verdade: Spielberg já passou por quase todos os gêneros que há, da comédia rasgada à ficção científica, da aventura ao drama pesado, da guerra à espionagem, mas jamais fez um western. Talvez por medo de pisar no terreno que, afinal de contas, seu maior ídolo de todos dominava como ninguém.
Os atores estão todos ótimos. Michelle Williams brilha
Achei interessante ver os Fabelmans mostrados como uma família que não é especialmente religiosa, e, ao contrário, passa bem longe de ser extremamente apegada aos rituais da religião judaica. Na verdade, entre os pais e os filhos mal se fala de religião. As primeiras referências ao fato de que é uma família judia são brincalhonas: o garotinho Sam diz que sua casa é a única que não tem luzes de Natal, e que gostaria que ela fosse como as dos vizinhos, toda iluminada para a festa.
De fato, numa entrevista em 2022, Spielberg disse: “Minha família era de judeus ortodoxos apenas quando meus avós nos visitavam… Quando eles não estavam, já não éramos kosher;”
A questão do anti-semitismo só aparece na Califórnia, quando o adolescente Sam vai enfrentar bullying bravo, pavoroso, nojento de alguns colegas truculentos não apenas por ser recém-chegado, pequeno em comparação com muitos daqueles adolescentes imensos, grandalhões, mas em especial por ser judeu.
Apesar do bullying que seguramente enfrentou – e que expõe muito bem no filme –, Spielberg não deve ter ficado traumatizado com aquilo. No filme, ele acaba brincando bastante com a coisa de as “goyas” californianas ficarem curiosas diante de um judeu. O namoro de Sam com aquela cristã absolutamente fanática, Monica Sherwood (Chloe East, lindinha demais), é mostrado com um tom delicioso de bom humor. A tomada em que Monica coloca Sam na sua cama, e o garoto olha para cima e vê Jesus Cristo no grande crucifixo na parede, é uma absoluta delícia.
Bem… Tudo em Os Fabelmans é uma absoluta delícia.
O realizador teve mais uma vez, mais uma entre tantas e tantas, a participação de dois velhos companheiros, dois gigantes, o compositor John Williams e o diretor de fotografia Janusz Kaminski, garantia de bons serviços prestados nessas duas áreas fundamentais. A direção de arte, com a mais absoluta perfeição na reconstituição de época, os figurinos, é tudo impecável.
A escolha dos atores foi não menos que perfeita. Michelle Williams e Paul Dano estão brilhantes. Ela já nos havia brindado antes com várias interpretações marcantes, como em Sete Dias com Marilyn (2011), Entre o Amor e a Paixão (2011), Suíte Francesa (2014), Manchester à Beira-Mar (2016) – e então sua atuação como essa tão sensível e às vezes tão triste Mitzi não chega a ser uma surpresa.
Há várias sequências maravilhosas em que o talento de Michelle Williams excede, solta fagulhas. Claro, claro: a sequência climática do acampamento de verão em que ela dança diante do marido, dos filhos e do amigo de sempre Bennie, os faróis do carro a iluminando e pondo à mostra suas coxas cobertas com o tecido fino que se torna transparente (na foto abaixo).
Mas a que mais me impressionou foi sem dúvida aquela também climática em que Sam exibe para ela, no escurinho do armário embutido, o filme que ele havia editado com tomadas feitas naquele acampamento.
Ali juntam-se a intepretação da ótima atriz e a sensibilidade do hoje veterano cineasta. O espectador não vê o filme montado – não era necessário. O espectador já havia visto algumas das tomadas esparsas, e ele pode muito bem imaginar o que seria o efeito de um filmetinho montado por Sam. Então a câmara de Janusz Kaminski fecha no rosto de Mitzi-Michelle Williams, e ficamos vendo seu rosto em close-up enquanto ela observa o conjunto de imagens que a câmara de seu filho mais filho registrou para todo o sempre.
É brilho puro.
Paul Dano é muitíssimo menos star que Michelle, mas também tem uma filmografia com belos desempenhos, como A Família Flynn (2012) e Ruby Sparks – A Namorada Perfeita (2012).
E que sorte fantástica ter encontrado o garotinho Mateo Zoryan e esse jovem Gabriel LaBelle para fazer Sam. Esse rapaz está muito bem encaminhado, e o céu é o limite. Os meninos que começam muito jovens, a gente nunca sabe o que poderá acontecer com eles, mas, se for julgar apenas pelo talento que Mateo Zoryan demonstra, para ele também o céu é o limite.
Claro que, depois que o filme acabou, fiquei pensando também em outro ator mirim extraordinário, Jude Hill, que interpreta o papel central de outro filme autobiográfico da mesma época, o Belfast (2021) do irlandês Kenneth Branagh. Como é que as equipes de casting descobrem esses garotos tipo Jude Hill, tipo Mateo Zoryan, meu Deus do céu e também da Terra?
Diretores que contam sua própria história
De uma certa forma, ao menos em parte, tanto Belfast quanto Os Fabelmans resultaram da pandemia de covid que assolou o planeta a partir de 2020, a pior pandemia em cem anos, desde a gripe espanhola de 1918 a 1920. Foi o isolamento social que ajudou a fazer com que Kenneth Branagh resolvesse mostrar ao mundo muitas de suas experiências de garoto na Belfast engolida pelos conflitos entre protestantes e católicos, irlandeses e britânicos nos anos 60 e 70.
Da mesma forma com que foi o isolamento que pesou para que Spielberg abrisse para o público suas memórias – até mesmo coisas bem íntimas.
De 1960, o irlandês que cresceu interpretando Shakespeare tinha portanto 61 anos quando fez o filme sobre sua infância. De 1946, o americano Spielberg, que fazia filmes desde antes de perder os dentes de leite, contou sua infância quando estava com 76 anos. Eram, os dois, artistas absolutamente consagrados.
Para mim foi impossível não ficar pensando que François Truffaut fez um relato autobiográfico já na sua estréia, seu primeiro longa-metragem. Tinha apenas 27 anos quando lançou Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups, e exibiu ao mundo um garoto que não era amado pela mãe, que não amava a mãe e não sabia quem era seu pai, e que roçou bem de perto o abismo da marginalidade.
Quando se encontraram, em 1976, durante as filmagens de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, Spielberg estava com 30 e Truffaut, com 44. Dois realizadores já respeitados, incensados, reverenciados. Spielberg havia feito Tubarão/Jaws (1975), um tremendo arrasas-quarteirão. Truffaut ainda faria várias pérolas, mas já havia feito tantos filmes de rara qualidade que até mesmo a Academia de Hollywood tinha percebido, e dado a ele o Oscar de melhor filme estrangeiro por Day for Night, perdão, La Nuit Américaine (1973).
O grande crítico Geraldo Mayrink uma vez escreveu (nunca me esqueci disso: eu era na época o editor dele na editoria de Cultura da revista Afinal) que, na sua opinião, Spielberg havia convidado Truffaut para fazer o papel de Claude Lacombe no seu Close Encounters of the Third Kind porque queria aprender com ele – talvez roubar dele o talento, vampirizá-lo – como dirigir crianças…
Pode ser… Quem sabe? Não há qualquer dúvida de que François Truffaut foi um dos melhores diretores de atores da História, e um dos melhores diretores de crianças. Jean-Pierre Léaud mal havia saído da infância quando interpretou o alter-ego do cineasta em Os Incompreendidos. (Bem, há quem diga que Léaud nunca saiu da adolescência, mas aí é outra história…) E um dos mais ternos, calorosos filmes de Truffaut – L’Argent de Poche (dinheiro de bolso, dinheirinho pequeno, trocadinho), no Brasil Na Idade da Inocência – tem como atores centrais um bando grande de crianças, a maior parte das quais nem sequer pode ser chamada de atores mirins, porque não voltaram a atuar na vida.
Spielberg tem muitas características parecidas com Truffaut – a começar por esse talento especialíssimo de dirigir crianças. Meu, o que o cara fez com os garotos de E.T.: O Extraterrestre, Henry Thomas, Drew Barrymore e Robert MacNaughton! E o que voltou a fazer agora com esse garoto Mateo Zoryan…
Essa daí é uma característica que os dois realizadores têm em comum. Há outras. São, os dois, cineastas que passam por vários gêneros. Que tanto adaptam obras de terceiros quanto criam suas próprias histórias. Que não se fazem prisioneiros de modismos, não se rendem a criativóis, invencionices formais – e preferem contar histórias de uma forma mais clássica, pura, limpa, simples. Isso que muitos críticos de cinema e pessoas de narizinho empínado às vezes chamam de estilo tradicional, ou acadêmico.
Sobretudo, sobretudo, são, os dois, cineastas que gostam de contar histórias sobre pessoas de quem gostam, por quem sentem simpatia – de tal forma que suas histórias são sempre contadas de uma forma calorosa, gentil, amiga.
Perdão por me estender talvez demais aqui, mas é que há um problema: esses dois senhores estão entre os meus cineastas prediletos.
Spielberg mostrou aos atores objetos da família
Há trocentas historinhas, coincidências, curiosidades sobre Os Fabelmans. Só a página de Trvia do IMDb sobre o filme tinha cerca de 70 itens em meados de março de 2023 – um número bem alto, se a gente considerar que o lançamento havia sido em novembro de 2022. Vou registrar algumas delas aqui.
* Arnold e Leah, os pais de Spielberg, brincaram várias vezes com o filho sobre a possibilidade de ele fazer um filme autobiográfico. O cineasta contou isso em entrevistas: “Quando é que você vai contar a história da nossa família, Steve?”, os pais costumavam perguntar a ele.
Os dois já estavam mortos quando o filme foi produzido. Nos créditos finais, o diretor faz um agradecimento às três irmãs, Anne, Nancy e Sue.
* Spielberg e o roteirista Tony Kushner falavam de um possível filme autobiográfico do diretor havia já alguns anos. Kushner é o autor da peça Angels in America, sobre os primeiros anos da aids, e também do roteiro da bela minissérie baseada na peça, dirigida por Mike Nichols, com Al Pacino, Meryl Streep e Emma Thompson. E escreveu também os roteiros de três filmes de Spielberg – Munique (2005), Lincoln (2012) e a refilmagem de West Side Story (2021).
Foi só em 2020, na época do isolamento social por causa da pandemia de covid, no entanto, que os dois de fato começaram a trabalhar no roteiro do que viria a ser Os Fabelmans. Cada um dos dois escreveu em sua casa, durante o período de lockdown – e levaram apenas dois meses para terminar o trabalho.
Este foi o primeiro roteiro assinado por Spielberg desde A.I.: Inteligência Artificial (2001).
* As indicações são todas de que Spielberg se entregou totalmente ao seu passado, e o entregou de braços abertos aos atores e à equipe do filme. Ele colocou à disposição dos atores filmes caseiros, fotografias, coisas que pertenceram a ele durante sua infância e adolescência, para que entrassem no clima de como era sua família. Algumas jóias que pertenceram a Leah, sua mãe, foram mostradas a Michelle Williams, que as usou em algumas cenas. O ator Paul Dano disse, em uma entrevista: – “Para alguém como Steven, compartilhar tanto de si mesmo conosco – e com a audiência também – foi de fato uma experiência profunda.”.
Seth Rogers contou que várias vezes, durante as filmagens, Spielberg mostrou estar emocionado. “Ele chorou muito no set”, contou. “Enquanto estávamos filmando, perguntei a ele várias vezes: Isso aconteceu na vida real? E a resposta foi sempre ‘sim’.”
* O jovem Gabriel LaBelle aprendeu com o próprio diretor e com técnicos da equipe a trabalhar com as câmaras de 8mm e 16mm que Sam Fabelman usa no filme. Aprendeu também como cortar e depois emendar os pedaços de filmes já revelados, usando as máquinas de montagem e os projetores dos anos 50 e 60.
* O cultuadíssimo David Lynch não aceitou de cara o convite de Spielberg para interpretar John Ford na breve mas fundamental sequência em que o mestre dos grandes diretores de Hollywood aparece. Ao contrário: foram necessárias algumas semanas – e a intervenção da amiga comum Laura Dern – para que o homem de Twin Peaks desse o sim.
Uma onde de filmes nostálgicos
Os Fabelmans – notou, com perspicácia e propriedade o site IMDb – veio se inscrever em um grupo de filmes dos últimos anos que se passam na época e nos locais da juventude de seus diretores. Nem todos eles são abertamente autobiográficos como Os Fabelmans e o Belfast de Kenneth Brannagh, mas são todos filmes que se passam algumas décadas atrás. Nessa espécie de onda de filmes nostálgicos o IMDb colocou
Mulheres do Século 20 (2016), de Mike Mills; Lady Bird: A Hora de Voar (2017), de Greta Gerwig; Roma (2018), de Alfonso Cuarón; Anos 90 (2018), de Jonah Hill; Era Uma Vez Em… Hollywood (2019), de Quentin Tarantino; A Mão de Deus (2021), de Paolo Sorrentino; Licorice Pizza (2021), de Paul Thomas Anderson; Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial (2022), de Richard Linklater; e Armageddon Time (2022), de James Gray.
Um detalhe a ser registrado: o compositor John Williams estava com 91 anos ao ser indicado para o Oscar de melhor trilha sonora. Tornou-se, assim, a pessoa mais velha a receber uma indicação ao prêmio da Academia.
Ah, sim, os Oscars. Os Fabelmans foi indicado em sete categorias. Além de trilha sonora, concorreu também como filme, direção, roteiro original, atriz para Michelle Williams, ator coadjuvante para Judd Hirsch e desenho de produção. Steven Spielberg assistiu à 95ª cerimônia de entrega dos Oscars, em 12 de março de 2023, sem demonstrar sinal de tristeza ou surpresa diante das sete derrotas de seu filme. Seguramente já está acostumado. Na cerimônia de 1986, foram 11 indicações para A Cor Púrpura – e nenhuma vitória.
O filme teve cinco indicações ao Globo de Ouro; levou os prêmios de melhor filme drama e melhor direção.
Depois da separação, os pais souberam ser bons amigos
E, finalmente, alguns registros sobre o que de fato aconteceu na vida real e está no filme – e o que não está.
* O Maior Espetáculo da Terra foi mesmo o primeiro filme que Spielberg viu na vida.
* O personagem Logan Hall, o fortão babaca da escola que mais agride o adolescente Sam, se inspira em pessoa e eventos reais. O jovem Spielberg de fato fez um filme sobre o dia da farra ao final da high school, e de fato mostrou o fortão babaca como um herói – e o sujeito de fato foi perguntar a ele por que havia feito aquilo, e começou a chorar. Exatamente como no filme.
* Leah, a mãe de Spielberg, teve, sim, um macaquinho em casa.
* Foi de fato ao fazer a montagem de um filme caseiro que o adolescente Steven constatou a ligação da mãe com o grande amigo da família. Ele estava com 16 anos.
* A separação de Arnold e Leah aconteceu em 1966, quando Steven estava com 20 anos.
* Ah, sim, é claro: o jovem Spielberg foi de fato levado à sala do mestre John Ford…
Em um ponto importante a vida real dos Spielbergs se distancia bastante dos Fabelmans: ao contrário do que se mostra no filme, o jovem Spielberg culpava o pai pelo divórcio. Por causa disso, Steven ficou afastado de Arnold por cerca de 15 anos.
Leah, a mãe, viria a se casar com o homem que no filme é Bernie, o papel de Seth Rogers.
E a vida real teve happy ending: Arnold também se casou novamente, com Bernice Colner. E, depois de algum tempo, Arnold e Leah se livraram das mágoas, ressentimentos, e tiveram uma convivência pacífica, de amigos, entre si, e com os filhos.
O que é uma das melhores coisas que pode haver na vida. Eu sei bem do que estou falando.
Anotação em março de 2023
Os Fabelmans/The Fabelmans
De Steven Spielberg, EUA-Índia, 2022
Com Gabriel LaBelle (Sam Fabelman adolescente),
Michelle Williams (Mitzi Fabelman, a mãe),
Paul Dano (Burt Fabelman, o pai)
e Seth Rogen (Bennie Loewy), Mateo Zoryan Francis-DeFord (Sam Fabelman criança), Keeley Karsten (Natalie Fabelman adolescente), Alina Brace (Natalie Fabelman criança), Julia Butters (Reggie Fabelman adolescente), Birdie Borria (Reggie Fabelman criança), Sophia Kopera (Lisa Fabelman, a irmã caçula), Jeannie Berlin (Hadassah Fabelman, a avó paterna), Robin Bartlett (Tina Schildkraut), Sam Rechner (Logan Hall, o fortão babaca da escola), Oakes Fegley (Chad Thomas, outro babaca da escola), Chloe East (Monica Sherwood, a namoradinha de Sam), Isabelle Kusman (Claudia Denning, a namorada de Logan), Chandler Lovelle (Renee), Gustavo Escobar (Sal), Nicolas Cantu (Hark), Cooper Dodson (Turkey), Gabriel Bateman (Roger), Stephen Matthew Smith (Angelo), James Urbaniak (o diretor da Grand View High School), Alex Quijano (o professor de educação física da Grand View High School), Kalama Epstein (Barry), Connor Trinneer (Phil Newhart),Jan Hoag (Nona, a secretária de John Ford)
e, em participações especiais, Judd Hirsch (tio Boris), David Lynch (John Ford)
Argumento e roteiro Steven Spielberg & Tony Kushner
Fotografia Janusz Kaminski
Música John Williams
Montagem Sarah Broshar, Michael Kahn
Casting Cindy Tolan
Desenho de produção Rick Carter
Figurinos Mark Bridges
Produção Tony Kushner, Kristie Macosko Krieger, Steven Spielberg, Amblin Entertainment, Reliance Entertainment, Universal Pictures.
Cor, 151 min (2h31)
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Ótimo texto, muito obrigado!
Spielberg é grande, e sempre emociona.
E é legal saber que a sua história também teve esse contexto feliz, como a dos pais do Steven. É mesmo uma coisa muito boa ter uma convivência pacífica com as pessoas importantes em nossa vida, vencendo mágoas e decepções! Aproveitemos cada minuto, crescendo em carinho e respeito aos nossos companheiros nessa longa/breve jornada.
Fique bem! Abs, edilson.
É incrível ver como Spielberg ainda segue surpreendendo a esta altura da vida.
No ano anterior teve “Amor, Sublime Amor” – um musical com “fúria”, como eu gosto de pensar e que para mim era o que devia ter levado o Oscar naquele ano.
Aí logo depois esta carga emocional de Fabelmans, que só de ler a crítica já me emociono. É um filme delicado, emotivo, lindo demais. Um amor ao cinema e a família dele, por mais complicada que tenha sido em alguns momentos.
E aproveitando: entre lançamentos de clássicos no cinema e uma ‘mostra Steven Spielberg” em São Paulo, nos últimos anos
consegui (re)ver, pela primeira vez na telona, a Tubarão, A Cor Púrpura, A Lista de Schindler e ET. Qualquer diretor sonha em ter 1 ou 2 filmes desta lista – e estes são só alguns dos clássicos do diretor. É uma carreira que entra fácil em qualquer lista de top 5 dos melhores de todos os tempos.