(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 5/2023.)
House by River, no Brasil Maldição, de 1950, foi o décimo dos 17 filmes dirigidos por Fritz Lang em sua fase americana, entre 1936 e 1956. Veio antes de Só a Mulher Peca/Clash by Night (1952), com Barbara Stanwyck e um pequeno papel para a novata Marilyn Monroe, O Diabo Feito Mulher/Rancho Notorious (1952), western com Marlene Dietrich, e Os Corruptos/The Big Heat (1953), aquela obra-prima com Glenn Ford e Gloria Grahame.
Nos filmes imediatamente anteriores, o mestre do expressionismo alemão havia dirigido os astros Gary Cooper, Lilli Palmer, Ray Milland, Michael Redgrave.
Os atores principais deste House by the River são Louis Hayward, Lee Bowman e Jane Wyatt. Assim, embora Jane Wyatt seja uma boa e bela atriz, fica bastante evidente que há um desnível entre o elenco deste filme aqui e os que vieram antes e depois dele. Não é uma produção de um dos grandes estúdios – a produtora é a pequena Fidelity Pictures.
Não cito isso como coisas negativas – apenas para registrar os fatos. É, evidentemente, um filme de orçamento menor que os que o mestre alemão fez imediatamente antes e depois.
Leonard Maltin gostou do filme, deu a ele 3 estrelas em 4:
“História estranha e melancólica do marido desonesto (Hayward) que tece uma teia do mal que envolve sua esposa (Wyatt) e irmão (Bowman). Às vezes exagerado – especialmente perto do fim – mas cheio de toques fascinantes, atmosfera impressionante.”
No original Maltin usa “larcenous husband”, mas Stephen Byrne (o papel de Louis Hayward) não é propriamente larápio, ladrão. Preferi trocar por “desonesto” porque, embora suave, o adjetivo se aplica perfeitamente ao personagem central da história.
“Bem feito, mas ao mesmo tempo um thriller indistinguível”, resume o guia de Steven H. Scheuer, que dá 2 estrelas em 4.
O guia de Mick Martin & Marsha Porter dá ao filme 3 estrelas em 5 e um texto entusiasmado: “Fritz Lang explora um de seus temas favoritos: obsessão. Um trabalho à la música de câmara sobre um homem que (…). Cheio de fascinantes toques psicológicos que conseguem criar uma atmosfera perturbadora.”
Naquele trecho ali do (…), há duas frases que revelam muito da trama, e omiti por considerar spoiler. Falo disso um pouco mais adiante.
Uma bela análise, por um especialista em Lang
Encontrei um site que disseca – pelo jeito com absoluto cuidado, seriedade, profundidade – toda a obra de Fritz Lang e alguns outros poucos cineastas, filme por filme, característica por característica. O endereço é https://mikegrost.com/lang.htm.
Não há como não transcrever parte do que esse Mike Grost escreveu sobre House by the River. Mas é preciso advertir: o texto revela o fato que – embora aconteça bem no início do filme, e seja contado em todas as sinopses – a rigor é um spoiler.
“House by the River (1950) é o primeiro filme de época de Fritz Lang – sem contar os westerns – depois de Die Niebelungen (1924) e Destiny (1921). Lang faria apenas um outro filme de época, descontados os westerns, Moonfleet (1955, no Brasil O Tesouro do Barba Ruiva). A idéia de um thriller passado na Era Vitoriana faz lembrar os filmes de Robert Siodmak, como The Spiral Staircase (1945, no Brasil Silêncio nas Trevas). A casa aqui é barrocamente exagerada na decoração, como se fosse do filme de Siodmak. Talvez mais importante é o fato de que ambos os filmes têm o mesmo roteirista, Mel Dinelli. O filme de Lang também faz lembrar um pouco o ciclo de thrillers vitorianos que começou com Gaslight de George Cukor (1944, no Brasil À Meia Luz), embora House by the River definitivamente não seja um filme sobre uma mulher em perigo ameaçada por seu marido, como foram Gaslight e seus semelhantes.
“O filme se baseia em The House by the River (1920), que parece ser o único romance de crime de A. P. Herbert (Sir Alan Patrick Herbert), embora ele tenha escrito muitos romances e peças sobre temas não relacionados a crime. Ele também escreveu uma peça de crime e diversos contos satíricos sobre a lei, pelos quais é mais conhecido.”
Agora, sim, vem o que eu considero spoiler. O eventual leitor que ainda não viu o filme e tiver interesse em ver deveria parar de ler por aqui.
Atenção: aqui há um spoiler
“House by the River se encaixa na longa linha de thrillers de Lang em que uma pessoa inocentemente envolvida em um assassinato o esconde, o que apenas a coloca no centro de uma rede de investigação que está sempre se fechando. Ele se diferencia de várias maneiras de outros trabalhos de Lang nesse gênero. O assassino aqui está longe de ser inocente – ele não pretendeu matar, mas estava certamente cometendo violência e atos imorais quando matou. Em segundo lugar, e mais surpreendentemente, está a forma com que a investigação se dá. Muitos dos protagonistas de Lang esmorecem, perdem a força, reagindo aterrorizados ao cerco da polícia. O assassino aqui é único na obra de Lang que cresce, se beneficia e até mesmo se diverte com os acontecimentos após o assassinato. É uma reviravolta surpreendente nas tradições de Lang.
“Há um tribunal, mas muito menos intimidante do que em filmes posteriores de Lang, como Human Desire (no Brasil Desejo Humano, de 1954). A polícia também não tem pistas, mais do que em outros trabalhos de Lang. Lang fica mostrando os assentos dos jurados no tribunal, mas elas estão vazias nesse inquérito.”0
Sim, é isso mesmo: o que se mostra no filme não é um julgamento, é um inquérito, uma investigação, um “inquest”. (Na foto abaixo, Jane Wyatt, que faz a esposa do protagonista, durante o inquérito.)
O sujeito que mora junto do rio é um escritor
Achei extremamente interessante a avaliação desse Mike Grost. Nada como alguém que conhece profundamente a obra de um autor.
E é absolutamente interessante como ele revela pontos da trama, mas sem narrar os fatos de forma detalhada – que é como eu faço, embora eu só narre eventos mostrados no início dos filmes, sem adiantar, jamais, o que acontece depois de no máximo, no máximo os 30 minutos iniciais.
Os textos – é a mesma velha verdade de sempre – se escrevem por si sós. Vão para onde querem ir. Antes de começar esta anotação aqui eu havia imaginado abrir como informações gerais sobre o filme, em seguida descrever o que acontece nos primeiros minutos, e aí dizer que revelar o que acontece quando o filme está ali com uns 10 minutos a rigor é spoiler. Mas aí gostei de ir dando antes as opiniões externas, e cheguei à bela análise desse estudioso Mike Grost, que acaba fazendo revelações… Mas não havia como não transcrever a íntegra da avaliação dele.
Mesmo fora da ordem que eu imaginei antes de sentar para escrever, vou relatar como é a abertura do filme, como sempre gosto de fazer. Para só depois, então, dar a minha própria opinião.
A casa do título, em que mora o casal Stephen e Marjorie Byrne (Lee Bowman e Jane Wyatt, linda, aos 40 anos), tem um belo jardim entre ela e o rio. O terreno se debruça sobre o rio; há um pequeno ancoradouro e um barco, que pertence aos Byrne; bem perto do ancoradouro há uma edícula, onde, na primeira sequência, Stephen está escrevendo – ou, mais exatamente, tentando escrever. Ele é ou pretende ser um escritor, um romancista. Mas, naquela tarde, nada está saindo de sua cabeça e de sua caneta tinteiro.
Perto dele, trabalhando no jardim da casa bem ao lado, está a sra. Ambrose (Ann Shoemaker), Veremos que ela, uma senhorinha aí de uns 60 anos, adora o casal de vizinhos; Marjorie também gosta muito dela, as duas se dão bem – mas Stephen acha que ela é uma bruxa fofoqueira.
Os créditos iniciais haviam rolado enquanto a câmara do diretor de fotografia Edward Cronjager mostrava tomadas do rio, um rio imponente, largo, imenso, rio de planície perto da foz. Longas tomadas do rio – me lembrei de Jean Renoir, um cineasta apaixonado por água. “Não concebo o cinema sem água”, disse o mestre francês “Há no movimento do filme um lado inelutável que o aparenta à corrente dos riachos, ao fluir dos rios.”
(Em hora alguma se menciona o nome do rio. O IMDb, que em geral traz os locais de filmagem, mesmo os da segunda unidade, que faz as tomadas fora do estúdio, no caso deste Maldição registra apenas que o filme foi rodado nos estúdios da Republic, em Hollywood. A sensação que se tem é de que as tomadas do rio propriamente dito foram feitas no Mississipi – mas isso é apenas um chute meu.)
Uma criada jovem, bela. O patrão olha e baba
Enquanto trabalha no jardim, a sra. Ambrose olha o rio – e, ao ver que bem perto da margem, e portanto de seu jardim, está passando o corpo de um animal morto, fala com vizinho, atrapalhando o trabalho dele mas dando para o espectador informações importantes sobre o que virá depois: sobre o fato de que, ali naquele ponto, as águas do rio caminham nas duas direções.
– “Eu odeio este rio. Os animais flutuando, Stephen. Vêm e vão com a maré. Estou cansada disso. (…) Por que as autoridades não agem? Sabem o efeito da maré. Esse vai e vem. Odeio este rio.”
– “Culpe os homens pela sujeira, não o rio”, diz Stephen, que havia se levantado e chegado bem perto da sra. Ambrose, cada um de lado de uma pequena cerca que separa suas propriedades.
Por essa frase, lógica, pertinente, o espectador poderia pensar que se trata de um bom homem. Não é. Veremos que Stephen, o protagonista da história, é um crápula.
Uma jovem bonita chega perto deles com um pacote, um grande envelope: – “A correspondência chegou”, diz a jovem criada dos Byrne, Emily Gaunt (o papel de Dorothy Patrick).
Stephen pede para ela deixar na mesa em que ele estava trabalhando. A sra. Ambrose, que de fato parece reparar em tudo, olha para o pacote e diz: – “Hum… Parece o seu manuscrito.” E ele diz: “Meu manuscrito está encantado. Ele sempre volta.”
A sra. Ambrose: – “Talvez eles não voltassem se você seguisse meu conselho: apimente! Mostre o que as pessoas querem ver!”
Apimente. No original, “spice them up”.
O roteirista Mel Dinelli e Fritz Lang fazem um gol aí: no momento em que a velha vizinha pronuncia as palavras “spice them up”, a câmara mostra a jovem Emily, de pé junto da mesa de trabalho, como se estivesse, curiosa, querendo ler o que o patrão estava escrevendo naquele momento.
Apimentar. Uma criada jovem e bela.
A criada jovem e bela se aproxima do patrão e da vizinha. Explica que está ficando tarde, o encanador não veio consertar os canos do banheiro usado por ela e pela outra criada da casa, Mrs. Beach (Sarah Padden).
Stephen diz que a moça pode usar o banheiro lá de cima, o do casal. Emily-Dorothy Patrick abre um sorriso que a deixa mais bonita ainda, faz uma mesura, agradece e começa a se dirigir até a casa.
Plano de conjunto da bela jovem caminhando, vista de costas, da perspectiva dos dois vizinhos, que naquele momento observam os movimentos dela – ele com cara de tesão. Corta. Plano americano da sra. Ambrose e Stephen olhando para o caminhar da moça. Corta, de novo a moça caminhando. Corta, os dois olhando para ela, ele com cara de tesão. A sra. Ambrose corta a bola no ar:
– “O que a sua mulher está achando da nova criada, Stephen?”
Ah, ela está gostando muito, ele diz. Aliás, onde ela está? Não a vejo faz horas, diz a vizinha. E Stephen explica que Marjorie foi visitar os Lowe no campo.
Escrevi um monte de parágrafos, mas nesse momento aí o filme está completando 4 minutos. Quando ele chega a 12 de seus 83 minutos, a tragédia acabou de acontecer.
Ator ruim, gracinhas fora do lugar, buracos na trama…
Para mim, House by the River é um daqueles casos típicos que provam que os grandes diretores, mesmo os maiores, fazem filmes ruins ou no mínimo fracos.
E/ou um daqueles casos típicos que mostram que às vezes a gente não entra em sintonia com o que talvez seja um grande filme.
Achei House by the River um filme ruim.
A esta altura deste texto, a preguiça de explicar meus motivos é grande. Vou tentar ser sintético – algo que definitivamente não é minha praia.
Não me parece que esse Louis Hayward tenha uma boa atuação. Nem sequer mediana. Na verdade, ele me pareceu horrorosamente ruim.
Em vários momentos, o roteiro tenta fazer gracinhas. Não consegue fazer graça – mas cai pesado no ridículo. A maior parte da dança e da alegria de Stephen Byrne na longa sequência da festa a que vão ele, Marjorie e John, o irmão mais velho, me pareceu grotesca, ridícula.
Toda a figura de Flora Bantam (o papel de Jody Gilbert), a criada de John, toda sua preocupação excessiva com o que ele come ou deixa de comer, todas as falas dela – tudo me pareceu pavoroso.
Há buracos, falhas, bobagens incríveis no roteiro, na história, na construção dos personagens. Por exemplo: não fica nada claro de onde vem o dinheiro para Stephen e Marjorie levarem aquela boa vida sem que ninguém trabalhe. Fala-se en passant que John deixou para o irmão mais novo parte maior de uma herança, só isso, mas me pareceu muito pouco – até porque John, ao contrário do irmão, trabalha pra cacete.
Pelo que se mostra, Stephen jamais havia conseguido emplacar um livro – todas as editoras haviam recusado seus originais. De repente, só por causa de uma notícia sobre ele, encontra-se um editor, o livro fica pronto e é lançado.
No lançamento, há um detalhe absolutamente grosseiro, idiota. Alguém fala que o bom escritor escreve sobre as coisas que conhece – e aí Stephen ouve aquilo como se a idéia jamais houvesse passado pela sua cabeça. O careteiro Louis Hayward faz uma careta de quem está espantado com a grande revelação! Fiat Lux! – e imediatamente ele pensa em escrever sobre o que ele estava vivendo naquele momento.
Ah, meu, coisa ridícula…
E eta polícia incompetente aquela, meu Deus do céu e também da Terra! Tudo tão absolutamente óbvio diante do nariz dela, e nada!
Todas as sequências do inquérito – conduzido num tribunal, com juiz, promotor público, platéia, testemunhas depondo – também me pareceram falsas que nem nota de 3 guaranis paraguaios.
E não se consegue definir se Stephen está apavorado ou está se divertindo com tudo aquilo. Ora ele vê coisas e faz careta do mais puro pavor, ora se diverte e faz careta de quem achando tudo uma delícia.
E isso aí, e chega, y punto, y basta.
Anotação em maio de 2023
Maldição/House by the River
De Fritz Lang, EUA, 1950
Com Louis Hayward (Stephen Byrne),
Lee Bowman (John Byrne, o irmão mais velho),
Jane Wyatt (Marjorie Byrne, a mulher de Stephen),
e Dorothy Patrick (Emily Gaunt, a jovem criada), Sarah Padden (Mrs. Beach, a criada mais velha), Ann Shoemaker (Mrs. Ambrose, a vizinha), Jody Gilbert (Flora Bantam, a criada de John), Will Wright (inspetor Sarten), Peter Brocco (o legista), Howland Chamberlin (o promotor), Margaret Seddon (Mrs. Whittaker, convidada da festa), Kathleen Freeman (Effie Ferguson, convidada da festa), Leslie Kimmell (Mr. Gaunt, o pai de Emily), Effie Laird (Mrs. Gaunt, a mãe de Emily)
Roteiro Mel Dinelli
Baseado em livro de A.P. Herbert
Fotografia Edward Cronjager
Música George Antheil
Montagem Arthur Hilton
Direção de arte Bert Leven
Figurinos Adele Palmer
Produção Howard Welsch, Fidelity Pictures Corporation, distribuição Republic Pictures.
P&B, 83 min (1h23), segundo o IMDb; há versão de 88 min (1h28), segundo o Cinemania.
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Título na França: “Au fil de l’eau”. Em Pòrtugal: “A Casa à Beira do Rio”.
Eu não desgostei do filme mas não é um dos melhores de Lang