(Disponível na Netflix em 5/2023.)
Carne Trêmula (1997) é uma beleza de filme, como tantos outros de Pedro Almodóvar. Como tantos outros desse realizador especial, um dos mais importantes que há, tem diversas qualidades e características interessantes. Na minha opinião, a melhor delas é a trama. Meu Deus, que trama fascinante, envolvente, criativa, um emaranhado de eventos, coincidências, surpresas ligando os cinco personagens centrais.
Trama inteligente, cheia de belas sacadas, não é surpresa alguma na obra de Almodóvar. O que achei especialmente interessante é que a trama de Carne Trêmula – tão absolutamente almdovariana, com seus excessos, exageros, sua carga forte de sexualidade à flor da pele – não saiu todinha da imaginação privilegiada do diretor. Diferentemente da quase totalidade de seus filmes, Carne Trêmula não é uma história original de Almodóvar, e sim a adaptação de uma obra literária, o romance Live Flash, da famosa, respeitada, prolífica escritora inglesa Ruth Rendell.
Eu não sabia disso. Só fiquei sabendo nos créditos finais, e foi uma absoluta surpresa, porque, ao longo do filme, tinha me passado pela cabeça várias vezes a constatação: mas que fantástico criador de tramas é esse sujeito!
As indicações são todas de que Almodóvar fez uma adaptação bastante livre, solta, do romance de Ruth Rendell. Usou personagens, fatos, pedaços da história original – mas fez diversas adaptações, tirou coisas, acrescentou outras. Diz a Wikipedia: “O tratamento de Almodóvar do tema é muito diferente do romance original, fazendo mudanças significativas nos personagens e na trama”.
Dou um exemplo claro e forte disso, e que de forma alguma é spoiler. No livro, pelo que mostram as sinopses, o protagonista da história, Victor Jenner, é um estuprador, cometeu vários estupros. Almodóvar manteve o prenome do personagem – mas o madrilenho Victor Plaza não é um estuprador, o que altera fundamentalmente seu caráter.
O acontecimento mais importante da história, no entanto, o que altera completamente a vida de Victor, e de outros personagens centrais, isso está no livro, e o roteiro de Almodóvar manteve.
Roteiro de Almodóvar – com a colaboração de Ray Loriga e Jorge Guerricaechevarría, conforme dizem os créditos finais. Algo que não é usual: em geral, o cineasta assina sozinho seus roteiros. Em geral, diferentemente deste filme, tudo sai da cabeça imaginativa, fervilhante do cara – os personagens, as histórias, os diálogos, e a forma com que ela vai ser contada na tela.
Um intróito forte, sofrido, belíssimo
Carne Trêmula abre com uma espécie assim de um intróito – uma longa sequência que mostra como nasceu o garotinho que irá ser o protagonista da história.
A mulher dá berros horrorosos de dor. Chama-se Isabel, mora numa pensão bem fuleira, numa região um tanto deteriorada de Madri. Dona Centro, a proprietária da pensão, uma senhora idosa e – como veremos logo a seguir – corajosa, despachada, ágil, cheia de fibra, determinação, acode Isabel, percebe que a criança está mesmo para nascer, manda que ela bote um casaco e sai com ela para a rua. Um táxi não pára. Dona Centro vê um ônibus vindo – e se posta no meio da rua, as mãos abertas.
O motorista esbraveja, diz que ela poderia ter morrido – e Dona Centro vai subindo no ônibus com Isabel.
O ônibus está absolutamente vazio, e o homem protesta, diz que está recolhendo, indo para a garagem. Dona Centro manda que ele toque para o hospital mais próximo. O motorista demora a reagir – e Dona Centro percebe que o parto vai ter que ser ali mesmo.
A pobre Isabel grita, chora, sua em bicas. O espectador sofre em ela.
Dona Centro age como se fosse uma parteira com longa experiência, vai pedindo que Isabel faça força, vai dando as instruções com firmeza mas também com afeto, ternura – e daí a pouco a gente ouve o choro da criança.
Há um detalhe fascinante aí. No momento mais tenso de todos, o momento em que a criança de fato sai, a câmara do diretor de fotografia Affonso Beato, de forma respeitosa, educada, sai de dentro do ônibus. Vemos uma tomada geral, o ônibus um pouco distante. Ouvimos o choro da criança, as vozes de Dona Centro e do motorista, mas não somos forçados, obrigados a ver o momento do parto em si.
Achei fantástico esse detalhe. Pedro Almodóvar, o iconoclasta, o rebelde, o bad boy, o que veio para épater les bourgeois, chocar, escandalizar os putos dos caretas, abandona seu gosto pelas explicitudes todas e comete o gesto educado, simpático, agradável de mostrar momento do nascimento de Victor Plaza bem de longe.
Carne Trêmula é, repito, de 1997; os filmes seguintes de Almodóvar já seriam Tudo Sobre Minha Mãe (1999) e Fale com Ela (2002), obras de uma fase mais madura do realizador, eu ousaria dizer. Ele continuaria iconoclasta, rebelde – mas sem dúvida um tanto mais suave, menos agressivamente duro, explícito, chocante do que nas obras anteriores, como Matador (1986), A Lei do Desejo (1987), Ata-me! (1989). Bem, pelo menos é o que eu penso.
Sim, permaneceria iconoclasta, rebelde – e genial.
Quando o motorista do ônibus (interpretado por Álex Ângulo) bota enfim o bólido em movimento, rumo a um hospital para que mamãe e filhinho recebem tratamento adequado, Doña Centro segura o garoto mais para o alto, perto das janelas do ônibus, e diz para ele algo tipo: – “Olha, Victor! Madri!”
Corta, entra o tema principal da trilha sonora composta por Alberto Iglesias, vemos tomada geral de um grande monumento do centro de Madri, e diante dele as duas palavras do título, depois “Un film de Almodovar”, assim, sem o acento.
Penélope Cruz e Pilar Bardem só aparecem no intróito
Deixei bem propositadamente para dar depois do relato desse intróito do filme o nome das atrizes que fazem Isabel e Dona Centro.
Isabel é o papel de Penépole Cruz, uma Penépole Cruz cujo rosto belíssimo não vemos direito nem em uma única tomada, já que ela está o tempo todo uivando de dor, chorando, a expressão de sofrimento físico horrível. E ela só aparece nessa sequência inicial.
A atriz maravilhosa (em todos os sentidos do adjetivo), hoje com 75 prêmios, quatro indicações ao Oscar e uma estatueta em casa (por Vicky Cristina Barcelona), estava com apenas 23 aninhos, mas não era uma iniciante, de forma alguma. Havia estreado oito anos antes, e tinha já 21 títulos no currículo – séries de TV e filmes, em vários deles como a protagonista.
Foi o primeiro dos vários filmes em que Penélope Cruz, a maior estrela do cinema espanhol das últimas décadas, trabalharia sob a direção de Almodóvar, indiscutivelmente o mais importante entre tantos outros bons realizadores espanhóis.
E Doña Centro, essa personagem incrível, é interpretada por Pilar Bardem.
“A gente não sabe de nada, de coisa alguma”, costuma dizer a Mary – e ela tem toda razão. Não sabia nada sobre Pilar Bardem (1939-2021), atriz de nada menos de 135 títulos, cuja carreira começou em 1965, em plena ditadura franquista. Ela dá um show como essa simpática, forte, poderosa Doña Centro.
Os três filhos de Pilar Bardem – Mónica, Javier e Carlos – seguiram seus passos e são atores. Javier, nascido em 1969, 121 prêmios, quatro indicações ao Oscar e uma estatueta em casa (por Onde os Fracos Não Têm Vez), estava com 28 anos e uma baby face incrível quando interpretou neste Carne Trêmula o jovem policial David de Paz, um dos cinco personagens centrais da trama magnífica.
Como sua mãe só aparece naquelas sequências iniciais, Javier Bardem (na foto acima) não contracena com sua mãe. Da mesma forma como não contracena com Penélope Cruz, sua mulher de papel passado desde 2010 e mãe de seus dois filhos.
A ação começa em 1970, depois salta para 1990
O filme está com 9 dos seus ótimos 103 minutos quando vemos na tela o título Carne Tremula e a assinatura do realizador – mas o intróito ainda continua, agora com um tom irônico. A voz em off de um apresentador de telejornal conta a história da mãe que deu à luz uma criança em pleno centro de Madri, “desafiando as duras condições climáticas” – era inverno, pouco depois do Natal –, “dentro de um ônibus da empresa municipal de transportes”.
Vemos imagens em preto-e-branco – como se fosse de um telejornal daquele ano de 1970 – de Isabel no hospital, recebendo a homenagem do próprio prefeito da capital espanhola. Victor, o que nasceu no ônibus – informa o locutor, com um tom de voz eufórico, patriótico, como se aquilo fosse um grande feito nacional – recebeu um passe vitalício da Prefeitura, e poderia andar de ônibus sem pagar a vida inteira.
Sim, 1970: bem na abertura, antes da primeira tomada de ação, tinha havido letreiro que informava a data.
E então, depois desse rápido noticiário de TV, quando estamos chegando aos 11 minutos de filme, um letreiro informa: “20 anos depois”.
Victor está portanto com 20 anos de idade. É interpretado por Liberto Rabal (na foto acima).
De forma rápida, ágil, inteligente, o roteiro de Almodóvar nos apresenta, nos cerca de 15 minutos seguintes, passados durante um breve espaço de tempo em uma noite madrilenha, o rapaz Victor e os quatro outros personagens centrais da história.
Alguns dias antes daquela noite em que a trama do filme de fato começa, Victor havia transado com uma moça no banheiro de um bar. Na verdade, o que de fato havia acontecido no bar teve interpretações diferentes por cada um dos participantes da coisa. Segundo Victor, que até então era virgem, havia sido uma trepada maravilhosa. Segundo a moça, Elena Benedetti (o papel da italiana Francesca Neri, na foto abaixo), sequer tinha havido propriamente a penetração. Mas o fato é que ela havia dado o telefone e o endereço para o rapaz, e então, naquela noite, Victor vai de moto até diante do prédio em que mora a moça, e, do orelhão da calçada, liga para ela.
Elena mora num apartamento gigantesco, de rico – veremos depois que o pai dela era um sujeito importante. É uma jovem rica e, como tantos jovens ricos, nos filmes e na vida real, uma drogada e desregrada. Naquele momento em que Victor liga para ela, Elena estava esperando que seu traficante levasse a droga que ela havia encomendado.
Victor consegue entrar no prédio – Elena crê que está abrindo a porta para o traficante. Fica furiosa ao ver que era o garotinho que havia conhecido em um bar algumas noites antes. Os dois discutem. Elena pega um revólver e manda que o rapaz vá embora.
Em ação paralela, ficamos conhecendo a dupla de policiais David e Sancho – os papéis de Javier Bardem e José Sancho. Estão fazendo a ronda pela cidade; quem dirige o carro é Sancho, que é mais velho e é o superior. Ele dirige e vai bebendo um destilado direto da garrafa, para evidente desgosto e desconforto do seu jovem subalterno.
Sancho fala sem parar enquanto dirige e bebe. Fala mal da juventude, dos drogados, dos criminosos – e lá pelas tantas diz que Clara, sua mulher, o está traindo. Do telefone do carro, liga para Clara (o papel de Ángela Molina). Vemos Clara atender ao telefone – e vemos que ela traz no rosto marcas de que apanhou do marido.
Pelo rádio do carro, chega a informação de que da rua tal uma pessoa havia ligado para a central de polícia dizendo que tinha ouvido o barulho de um tiro. O carro de Sancho e David estava perto daquela rua. Rapidamente os dois chegam até a casa de Elena. Um tiro havia sido disparado, sim, mas tinha pego Victor bem de raspão, e ele estava agora com o revólver na mão.
David, bom policial, tenta convencer o rapaz a entregar o revólver. Sancho, mau policial e já meio bêbado, atraca-se com Victor na tentativa de tirar a arma dele à força. Os dois rolam pelo chão.
Filme de grande diretor é uma maravilha – e então o espectador percebe, no meio daquela sequência tensa, de ação, que os olhares de Elena e do jovem policial se cruzaram, e a moça ficou impressionada, fascinada com ele.
Sancho e Victor rolam no chão, o revólver ainda na mão do rapaz.
A arma dispara.
Cinco pessoas com as vidas entrelaçadas
Me alonguei bastante na descrição dessas sequências iniciais do filme. Isso acontece volta e meia, me entusiasmo, me deixo levar.
Paro aqui de detalhar a trama. Vou apresentar alguns fatos básicos do que ocorre depois do disparo da arma na casa de Elena – e o disparo, é bom registrar, acontece quando o filme ainda está com 27 minutos. Bem menos de um terço de sua duração.
Há aí novo corte no tempo. Estamos em 1992. Victor está preso. David, que havia sido atingido pelo tiro e ficado paraplégico, é agora um astro na seleção nacional de basquete de cadeirantes – e está casado com Elena, que mudou inteiramente de vida, não é mais drogada, e mantém uma creche para garotos de famílias pobres ou desestruturadas.
Clara – que anos antes traía o brutal Sancho com David – ainda não havia conseguido fugir do casamento horroroso.
Haverá novo corte no tempo, para daí a quatro anos. Aos 32 minutos de filme, estamos em 1996 – o ano anterior ao do lançamento do próprio filme. Victor sai da prisão. A mãe havia morrido enquanto ele estava preso.
Haverá muita, mas muita, mas muita coisa envolvendo as vidas de Victor, Elena, David, Clara e Sancho. (Na foto abaixo, Ángela Molina, que interpreta Clara.)
Um genial criador de tramas e personagens
Quando revi Kika, de 1993, anotei: “Quanta história, quanto personagem, cada uma e cada um mais interessante que o outro – e tudo embaralhado e entrelaçado com brilho. Parece os melhores momentos de Paul McCartney ou Cat Stevens, quando sobram melodias dentro da mesma canção.”
Voltei a fazer essa comparação com Paul McCartney e Cat Stevens ao comentar outros filmes de Almodóvar, porque acho que tem tudo a ver. Repito o que escrevi depois de ver Abraços Partidos, de 2009, um dos vários em que ele dirigiu essa maravilha que é Penélope Cruz:
“Almodóvar se parece um tanto com Paul McCartney e com Cat Stevens, hoje Yusuf. E parece também Woody Allen e Ingmar Bergman. Paul McCartney e Cat Stevens são, na minha opinião, os compositores mais prolíficos da música popular das últimas muitas décadas. As canções, as melodias, as frases melódicas brotam da cabeça deles com uma facilidade espantosa, aos montes, aos borbotões, sem parar. É uma coisa absurda, sem jeito, anormal. Há canções em que eles usam duas, três, quatro frases musicais diferentes. É espantoso.
Almodóvar é assim com suas histórias. As histórias parecem brotar loucamente da sua cabeça. (E loucamente, aqui, é um adjetivo justo como luva: Almodóvar é louco, todos sabemos. Louco, obviamente, no melhor dos sentidos…)
Quanto à segunda comparação, é bem simples. É sobre a regularidade com que Almodóvar lança seus filmes, sempre (a rigor, praticamente sempre…) baseados em histórias originais do próprio cineasta. Além dele, só consigo me lembrar de Woody Allen e Ingmar Bergman, que, ao longo de décadas, conseguiram manter o ritmo alucinante de um novo filme por ano, um novo filme de história original nova por ano, ou a cada dois anos.
Claro, há outros cineastas que produzem um filme por ano, ou quase isso, na média. Mas com argumento e roteiro originais, além de Almodóvar só me lembro de Woody Allen e Bergman.”
E é fantástico: mesmo neste Carne Trêmula aqui, baseado no, ou, a rigor, adaptado do romance inglês Live Flesh, ele faz uma obra pessoal, e que tem o mesmo tipo de história que as de sua autoria.
Personagens interessantes, que seduzem o espectador – e os destinos deles inteiramente embaralhados e entrelaçado com brilho.
O cara é um genial criador de tramas e personagens. (Na foto abaixo, José Sancho, que interpreta Sancho.)
Em 1996, a Espanha havia perdido o medo fazia tempo
Almodóvar não é muito de falar explicitamente de política. Mães Paralelas, de 2021, me surpreendeu pelo tom abertamente político, pela denúncia forte, dura, dos horrores cometidos pelo fascismo na Espanha. Nunca tinha visto isso antes nos filmes do diretor.
Mas, em boa parte, o problema é que não vi todos os filmes do grande cineasta, e não os vi em ordem cronológica. Tento tirar o atraso, tento resolver essa falha, e tenho visto os filmes mais antigos dele sempre que posso.
Este Carne Trêmula começa e termina com toques políticos, com uma firme condenação à ditadura franquista.
O filme abre com um letreiro – letras grandes, em maiúsculas, brancas sobre fundo preto. É um comunicado oficial:
“Estado de exceção declarado em todo o território nacional. A defesa da paz, do progresso da Espanha e os direitos dos espanhóis obrigam o governo a suspender os artigos legais que afetam a liberdade de expressão, liberdade de residência, liberdade de reunião e associação, assim como o artigo 18 segundo o qual nenhum espanhol poderá ser detido, a não ser nos casos e na forma expressos nas leis.”
E, em seguida, em letras de um vermelho vivo, almodovariano, vêm o onde e o quando: “Madri, janeiro de 1970”.
E aí começa aquele intróito, Isabel-Penélope Cruz urrando de dor com o parto iminente, Doña Centro-Pilar Bardem cuidando dela, conduzindo-a para a rua à procura de um táxi para levá-la ao hospital – e as ruas da capital da Espanha estão absolutamente desertas. Passa o táxi que não pára, depois vem o ônibus que Doña Centro pára na marra – mas não há ninguém nas ruas. Nem veículos, nem pessoas.
Um país em estado de exceção – não apenas sob uma ditadura, mas sob uma ditadura e especificamente naqueles dias em estado de exceção. Provavelmente com toque de recolher.
Numa pesquisa rápida, nada aprofundada, não encontrei informações sobre o estado de exceção que a ditadura franquista impôs em 1969, 1970, mas, a rigor, não é necessário saber isso.
O fato é que o apressado Victor veio ao mundo num momento em que a Espanha sofria, além da ditadura que durou de 1936 a 1978, um estado de exceção. Um período de excepcional ditadura dentro da ditadura – algo como dezembro de 1968 e os meses todos que se seguiram ao AI-5 no Brasil.
Carne Trêmula começa em 1970 com uma mulher dando à luz, e termina também com uma mulher prestes a dar à luz, numa noite de inverno, da época natalina. Mas é 1996, e tudo mudou. As calçadas do centro de Madri estão absolutamente cheias de gente, as ruas estão congestionadas.
Em 1970, quando o filme começa, “todos estavam em casa, com medo”.
Em 1996, quando o filme termina, “a Espanha perdeu o medo faz tempo.”
Ah, meu… O cara é bom demais da conta!
Os temas da autora são os temas de Almodóvar
Gostaria de registrar algumas informações sobre Ruth Barbara Rendell (1930-2015), tornada baronesa Rendell Banergh e CBE (Commander of the Order of the British Empire), que parece ter sido uma pessoa interessante, fantástica, além de uma brilhante e prolífica escritora. Tornada nobre, foi escolhida para a House of Lords, a câmara alta do Parlamento Britânico – mas era filiada ao Partido Trabalhista, e não ao Conservador. Foi uma das maiores doadoras privadas para o partido, e introduziu no Parlamento o projeto de lei que iria virar o que Female Genital Mutilation Act 2003 – a legislação contra a mutilação genital no Reino Unido.
Prolífica. A mulher escreveu dezenas, dezenas, dezenas de livros. Só os com o inspetor Wexford, sua criatura, seu Holmes, Poirot, Espinosa, foram 14. Sob o pseudônimo de Barbara Vine foram 10. Reuniões de contos foram outros 10 livros. Escreveu três volumes de não-ficção, inclusive um cujo título fisga a gente – The Reason Why: An Anthology of the Murderous Mind (1995).
Há 22 títulos de filmes e/ou séries baseados em histórias criadas por Ruth Rendell. Um desses títulos é Ruth Rendell Mysteries, uma série de TV que teve 79 episódios entre 1987 e 2000. E se baseiam em livros dela dois filmes de Claude Chabrol, A Dama de Honra, de 2004, e a obra-prima Mulheres Diabólicas/La Cérémonie, de 1995.
Como diz a Wikipedia: Ruth Rendell foi uma criadora de romances policiais psicológicos, “explorando temas como obsessão romântica, comunicação mal interpretada, o impacto da chance e da coincidência, e a humanidade dos criminosos”.
Dá vontade de ir atrás de livros de Ruth Rendell. Almodóvar deve ter lido alguns. Obsessão romântica, o acaso, as coincidências, a humanidade dos criminosos – os temas da baronesa são os dele…
Um Almodóvar que parte de uma história que não é de Almodóvar. Um Almodóvar que fala abertamente de política. E – incrível! – um Almodóvar que nem tem homossexual, transexual.
Eis aí três interessantes, marcantes características de Carne Trêmula.
Há ainda uma outra. De uma certa maneira, assim, no fundo, no fundo, apesar dos tiros, das mortes, da prisão, da trepação fora dos casamentos, das traições, Carnê Trêmula é uma história de amor. E de um amor hétero!
Dá pra imaginar isso? Um Almodóvar que é uma história de amor hétero?
O cara é realmente surpreendente…
Anotação em maio de 2023
Carne Trêmula/Carne Tremula
De Pedro Almodóvar, Espanha-França, 1997
Com Liberto Rabal (Víctor Plaza),
Francesca Neri (Elena Benedetti),
Javier Bardem (David de Paz),
Ángela Molina (Clara),
José Sancho (Sancho)
e Penélope Cruz (Isabel Plaza Caballero, a mãe de Victor), Pilar Bardem (Doña Centro de Mesa), Álex Ângulo (o motorista do ônibus), Mariola Fuentes (Clemen, a funcionária da creche), Yael Be (Chica), Josep Molins (Josep), Daniel Lanchas (motorista), María Rosenfeldt (menina), Agustín Almodóvar (coveiro), Elena Santonja (a mãe de Elena)
Roteiro Pedro Almodóvar, com a colaboração de Ray Loriga e Jorge Guerricaechevarría
Baseado no romance de Ruth Rendell
Fotografia Affonso Beato
Música Alberto Iglesias
Montagem José Salcedo
Desenho de produção Antxón Gómez
Figurinos José María de Cossío
Casting Katrina Bayonas
Produção Agustin Almodóvar, El Deseo, CiBy 2000, France 3 Cinéma.
Cor, 103 min (1h43)
***1/2
Título nos EUA: “Live Flesh”. Na França: “En chair et en os”. Em Portugal: “Em Carne Viva”.
“A gente não sabe de nada, de coisa alguma”, costuma dizer a Mary – e ela tem toda razão. Que maravilha essa conclusão!. Acrescento: e também não estamos preparados para coisa nenhuma: ser mãe, ser pai, ganhar dinheiro, formar, ter propriedade, sexo, etc. Pena que a gente passe a vida se enganando do contrário. Acho que foi a influência do Positivismo. Quantas vezes me senti uma burralda, sem saber que existem inteligências no Planeta. Carne Trêmula, apesar da existência de Mulheres à beira de um ataque histérico, é um dos melhores, senão o melhor filme dele. Sim, Mary tem razão: a gente não sabe de nada.
Gosto demais desse filme, e chover no molhado falar do talento do Pedro Almodóvar, o que achei estranho e que os carismáticos Liberto Rabal, e a bela Francesca Neri, não se tornaram estrelas, já Javier Bardem, viu sua estrela ir para Hollywood, como um foguete.