(Disponível na Netflix em 7/2021.)
Viver Duas Vezes, produção espanhola de 2019, é uma beleza, uma absoluta maravilha de filme. Mais ainda: é emocionante.
Há obras que são belas, maravilhosas, grandes – mas são frias. Este filme escrito por Maria Mínguez e dirigido por Maria Ripoli emociona.
Seguramente tem a ver com o fato de que é uma obra de mulheres – as mulheres são seres emocionantes, sem dúvida alguma.
É bom possível que o filme tenha me emocionado tanto porque fala de coisas que andavam muito próximas de mim naquele momento, a velhice, a decrepitude, a perda da memória, a perda da capacidade de a gente tomar conta de si mesmo – tragédias que estavam acometendo uma pessoa próxima demais, querida demais, e que estão à minha espera daqui a algumas esquinas.
O filme não me tocou apenas pelas tragédias, mas também pelo oposto, as melhores coisas da vida, as que fazem a vida valer a pena – o amor pela mulher, o amor pela filha, o amor pela neta.
Viver Duas Vezes consegue a difícil proeza de falar de algumas das coisas mais tristes que pode haver – o Alzheimer, a perda da razão, em primeiro lugar, mas também a tragédia da infidelidade, a tragédia de ser pré-adolescente e “aleijada” – com humor, graça, leveza. E equilibrar tudo isso com as pequenas e as grandes alegrias da vida, com sensibilidade que só os verdadeiros artistas – e as mulheres, de uma maneira geral – conseguem ter.
Ao ver essa maravilha, e ao me emocionar com ela porque trata de temas tão próximos de mim, não conseguia deixar de pensar também em algo que já disse mais de uma vez aqui: hoje em dia, e já há alguns bons anos, o melhor cinema que se faz no mundo, depois do das Ilhas Britânicas, é o espanhol.
Uma diretora de carreira internacional
Duas Marias.
Maria Ripoll, a diretora, é de Barcelona, de 1964, o ano em que eu anotei no meu caderno ter visto 146 filmes, vários deles dos melhores realizadores da História. É poderosa: fez um curso sobre roteiros no American Film Institute, em Los Angeles, e filmou lá, em 1993, um curta, Kill Me Later. Sua estréia no longa, em 1998, foi uma co-produção – que fantástico! – Espanha-França-Inglaterra-Alemanha-EUA, filmada na Inglaterra, The Man With Rain in His Shoes, com Lena Headey, Douglas Henshall e Penélope Cruz. O filme de estréia passou em festivais e deu a ela uma indicação ao Goya – o Oscar espanhol – de melhor novo diretor.
A mulher é poderosa – e internacional. Fez dois filmes nos Estados Unidos, depois voltou para a Espanha, filmou lá. Em 2014 fez o drama Traces of Sandalwood, filmado em Bombaim-hoje-Mumbai e em Barcelona, falado em hindi, inglês e catalão – e com ele ganhou o Gaudi, o Oscar da Catalunha, de melhor filme.
O filme seguinte, Ahora o Nunca, de 2015, uma comédia romântica, estourou a boca do balão: tornou-se o filme dirigido por cineasta mulher de maior bilheteria da história da Espanha. Sucesso absoluto no quesito público, teve também o reconhecimento nos festivais de Montreal, Toronto e Miami.
Viver Duas Vezes, um filme totalmente espanhol, foi seu oitavo longa-metragem.
Mas a mulher parece ter de fato gosto por uma carreira internacional. Seu filme seguinte, depois deste Viver Duas Vezes aqui, é uma produção mexicana, Guerra de Likes/War of Likes, distribuído em 2021 pela gigante do streaming Amazon Prime.
Uau!
Muito prazer, Maria Rippol!
Sobre Maria Mínguez, a autora do roteiro original, ou seja, roteiro sobre história escrita diretamente para o filme, encontrei poucas informações. A Wikipedia em espanhol ainda não tem um verbete para ela. O IMDb informa que a moça já dirigiu dois curta-metragens, trabalhou como assistente de direção em duas séries de TV e dois curtas, e tem 11 títulos como roteirista.
A história que Maria Mínguez criou e roteirizou, e Maria Rippol dirigiu com classe de veterana, é gostosa, envolvente, inteligente e, como já disse e não vou cansar de repetir, emocionante.
Em poucos minutos, o protagonista está desenhado
Passa-se uma vida inteira entre a primeira sequência e o início da segunda de Viver Duas Vezes.
Na primeira sequência – bem rápida – Emilio, o protagonista da história, é um garoto aí de uns, sei lá, 13, 14 anos (interpretado por Lucas Cavataio). Apaixonado por Matemática, está, num deque junto do mar, resolvendo um problema de sudoku, aquele jogo de números que tem a aparência de palavras cruzadas. Perto dele está uma gatinha linda como são as moças por quem os adolescentes se apaixonam. Ela está de costas para ele, e canta, suavissimamente, os primeiros versos de “Perfidia”.
A câmara se aproxima do papel em que ele faz um sudoku, e aí vem a mágica da montagem. Corta, e a câmara mostra, também em close-up, um outro sudoku, publicado em um jornal. Passaram-se aí mais de 50 anos, e o mesmo Emílio está sentado no bar em que toma o café da manhã. O espectador percebe que ele é um cliente de todos os dias pela conversa que tem com a dona do bar, um belo lugar – La Pilareta, se chama – numa esquina de uma também bela cidade que, veremos logo, é Valência.
(Diacho: não consegui identificar quem é a atriz que faz a dona do La Pilareta. O nome da personagem não é dito. Por exclusão, creio que a atriz deve provavelmente ser Aina Clotet, que na relação dos personagens, nos créditos finais, aparece como “camareira”.)
A moça olha para o jornal na mesa dele e diz: – “Não acredito. Acho que é a primeira vez em anos que sirvo seu café da manhã antes de você terminar o sudoku.”
Emilio, aí com uns 70 e muitos anos – as duas Marias e o grande ator Oscar Martínez evidenciam isso com maestria já nos primeiros minutos do filme – é um velho cheio de manias, exigente, rígido, rigoroso, um tanto tosco, brusco, no trato com qualquer outro representante da raça humana. – “Não se chama sukoku”, responde para a moça simpática, com aquele ar de dono absoluto de todas as verdades. – “Chama-se quadrado mágico. Os japoneses acham que inventaram, mas só deram o nome a algo que já existia.”
Daí a pouco, já de pé, junto do balcão, diante da dona do bar, Emilio pega dinheiro para pagar a conta, e ela diz que ele já pagou.
Não conseguiu terminar o sudoku – e ele era professor universitário de Matemática – e se esqueceu de que já havia pago a conta. Dois sinais de que o cérebro de Emilio está falhando.
As duas Marias, a autora e a diretora, são rápidas no gatilho. O filme ainda não tem três minutos e já sabemos fatos básicos sobre o protagonista da história.
A garotinha da adolescência ronda na cabeça dele
Quando o filme está com seis minutos, um médico está mostrando para Emilio uma imagem do cérebro: – “Está vendo esta parte? É o hipocampo. É onde está a maioria das suas memórias recentes. Estas são as primeiras que serão perdidas. Depois disso passará para a parte frontal, que é onde reside o pensamento lógico, e isso afetará sua habilidade de resolver problemas.”
E então ouvimos – Emílio e nós – a voz pequena e suave de uma jovem cantando aquela canção tão antiga: “Mujer, / Si puedes tu con Dios hablar, / Preguntale si yo alguna vez / Te he dejado de adorar / Y al mar, / Espejo de mi corazón, / Las veces que me ha visto llorar / La perfidia de tu amor”;
E vemos – Emílio e nós – a gatinha linda se aproximar do garoto Emílio no deque que avança sobre a água e perguntar o que é aquilo que ele está fazendo.
Ele: – “Um quadrado mágico. Um enigma matemático.”
Ela: – “Parece chato, né? Não gosto de Matemática. Não sei para que serve.”
No original é mais bonito: – “A mi no me gustan las Matemáticas. No entiendo para que sirve.”
Ele: – “Matemática serve para tudo. Para isso, por exemplo. As proporções desse S são formas geométricas.”
Ela dirá a ele que gosta mesmo é de ler e escrever.
O que se vai perdendo primeiro são as lembranças mais recentes. As bem antigas demoram mais a ir embora – e então, aos 70 e tantos anos e diagnosticado de Alzheimer, Emilio ficará com a figura de Margarita, que ele conheceu num verão bem mais de meio século atrás, rondando na cabeça.
A neta vai ensinar o velho a usar celular
O trabalho da autora e roteirista Maria Mínguez foi extraordinário. Ela não apenas conseguiu criar uma trama atraente, interessante, emocionante, como construiu com arte admirável os personagens centrais da história – o protagonista Emilio, a filha Julia, a neta Bianca, o genro Felipe – e a forma com que se relacionam.
Cheio de manias, rígido, um tanto tosco, como já foi dito, Emilio, um viúvo, não era próximo da filha, nem da neta e muito menos do genro. Vai ter que se aproximar deles, mesmo a contragosto, a partir exatamente do diagnóstico do Mal de Alzheimer.
Fica bastante claro, desde a primeira sequência em que Julia aparece, que, além de não ser próximo da filha, Emilio não tem grande admiração ou respeito por ela. Menospreza sua profissão – a moça é representante comercial de produtos hospitalares, e o pai a define como vendedora.
Julia (o papel da bela e ótima Inma Cuesta, na foto acima) parece perceber que o pai não a aprecia – mas, em vez de se afastar, se fechar, demonstra grande afeto por ele. Preocupa-se com sua saúde, quer que Emilio vá morar com ela, o marido e a filha.
O genro, Felipe (Nacho Lopez), esse, coitado, é um bobo, um tanto chato. Está desempregado, e tenta se virar como coaching – um aconselhador, um distribuidor da fórmula perfeita de como fazer amigos, influenciar pessoas e ser feliz. Incorporou essas fórmulas dos livros de auto-ajuda e fica repetindo essa lenga-lenga em qualquer situação.
Da neta, Emilio parece sequer perceber a existência. Bianca é uma menina de uns 10 anos, inteligente, espertíssima, como os exemplares todos dessa geração que caiu no caldeirão da informação ao nascer.
(Ela é interpretada por Mafalda Carbonell, uma garotinha que completou os 10 anos durante as filmagens e é uma absoluta revelação. Ela rouba todas as cenas em que aparece, é uma coisa impressionante. Será forçoso falar de Mafalda Carbonell mais adiante.)
Diante da recusa firme, contundente, do pai de deixar seu apartamento e viver com ela, Julia dá uma outra opção da qual Emilio não poderá fugir: ele terá que usar um celular.
O velho turrão tenta escapulir dizendo que não gosta de celular, que não sabe usar, mas Julia tem a resposta pronta: a neta Bianca pode ensiná-lo. Ela é expert em celular.
“Um celular é Deus. Pode fazer tudo.”
Expert em celular, e esperta pra diabo, Bianca demonstra para o avô, como quem não quer nada, que o aparelhinho tem, por exemplo, jogos com problemas matemáticos. Aí Emilio pela primeira vez presta atenção a um celular.
A sequência – ali quando o filme está com uns 20 minutos – é magnífica.
Curioso com o jogo que Bianca lhe mostra, Emilio resolve o problema matemático, é claro. E pergunta: – “O que mais se pode fazer com esse troço?”
“Este traste” é o que ele diz no original, creio.
A resposta de Bianca é uma absoluta maravilha: – “Você quer dizer ‘o que não dá para fazer’. Um celular é Deus. Pode fazer tudo.”
E mostra, por exemplo, que o traste, ou melhor, Deus, pode, por exemplo, espiar as pessoas. Lê para o avô as informações sobre ele mesmo disponíveis na internet: – “Professor da Universidade de Valência. Descobridor de um número primo. Mandou uma carta para um editor de jornal reclamando de um… O que é um quadrado mágico?”
A possibilidade de saber informações sobre as pessoas aguça a curiosidade de Emilio. Ele pede que Bianca procure informações sobre a menina linda que conheceu quando era garoto, e que nunca mais voltou a ver. – “O que acontece se você puser aí Margarita Piquer García?”
Deus, quer dizer, o celular informa que Margarita foi professora de Literatura em Navarra.
Não vai demorar muito até que o azedo Emilio, o Alzheimer tomando conta cada vez mais do cérebro antes maravilhoso, embarque numa aventura, junto com a netinha de buffer ainda vazio, as celulinhas cinzentas faiscando de brilho, rumo a Navarra. Velho e garotinha enfrentarão problemas, é claro – e Julia e o marido chato (e infiel) irão em socorro deles.
Depois de algum tempo de recriminações e reclamações por causa da fuga do velho e da garota, há um diálogo entre pai e filha absolutamente sensacional, daqueles que fazem o espectador chorar – ou aplaudir de pé como na ópera, ou as duas coisas juntas.
Uma beleza de diálogo, uma beleza de cinema
Estão os dois de pé, junto do posto de gasolina/loja de conveniência na estrada entre Valência e Navarra em que Julia e o marido foram encontrar Emilio e Bianca.
O diálogo começa com um plano de conjunto, Emilio-Oscar Martinez e Julia-Inma Cuesta vistos inteiros, no centro da tela. Continua em um plano americano, os dois vistos agora bem mais de perto, da cintura para cima. Virão em seguida close-ups dos rostos de um e de outro. Grandes atores, grande diálogo, grande cinema.
Ela: – “Então essa tal de Margarita é um amor de infância, que você sempre amou, mas por quem nunca se declarou. Mas você se casou com a minha mãe, e acabei de descobrir que não a amava.”
Ele: – “Eu amava, sim, a sua mãe. Muito. Só não era apaixonado por ela.”
Ela: – “E agora, 50 anos depois, você quer ir a Navarra, procurar essa mulher, com a intenção de quê? Quero dizer, de… Não sei. Casar, ter filhos, uma família? O quê?”
Ele: – “Só quero vê-la.”
Ela: – “Se estava tão apaixonado por ela, por que nunca lhe disse?”
Ele: – “Tinha muito o que estudar. Não havia espaço na equação para isso.”
Julia ri daquilo, um riso triste. Ele pergunta o que é, ela diz que não é nada, ele insiste: – “Não se descobre um número primo sem renunciar a nada.”
Ela: – “Sabe por que escolhi Ciências, e não Letras? Porque só passávamos algum tempo juntos quando eu estava estudando Matemática.”
Ele: – “Isso não é verdade. Também fazíamos juntos os deveres de Química.”
Um pai ausente.
De que vale ser um gênio na Matemática se é um pai ausente?
E aí Emilio faz um pedido à filha. Seguramente pela primeira vez na vida.
Ele: – “Você sempre está reclamando que eu não te peço ajuda. Pois bem, estou pedindo agora. Por favor, filha, me ajude a encontrar Margarita.
Ela: – “Por que agora? Mamãe morreu há cinco anos. Por que não foi antes?”
Ele: – “Porque vou esquecê-la. (Uma longa pausa.) Passei a vida toda tentando não pensar em Margarita. E agora que sei que vai acontecer, não quero.
O reencontro com a paixão da juventude
Ah, a procura pelo amor da juventude… O reencontro, meio século depois, com o amor da juventude.
Gabriel García Márquez escreveu sobre isso um romance belíssimo, um dos grandes textos literários do século XX, a epopéia que é a história de amor entre Florentino Ariza e Fermina Urbino em O Amor nos Tempos do Cólera, lançado em 1985 – a época em que meu segundo casamento estava acabando e eu aproveitava para namorar um monte de mulheres incríveis.
Décadas antes de García Márquez escrever aquela maravilha, o mineiro Aníbal Machado (1894-1964) escreveu um conto que é poesia já no título: Viagem aos Seios de Duília. É a história de um funcionário público que, depois de aposentado, volta à sua cidade natal no interior de Minas em busca da mulher que amou aos 15 anos de idade. Viagem aos Seios de Duília virou filme em 1964, o ano em que Aníbal Machado morreu (e eu, aos 14 anos de idade, me apaixonava não por uma, mas por várias das meninas mineiras maravilhosas do Colégio de Aplicação, Dudu, Mercedes, Bete…). Foi uma co-produção Brasil-Portugal, dirigida pelo argentino Carlos Hugo Christensen, com Rodolfo Mayer, Nathália Timberg e Lícia Magna como Duília.)
A arte imita a vida que imita a arte que imita a própria arte e a vida. Floriano, meu irmão mais velho vive há alguns anos uma história de amor bem parecida com a de Florentino Ariza e Fermina Urbino: passados os 80 anos, reencontrou a namorada dos 16, 17 – e os dois enfim passaram a viver felizes sua paixão.
Uma garotinha sensacional, maravilhosa
Os cinemas espanhol e argentino têm grande, forte ligação – algo bem semelhante ao que acontece com os cinemas britânico e americano. Boa parte dos filmes argentinos é feita em co-produção com a Espanha, com apoio de produtoras espanholas.
É bastante comum atores argentinos trabalharem em produções espanholas – e vice-versa. Cecilia Roth, por exemplo, fez carreira na Espanha, depois passou uma boa temporada na sua argentina natal, depois voltou para a Espanha. O argentino Dario Grandinetti trabalhou em Julieta, o Pedro Almodóvar de 2016. A espanhola Inma Cuesta, a Júlia deste Viver Duas Vezes, trabalhou no belo Kóblic, de 2016, que fala da ditadura dos militares na Argentina dos anos 60 e 70 – ao lado dos argentinos Ricardo Darín e Oscar Martínez. Sim, Oscar Martínez, o protagonista aqui.
Darín estrelou um grande filme espanhol, Truman, de 2015. Seu personagem, Julián, vive há vários anos na Espanha – mas é um imigrante argentino.
Esse tipo de coisa é bastante comum: para justificar o sotaque argentino, os personagens dos filmes espanhóis interpretados por atores nuestros hermanos aí do Sul são imigrantes argentinos, ou viveram naquele país durante muitos anos.
Ao escolher o argentino Oscar Martínez para o papel do protagonista desta história totalmente passada na Espanha, a diretora Maria Ripoll chegou a pensar em usar um expediente assim – dizer em algum momento que Emilio era filho de argentinos, ou algo do gênero. Acabou desistindo.
O site catalão El Periódico fez uma entrevista com a realizadora na época do lançamento do filme na Espanha, setembro de 2019; a matéria, com o título “Curiosidades de la comedia ‘Vivir dos veces’ explicadas por su diretora”, é interessantíssima – e, ao falar desse detalhe, o sotaque de Oscar Martínez, ela comete uma frase assustadora e engraçada:
“Es la primera vez que el actor argentino hace un papel en castellano.”
Como é que é? Nos demais filmes ele fala em que, ô Dona Maria Rippol? Javanês? Sânscrito? Mandarim?
Segundo a diretora espanhola da Catalunha Maria Rippol, a língua que se fala na Argentina não é o castelhano!
Bem, mas aí vai o que ela diz sobre isso: “A princípio, o roteiro justificava que ele tivesse o sotaque argentino, seu pai vinha de lá. Mas nos demos conta de que isso complicava muito e não fazia falta alguma, já que o importante é o ser humano. A verdade é que ficamos muito orgulhosos do resultado, porque é muito difícil, e ficou muito bom.”
E chegamos a Mafalda Carbonell, a garota que completou 10 anos de idade durante as filmagens de Vivir Dos Veces e consegue roubar todas as sequências em que aparece.
No belo roteiro escrito por Maria Mínguez, Bianca, a neta esperta do seco Emilio, era uma adolescente de 16 ou 17 anos. No entanto, a turma que fez a escolha dos atores, que realizou os testes com os candidatos (as diretoras de casting do filme são Ana Sainz-Trápaga e Patricia Álvarez de Miranda) ficou muito impressionada com a garota Mafalda Carbonell. E insistiu para que a diretora Maria Rippol a conhecesse.
– “Era uma bomba”, disse a diretora na entrevista ao El Periódico. “Tivemos que adaptar o roteiro. Foi um grande acerto.”
A menina de fato é uma coisa absolutamente fora de jeito. É uma maravilha, um esplendor.
Mafalda é filha de um ator, Pablo Carbonell. Sua tia, irmã do pai, Nuria Carbonell, também é atriz. E o pai e ela são primos ainda de uma outra atriz, Aitana Sánchez-Gijón (de, entre cerca de 70 títulos, Caminhando nas Nuvens, 1995, e Eu Não Tenho Medo, 2003).
Família de artistas.
E um pai e uma mãe maravilhosos, como enfatiza a realizadora do filme.
Mafalda tem um problema de mobilidade, um problema de nascença que a faz mancar. O roteiro foi alterado para que Bianca, a personagem, tivesse esse problema. “O que se diz num diálogo é autêntico”, diz Maria Rippol. “Os médicos disseram que ela não poderia caminhar. Fica muito claro que os pais fizeram um grande trabalho de apoio, de educação, para levá-la a médicos e forçá-la a tentar caminhar. E deram muito carinho, para que ela seja quem é. Não tem complexos, é viva, tem auto-estima, é curiosa e forte. Não caminha bem, mas era a que melhor aguentava o tempo de filmagem. Tem muita graça, e conquistou todo mundo na equipe desde o primeiro dia.”
O espectador vê na tela que tudo isso que a diretora diz é a pura verdade. Incluíram no roteiro frases a respeito do fato de Bianca mancar – e Bianca, exatamente como Mafalda, tira de letra, leva na boa. Mafalda faz de Bianca uma criança de 10 anos de idade que é um pouco cheinha e manca – mas tem tanta inteligência, uma personalidade, uma força, uma alegria de viver, que esses detalhinhos físicos desaparecem, somem, não existem.
Viver Dos Veces é um filmaço, uma coisa abençoada. Virei fã de carteirinha de Maria Rippol e de Mafalda Carbonell.
Anotação em julho de 2021
Viver Duas Vezes/Vivir Dos Veces
De Maria Ripoll, Espanha, 2019
Com Oscar Martínez (Emilio),
Inma Cuesta (Julia, a filha),
Mafalda Carbonell (Blanca, a neta),
Nacho López (Felipe, o genro)
e Isabel Requena (Margarita velha), Valeria Schoneveld (Margarita garota), Lucas Cavataio (Emilio garoto), Antonio Valero (Lorenzo, o marido de Margarita), María Zamora (Catalina, a médica), Hugo Balaguer (Pau, a paquera de Blanca), Aina Clotet (camareira), Amparo Oltra (enfermeira Paqui), Mamen García (Angustias), Manuel Valls (médico), Silvia Valero (doutora Simón), Jordi Aguilar (o ex-aluno de Emilio), Jordi Tamarit (professor da classe de Blanca), Nieves Soria (noiva), Hugo Sáez Contreras (Tomás), Martina García (amiga de Blanca), Cristina Rodríguez (mãe da amiga de Blanca)
Argumento e roteiro María Mínguez
Fotografia Núria Roldos
Música Arnau Bataller
Montagem Nacho Ruiz Capillas
Casting Ana Sainz-Trápaga, Patricia Álvarez de Miranda
Direção de arte Sandra Frantz
Figurinos Cristina Rodríguez
Produção Juan Estrada, María Carolina Estrada, Gustavo Ferrado, Eva Muslera, Roberto Schroeder, Alamar Cinena 161, Convoy Films, Crea SGR, Film Factory Entertainment, Generalitat Valenciana, Netflix.
Cor, 101 min (1h41)
****