O Rosto / Ansiktet

3.0 out of 5.0 stars

Ingmar Bergman é um dos melhores cineastas que já houve, se não o melhor de todos. Já disse isso aqui várias vezes. No entanto, apesar de todo o imenso respeito, fiquei com a sensação de que, se ele não nos desse explicações, ficaríamos sem entender o que ele quis dizer com este O Rosto.

Sim – claro que há ali o confronto entre o mágico e o absolutamente, friamente racional. Entre o crente e o cético.

Mas, além disso… O que foi mesmo que ele quis dizer?

Ele explicou. Há todo um capítulo no maravilhoso livro Imagens, no original Bilder, lançado na Suécia em 1990 e no Brasil, pela Martins Fontes, em 1996, sobre as circunstâncias em que vivia na época em que realizou o filme. Gostaria de transcrever aqui todo o capítulo, porque vale a pena. O relato é interessantíssimo, o texto de Bergman é agradável, gostoso de se ler.

E vou também transcrever, como sempre, a opinião de grandes críticos. Mas antes gostaria de situar o filme na sua época e relatar um pouco sobre de que trata, afinal, este Ansiktet – o 20º longa-metragem dirigido pelo cineasta, lançado em 1958, quando Bergman estava com 40 anos e já era um nome absolutamente respeitado na Suécia e internacionalmente.

É bom registrar: Bergman começou a carreira no cinema em 1944, como roteirista e assistente de direção de Tormentos/Hets. Em paralelo, sempre manteve uma carreira no teatro, encenando ao menos uma peça por ano. A partir de Prisão, de 1949, seu sexto filme como diretor, passou a ter o reconhecimento da crítica e do público de seu país, segundo os estudiosos de sua obra. Monika e o Desejo/Sommaren med Monika, de 1952, causou furor nos Estados Unidos – mas isso se deveu mais ao fato de nele a jovem Harriet Andersson aparecer nua, ou seminua, em várias tomadas, do que pelas demais qualidades do filme. A partir de Sorrisos de uma Noite de Verão, de 1955, passou de fato a ser reconhecido internacionalmente. Ele mesmo afirmou: “A partir de Sommarnattens Leende, ninguém mais interferiu no meu trabalho. Sempre fiz o que quis.”

E, depois daquela comédia engraçadíssima, deliciosa, “uma das melhores comédias românticas de todos os tempos”, na definição do crítico Leonard Maltin, que encantou os jurados do Festival de Cannes e deram a ele um prêmio especial de “Humor Poético”, Ingmar Bergman fez O Sétimo Selo em 1956 e Morangos Silvestres em 1957. Duas obras-primas, uma atrás da outra.

O Rosto, que veio a seguir, está muito longe de ser uma obra-prima. Na minha opinião, sequer chega a ser um grande filme. Embora, sendo um Bergman, tenha, evidentemente, muito valor.

Uma trupe mambembe na estrada

É sobre uma trupe de saltimbancos, artistas de variedades mambembes, daqueles que vão de cidade em cidade apresentando seu ato. Nas primeiras sequências, somos apresentados aos cinco componentes da trupe – que tem o nome algo enigmático de Teatro da Saúde Magnética de Vogler –, em viagem, numa velha carruagem, pelo que é um interior perdido, rumo a uma pequenina cidade.

Difícil saber em que época se passa aquilo – mas lá pelo meio da narrativa veremos uma data, 1846. E não se estabelece exatamente em que lugar se passa – fala-se em Dinamarca, em Suécia. Um interior perdido ou da Dinamarca ou da Suécia.

O chefe da trupe se chama Albert Emanuel Vogler. Mesmo durante uma viagem por estrada poeirenta, veste-se como se estivesse pronto para uma apresentação. Com uma peruca negra, barba postiça negra, uma cartola, fica difícil reconhecer nele o grande Max von Sydow. Será só quando o filme está com 60 dos seus 102 minutos que Vogler, fechado no quarto em que vai dormir, tira a peruca e a barba e o espectador reconhece perfeitamente Max von Sydow.

A seu lado no banco da carruagem, também vestido em traje social, uma grande gravata borboleta negra, há o que nos será apresentado como o senhor Aman, jovem assistente do “doutor Vogler”. Os espectadores que conhecem um pouco dos filmes de Bergman reconhecerão que o senhor Aman é interpretado por Ingrid Thulin – e será apenas lá pelo meio do filme que, também na privacidade do quarto de dormir, o senhor Aman se mostra como Manda Vogler, a esposa do chefe da trupe, e Ingrid Thulin se mostra como Ingrid Thulin, com longos cabelos louros antes escondidos pela peruca que a ajuda a se travestir em homem.

No outro banco, de frente para Vogler e o senhor Aman, estão Tubal e a Vovó Vogler – os papéis de Åke Fridell e a maravilhosa Naima Wifstrand (1890–1968), que em Morangos Silvestres faz a sra. Borg, a mãe do idoso professor Eberhard Isak Borg, o protagonista que vai receber o título de doutor honoris causa.

A Vovó Vogler criada por Bergman e por Naima Wifstrand parece uma bruxa. Nas primeiras tomadas do filme, vemos os integrantes da trupe numa pausa da viagem, uma parada para descanso, antes de subirem de novo na carruagem – e a Vovó Vogler está remexendo em plantas, à procura de alguma coisa, seguramente um elemento para uma poção. Sim, ela cria poções – inclusive uma rara poção do amor. Será dito (e ninguém contradiz) que ela está com 200 anos de idade.

Tubal é um senhor aí de uns 50 e tantos anos, que se veste e age e fala espalhafatosamente. É apresentado como um assistente, mas tudo indica que, nas apresentações da trupe, ele é o mestre de cerimônias. Ele de fato fala – sempre, mesmo durante a viagem com os colegas de ato – como se estivesse num palco de teatro lotado.

O quinto elemento da trupe é o cocheiro e um tanto faz-tudo Simson (Lars Ekborg), seguramente a figura, entre os cinco, que mais se aproxima do “normal”. É um sujeito jovem, aí de não mais de 30 anos, um tanto boa pinta – tanto que vai se engraçar por ele Sara, a mais bela e mais espevitada das empregadas da casa do cônsul Egerman, onde toda a trupe irá parar. Sara é interpretada por Bibi Andersson, que era à época, no esplendor dos 23 aninhos, a senhora Ingmar Bergman, embora sem papel passado.

(Bergman foi casado cinco vezes com papel passado. Entre um casamento oficial e outro, viveu, em ordem cronológica, com Harriet Andersson, Bibi Anderson e Liv Ullmann.)

Uma história feita de símbolos, uma alegoria

Antes de serem levados para a casa do cônsul Ergman, ainda na estrada, no meio de uma mata, os cinco integrantes do Teatro da Saúde Magnética de Vogler se encontram com Johan Spegel (o papel de Bengt Ekerot), um ator desempregado, sem eira nem beira, doente, muito doente, à morte.

Vogler é o primeiro a descer da carruagem ao perceberem movimentos e ouvirem um grito. Quando chega perto do traste deitado no chão, Spegel se apresenta e logo em seguida diz:

– “Poderia aliviar meu sofrimento dando-me um pouco de bebida? Pois a bebida é a minha doença, mas é também meu remédio.”

Depois de beber uma talagada oferecida por Vogler, e ao ficar de pé, ajudado por ele, Spegal o observa e então diz:

– “O senhor também é ator?” (A câmara do diretor de fotografia está mostrando os rostos dos dois homens de perfil, bem perto um do outro, em close-up. “Por que está maquilado? Sua barba é falsa e seu cabelo e sobrancelhas são pintados. É um vigarista que precisa esconder o próprio rosto?”

Vogler dá um sorriso que é só um esgar.

E o bêbado e doente Spegel é colocado para dentro da carruagem. Pouco adiante ele morre – ou ao menos parece que morre. Mais tarde vai reviver por uns breves instantes, e, morto, será de grande utilidade para Vogler. Mas isso aí acontece já quase no final.

O que cabe relatar, sem que seja spoiler, é que, um tempo depois que a carruagem pára e Vogler recolhe o pobre Spegel, policiais cercam o veículo, e o levam para a imensa mansão do cônsul Ergman.

Lá, os cinco integrantes da trupe são recebidos, examinados e questionados pelo cônsul Ergman (Erland Josephson), pelo superintendente de polícia Starbeck (Toivo Pawlo) e, sobretudo, pelo médico Vergerus (o papel de Gunnar Björnstrand). Eventualmente entrará no recinto a bela mulher do cônsul, Ottilia (o papel de Gertrud Fridh), que mais tarde se oferecerá a Vogler.

Aqueles três homens – o cônsul, o superintendente de polícia e o médico – querem saber exatamente o que faz o Teatro da Saúde Magnética de Vogler. Se há de fato mágica no que fazem, conforme alardeiam – ou se tudo não passa de engodo. Vão decidir se a trupe merece ou não se apresentar na cidade da qual são as grandes autoridades.

A chegada da trupe à mansão do cônsul acontece quando o filme está com 13 minutos. O que relatei, portanto, não atrapalha nada para quem não viu o filme.

O que pretendi com o relato do que rola até os 13 minutos do filme foi, em parte, apresentar do que se trata a história – e, em parte, tentar deixar claro que não estamos aqui diante de uma história que imite a realidade da vida. De forma alguma. A história criada por Ingmar Bergman aqui não tem nada, mas nada a ver com realismo. É outra coisa, outro campo. É uma história feita de símbolos. Um conjunto de metáforas. Uma parábola. Uma alegoria, talvez. Sempre me atrapalho com essas definições.

Uma alegoria é, em princípio, como ensina o Dicionário de Termos Literários do professor Massaud Moisés, um “discurso acerca de uma coisa para fazer compreender outra”.

Hum… Acho que é possível afirmar, então, que O Rosto é uma alegoria.

Jean Tulard adorou, Pauline Kael não

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 a The Magician, o título que os exibidores americanos deram a Ansiktet: “Complexo, provocativo relato sobre Albert Emanuel Vogler (von Sydow), um hipnotizador-mágico do século XIX que estudou com Mesmer mas se encontra cheio de dívidas e acusado de blasfêmia. Um profundo (e por um bom tempo subestimado) retrato de um homem que é em parte um trapaceiro, em parte um gênio”.

Uau, meu, gostei dessa definição do Maltin. Bem interessante. Sem dúvida – ao fim e ao cabo, Vogler, que as três “otoridades” da província tentam destruir como um impostor, se revela um grande artista…

A ver mais.

Sérgio Augusto incluiu O Rosto em 1001 Noites no Cinema, a edição brasileira lançada pela Companhia das Letras do 5001 Nighs at the Movies da prima donna da crítica americana, Pauline Kael. Isso me desobriga a traduzir o texto todo cheio de truques da madame – que, é necessário lembrar, era antenadíssima com o cinema europeu, diferentemente de muitos americanos.

No original (esse detalhe Sérgio Augusto deixou de fora da edição brasileira, com razão) ela abre o texto com o aviso: “Também conhecido como Ansiktet, que significa “The Face”). E aí vem:

“Este filme de Ingmar Bergman não é uma obra-prima, e nem mesmo um bom filme, mas visivelmente um filme feito por um mestre. Tem uma atmosfera de expectativa de conto de fadas, como aquelas histórias que começam assim: ‘Fomos ver o rei e no meio do caminho encontramos…’ Depois, torna-se confuso e discursivo. Mas as imagens misteriosas de Max von Sydow como o hipnotizador do século XIX Vogler e Ingrid Thulin como seu auxiliar Aman (a esposa de Vogler, Manda, disfarçada de homem) trazem tamanha carga latente que dominam o material juntado ás pressas. Bergman chama o filme de comédia, embora as platéias talvez não concordem. É uma história gótica metafísica com algumas cenas de baixa comédia e algumas brincadeiras horrendas envolvendo um olho ou mão. O tema, magia versus racionalismo, ou, se se preferir, fé versus ceticismo, ou arte versus ciência, ou ilusão versus realidade – é tratado de modo demasiado teatral para sustentar diálogos tão pesados como: “Eu sempre ansiei por uma faca que cortasse minha língua e meu sexo – cortasse todas as impurezas”. Há momentos em que teríamos prazer em entregar essa faca a Bergman. Ele usa um cenário do século XIX para os clichés do século XX – o homem de ciência (Gunnar Björnstrand como o médico Vérgerus) é frio e sádico etc. Os que se preocupam com a divisão entre emoção e intelecto jamais nos deixam em dúvida sobre o lado em que estão.”

No seu Guide des Films, mestre Jean Tulard faz uma longa sinopse sobre Le Visage para, em seguida, fazer sua avaliação com poucas palavras. Diz ele: “Extraordinário filme sobre a magia e a ilusão, a fé e o ceticismo, temas tratados de forma expressionista por um Bergman no auge de sua arte. Uma obra-prima.”

Olha aí, olha aí, freguesia! Eu, um espectador comum, abri este texto dizendo que o filme não é uma obra-prima. Só depois de escrever um tantão fui ler o texto de Pauline Kael, que diz exatamente a mesma coisa – da qual Jean Tulard discorda.

Un chef-d’oeuvre, diz ele!

“Somos atrativos desde que usemos nossas máscaras”

Eis o capítulo do livro Imagens dedicado a O Rosto.

“No Teatro Municipal de Malmö fiz encenações de 1952 até o final de 1958, princípios de 59. O Rosto, filme realizado no verão de 1958, reflete, evidentemente, experiências desse período.

Foram anos de boemia e muito trabalho. Bibi Andersson e eu morávamos num bairro chamado Stjärnhusen, zona situada junto à Limhamnsvägen (Rua Limhamn). Era um apartamento acanhado, de dois quartos e meio. Quando da construção dos edifícios, o Teatro Municipal tivera a sensatez de comprar ali uns quantos apartamentos. Estavam portanto numa localização ideal da cidade, possibilitando chegar ao teatro rápida e confortavelmente, de carro ou utilizando transportes públicos.

Vivíamos praticamente no teatro, salvo quando a sala estava reservada para os ensaios e concertos da orquestra sinfônica da cidade, às terças-feiras. Nesse dia convivíamos uns com os outros. Eu tinha comprado meu primeiro projetor de 16 mm e começava a colecionar filmes a sério, o que me possibilitava realizar “noites de cinema”,

A sociabilidade que esse trabalho intensivo, em grupo, me proporcionava substituiu, de maneira invulgar, toda a vida privada. Nem antes nem depois voltei a experimentar coisa semelhante. Todos que a vivemos falamos daquele tempo como o melhor de nossas vidas. Um ritmo de trabalho exigente e convivência profissional podem ser uma boa defesa contra as neuroses e a ameaçadora desintegração.

Há, por conseguinte, uma conexão entre o filme O Rosto e aquela existência. Nossas relações com a população local eram fracas, resumiam-se a um ou outro contato com gente estranha ao teatro.

O período em que chefiei o teatro de Helsingborg foi diferente. Os habitantes dessa cidade achavam que nós, os atores, lhe davam vida. Cada sábado podíamos ir comer gratuitamente tortas de chocolate com nata na confeitaria Fahlman. Não raro éramos convidados por pessoas da burguesia, o que nos possibilitava saciar a fome. Uma mercearia que também fazia comida possibilitava-nos comer diariamente um saboroso almoço por uma coroa. (…) Em Helsingborg recebíamos convites de casas senhoriais, retribuindo com canto, recitais, e representações de cenas dramáticas. Tudo isso fazia com que nos sentíssemos envolvidos na vida citadina. A hospitalidade e gosto pela convivência eram enormes.

Malmö era um outro tipo de cidade. Ali nos destinavam mesas bem situadas no Hotel Kramer, e as pessoas, em geral, mostravam um genuíno interesse pelo que fazíamos, mas a verdade é que não saíamos de nosso círculo profissional. O crédito concedido pelos restaurantes era mínimo, para não dizer inexistente.

O público para o qual representávamos, mas com que não mantínhamos relações sociais, é simbolizado em O Rosto pela família do cônsul Egerman. Esse cônsul é um entusiasta amável e tonto, mantém sempre distâncias, impõe normas, e se aterroriza, evidentemente, ao descobrir que sua esposa anda metida com a ralé que são os atores.

A experiência me diz que nessa profissão teatral somos atrativos desde que usemos nossas máscaras. As pessoas gostam de nós à luz de nossas atuações e espetáculos. Mas se nos apresentamos sem máscaras, e, o que é muito pior, se pedimos dinheiro emprestado, então passamos a ser menos do que nada. Eu costumo dizer que só somos cem por cento gente quando estamos no palco. Assim que o deixamos, ficamos reduzidos a menos de trinta e cinco por cento, embora continuemos a pensar e a querer nos convencer uns aos outros de que ainda somos cem por cento seres humanos. Esse é o erro fundamental que cometemos. Somos vítimas da própria ilusão. As paixões atingem-nos, casamos-nos uns com os outros, esquecendo que nosso ponto de partida é o exercício de nossa profissão e não aquilo que somos fora, na rua, depois de o pano ter descido.

Se bem me recordo, o delegado da polícia em O Rosto é um alvo muito consciente de minha parte. Ele representa meus críticos. Muito brandamente, escarneço de todos aqueles que tentam me enquadrar, querendo dar-me lições. Porque a crítica da época tinha como tarefa recomendar-me que fizesse assim e não assado. Confesso que senti prazer em poder dar-lhes publicamente umas palmadas.

O retrato do funcionário dos Serviços de Saúde era uma alusão evidente.

Mas durante os anos em que filmei não criei muitas figuras difamatórias. O casal conflituoso Stig Ahlgren-Birgit Tengroth, de Morangos Silvestres, foi uma exceção infeliz de que hoje me arrependo. O funcionário dos Serviços de Saúde do filme O Rosto, uma outra, ainda que mais engraçada. Essa personagem foi criada a partir de uma necessidade imperiosa de me vingar de Harry Schein.

“Schein era um crítico de cinema da Revista Literária Bonnier, a qual, naquele tempo, era uma revista cultural importantíssima. Era um homem inteligente e arrogante, e o que dizia tinha ressonância nos círculos mais poderosos. Em minha opinião ele me tratava de um modo altamente humilhante, aspecto este que ele, mais tarde, negou.

Além disso, Schein estava casado com a atriz Ingrid Thulin e em várias ocasiões ele disse que a esposa devia abandonar o cinema e o teatro. Em vez de fazer filmes e teatro, ele a encorajava a dedicar-se ao artesanato.

Até que descobri uma maneira sofisticada de desnortear Harry Schein. Sabia que o maior desejo de Ingrid Thulin era justamente continuar sua carreira de atriz, e então a convenci a ir trabalhar para nosso Teatro Municipal de Malmö. Queria assim provar que Schein estava errado, e este homem é uma pessoa que nunca gostou de errar.

Para poder se encontrar com sua mulher, Schein começou a ter de viajar entre Estocolmo e Malmö.

Depois foi natural que eu e Bibi começássemos, pouco a pouco, a nos dar com Ingrid e Harry. Confesso que de minha parte esta atitude não foi totalmente honesta. É que eu mostrava a Schein muito mais amizade do que sentia. No íntimo estava certo de que entre seu tipo de pessoa e o meu existia um abismo intransponível. Sentia que ele me queria prejudicar, e que no fundo daquela afabilidade, quase chinesa, que tínhamos um para com o outro havia uma animosidade difícil de definir. Devo sublinhar que hoje tudo isso passou. Harry é agora um dos meus melhores amigos.

Mas naquela época foi muito a propósito criar a personagem do delegado de saúde Vergérus à semelhança de Harry Schein.

Entre outras coisas, Vergérus diz isto a Manda Vogler: – Vou revelar a você um segredo. Durante toda esta soirée tive uma luta comigo mesmo devido à simpatia inexplicável que sinto pela senhora e por seu marido, o ilusionista. Assim que entraram na sala, gostei logo de você: seu rosto, seu silêncio, sua dignidade tão natural. Isto é muito lamentável, e eu não lhe estaria contando se não estivesse um pouco bêbado como estou.

Então Manda diz: – Se é assim que sente, deve deixar-nos em paz. Ao que Vergérus responde: – Mas não posso. Manda pergunta: Por quê? Vergérus: – Porque vocês representam aquilo que eu mais odeio. O inexplicável.

Contudo, o tema central desse filme, de sua trama, é o personagem andrógino Aman/Manda. É em torno de sua misteriosa pessoa que tudo se desenrola.

Ele representa a fé do homem no Sagrado. Vogler, ao contrário, já não consegue senti-la. Ele faz teatro barato e ela sabe que é assim.

Manda é muito sincera em suas conversas com Vergérus. Ela viveu um milagre, uma vez, e trá-lo dentro de si. E ama Vogler, embora saiba muito bem que ele perdeu a fé.

Se Vogler é o homem que, com um cansaço extremo, executa ainda aquelas artes desprovidas de todo o sentido, Tubal é o explorador. Ele é o Bergman que tenta convencer o diretor Dymling, da Svensk Filmindustri, do valor do seu último filme.

Perante o ceticismo total da direção da companhia, eu, evidentemente, descrevera o tema de O Rosto como sendo uma infernal comédia erótica.

Acrescente-se que, para vergonha da própria diretoria da companhia, eles não podiam continuar afirmando que eu não tinha sucesso, o que tinham feito tanto quanto lhes foi possível. A entrada do diretor do setor econômico no escritório da diretoria, no início de cada nova produção, trazendo consigo os livros de contas para me mostrar os prejuízos sérios meus últimos filmes haviam causado à empresa, era um ritual já conhecido.

Agora, porém, havia Sorrisos de uma Noite de Amor, filme com o qual todo o mundo se pusera desesperado. Esse filme e também Morangos Silvestres foram sucessos inesperados, colossais, tanto na Suécia como em outros países. Os filmes de Bergman tinham começado a vender no exterior, e isso era uma situação tão nova para a companhia produtora que, no princípio, ela se comportou como uma velha solteirona que subitamente se vê convidada para dançar pelos mais exóticos pretendentes. É que a empresa não tinha nenhuma experiência de vendas para o exterior. Existia, é certo, um pequeno departamento de exportação, mas duvido que quem trabalhava ali falasse algum idioma estrangeiro. A confusão foi, pois, total, tendo como resultado amiúde que meus filmes fossem parar em mãos de ladrões. Com o tempo, uma exceção foram os Estados Unidos, onde dois jovens americanos tinham constituído uma firma, cujo nome era Janusfilm. Cheios de idealismo e pobreza, eles trabalharam honesta e energicamente para lançar meus filmes.

Mas voltemos a O Rosto. Nesse filme aparece também uma velhota, a avó, personagem que a atriz Naima Wifstrand interpreta magistralmente. No filme tem duzentos anos de idade, e diz ser bruxa. Essa mulher tem o poder de fazer cair candelabros e de fazer com que copos se quebrem sozinhos. Trata-se, portanto, de uma verdadeira feiticeira, com raízes em tradições antiquíssimas, ao mesmo tempo que é a figura mais espertalhona de todo o grupo. Ela vende elixires afrodisíacos, e poupa todo o dinheiro que ganha com esse negócio, pois quer se aposentar e deixar de ser uma mulher perigosa.

O outro papel central do filme, além da personagem Aman/Manda, é o do ator Johan Spegel que morre, por assim dizer, duas vezes. Tal como acontece a Agnes em Gritos e Sussurros, sua morte sofre uma breve interrupção. Spegel está morto, sem contudo ter ainda morrido. Ele diz:

– Ainda não morri. Até já comecei a andar outra vez. No fundo, sou muito melhor como espectro do que como ser humano. Agora sou convincente, coisa que nunca fui como ator.

Spegel é quem se apercebe imediatamente do tipo de pessoa que Vogler é: “Um charlatão que necessita esconder seu verdadeiro rosto,”

Na véspera da sessão de ilusionismo, eles se encontram, à noite, pela segunda vez: “Eles se encontram atrás do biombo, onde as sombras são mais profundas, junto à cortina com os signos do zodíaco e sinais misteriosos nela estampados”. O rosto de Spegel está voltado para o escuro nessa cena. Ele diz.

– Em toda minha vida rezei só uma vez, implorando: me use, faça o que quiser de mim. Mas Deus nunca compreendeu que escravo tão forte e dedicado tinha em mim. Por isso minha vida foi sem utilidade. Mas isto também é mentira. Nós caminhamos, passo a passo, em direção às trevas. A única verdade existente é movimento.

É o mesmo Spegel que disse anteriormente:

– Meu desejo foi sempre ter uma faca, um gume que pusesse à vista minhas vísceras, libertasse meu cérebro, meu coração. Que me libertasse do que tenho aqui dentro, cortasse minha língua e meu sexo. Uma lâmina afiada que raspasse minha impureza. Então aquilo a que chamamos espírito se libertaria deste cadáver sem significado.

Essas palavras poderão parecer difusas, mas este é o tema central do filme. Esse modo de pensar refletia um desejo meu de conseguir uma arte pura. Supunha que um dia teria a coragem de ser incorruptível, talvez até isento de premeditações.

Era uma reação natural perante tudo o mais que aparece em O Rosto: a prostituição, por exemplo.

É que me sentia, com freqüência, envolvido numa prostituição profissional contínua, ainda que bastante divertida. Tratava-se, evidentemente, de atrair público. Não era outra coisa senão show-business de manhã à noite. Divertia-me, confesso, embora no íntimo sentisse uma outra forte ambição, que está bem expressa no personagem de Spegel.

O roteiro de O Rosto tem a data de 4 de junho de 1958. No dia 30 do mesmo mês iniciamos a filmagem. Esta se prolongou pelo verão, até 27 de agosto, quando as férias terminavam e regressávamos ao teatro.

Este filme foi realizado no seio de uma atmosfera construtiva, alegre, apesar de seus contornos sombrios. Isso foi, com certeza, graças a esses anos passados em Malmö, ao espírito de camaradagem existente entre nós, saltimbancos. Quando mais tarde, em O Rito, repeti o tema de O Rosto, a tonalidade era outra, mais amarga.”

“Esses nórdicos são uns neuróticos!”

Uau!

Às vezes acho que Ingmar Bergman é a prova de que genialidade e loucura podem estar bem mais próximas do que poderia imaginar nossa vã filosofia.

Pois então o personagem do médico Vergérus, interpretado por Gunnar Björnstrand, foi criado a partir de “uma necessidade imperiosa” de Bergman se vingar do crítico Harry Schein, no qual ele concentrou sua raiva contra a crítica que tinha como tarefa recomendar que fizesse assim e não assado!

E foi para desnortear o crítico que Bergman chamou Ingrid Thulin para o Teatro Municipal de Malmö! E em seguida a colocou no filme em que o personagem mais horroroso, mais antipático, foi criado à imagem e semelhança do próprio marido da atriz!

Como mostra uma notinha dos tradutores, a distância entre Estocolmo e Malmö é de 850 quilômetros. A Suécia é um país pequeno, se comparado ao Brasil, mas essas cidades ficam em regiões opostas, a distância é imensa. Mesmo de avião, como diz a nota, hoje a viagem leva uma hora; naqueles anos 50, levava ainda mais!

Bergman colocou uma distância que na Suécia equivale para nós àquela entre o Oiapoque e o Chuí entre Ingrid Thulin e o marido!

E depois ficou todo mundo amigo!

Fico imaginando o Obelix fazendo aquele gesto de dar soquinhos com a mão fechada na testa, enquanto fala: “Esses nórdicos são uns neuróticos!”

Bergman era extremamente fiel a seus atores. Colocava o mesmo grupo de atores em boa parte de seus filmes. Ingrid Thulin trabalhou com ele pelo menos em cinco filmes – antes deste O Rosto aqui, ela já havia estado em Morangos Silvestres e No Limiar da Vida.

Bibi Andersson fez 13 filmes com o cara com que viveu durante alguns anos. Mas o recorde é de Gunnar Björnstrand, que aqui faz exatamente o médico Vergérus, o sujeito que representa o maior desafeto do cineasta, o crítico casado com a atriz com quem ele trabalhou no teatro e em cinco filmes. Bergman dirigiu Gunnar Björnstrand em 23 filmes!

Fala, Obelix: – “Esses nórdicos são uns neuróticos!”

Anotação em abril de 2022

O Rosto/Ansiktet

De Ingmar Bergman, Suécia, 1958

Com Max von Sydow (Albert Emanuel Vogler),

Ingrid Thulin (Manda Vogler, Mr. Aman),

e Naima Wifstrand (a vovó Vogler), Åke Fridell (Tubal), Lars Ekborg (Simson, o cocheiro), Gunnar Björnstrand (Dr. Vergerus), Bibi Andersson (Sara Lindqvist, a empregada dos Egerman), Erland Josephson (cônsul Egerman), Gertrud Fridh (Ottilia Egerman), Toivo Pawlo (superintendente de polícia Starbeck), Bengt Ekerot (Johan Spegel, o ator bêbado à morte), Sif Ruud (Sofia Garp, a cozinheira), Oscar Ljung  (Antonsson, empregado dos Egerman), Ulla Sjöblom (Henrietta Starbeck, a mulher do policial), Axel Düberg (Rustan, o jovem servente), Birgitta Pettersson    (Sanna, a outra empregada)

Argumento e roteiro Ingmar Bergman

Fotografia Gunnar Fischer, Rolf Halmquist

Música Erik Nordgren

Montagem Oscar Rosander

Direção de arte P.A. Lundgren

Produção Svensk Filmindustri

P&B, 102 min (1h42)

***

Título nos EUA: The Magician. Na França: Le Visage.

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