(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 7/2022.)
Les Biches, no Brasil As Corças de 1968, foi o 15º longa-metragem de Claude Chabrol. Era uma diretor prolixo: havia estrado apenas dez anos antes, em 1958, com Nas Garras do Vìcio/Le Beau Serge. E, naqueles dez anos, entre um longa e outro, ainda encontrou tempo para fazer quatro segmentos de filmes de episódio, tipo Os Sete Pecados Capitais.
Prolixo. Ao morrer, aos 80 anos, em 2010, deixou uma filmografia com 75 títulos.
Ele próprio considerava Les Biches como um ponto de virada em sua obra: “Com os filmes a partir de Les Biches penso que finalmente acertei o caminho. Eu sabia que estava interessado em assassinato, mas o que eu não compreendia era que meu interesse não era em resolver quebra-cabeças. Eu queria estudar o comportamento humano de pessoas envolvidas em assassinato.”
Foi a partir daí, portanto, que passou a ser chamado de “o Hitchcock francês”.
Em seus Dicionário de Cinema – Os Diretores, e Dicionário de Cineastas, respectivamente, Jean Tulard e Rubens Ewald Filho situam Claude Chabrol como um dos nomes fundamentais da nouvelle vague, ao lado de François Truffaut e Jean-Luc Godard, todos eles vindos de carreira como críticos dos Cahiers du Cinéma, a revista mensal que era a bíblia dos cinéfilos mundo afora nos anos 50 e 60.
Diz Rubens Ewald no início de seu verbete: “Formou, com Truffaut e Godard, o triunvirato central da Nouvelle Vague. Como eles, foi crítico do Cahiers du Cinéma, revelando-se com um filme financiado com a herança de sua mulher. Através de sua companhia ajudou outros (e ele cita Jacques Rivette, Éric Rohmer, Philippe de Broca) a se lançarem no cinema. Estudou Farmácia, foi publicista da Fox e trabalhou ocasionalmente como ator. Passou por um período em que se viu obrigado a fazer filmes comerciais para se sustentar e retornou ao prestígio com As Corças em 1968. A boa fase, que foi laudada por críticos americanos e ingleses como um Balzac, durou até 1972, com Dez Dias Fantásticos. A partir daí caiu em produções medianas (mas nunca abaixo da crítica), sempre em seu estilo de pintura de costumes.”
Jean Tulard destaca que a obra de Chabrol põe “em evidência todos os aspectos da sociedade de consumo”, e toca naquilo que, na minha modesta opinião, é o cerne do cinema do realizador: “seu ódio pela burguesia”.
Volto a esse ponto mais tarde, mas, especificamente sobre este As Corças, é interessante a observação de Rubens Ewald, de que o filme trouxe de volta ao realizador o prestígio da crítica. Les Biches foi amado pelos críticos, mas não pelo público. Foi um fracasso de bilheteria – apesar de falar de um tema de impacto, polêmico, até então pouquíssimo abordado pelo cinema, o lesbianismo.
Les Biches, como dizem tanto o IMDb quanto a Wikipedia em francês, é um jogo de palavras com les biches, as corças, e a gíria francesa lesbiche, do alemão lesbisch, lésbica.
Uma ricaça seduz uma garota pobre
Diferentemente do que faço sempre, não vou fazer eu mesmo um relato da base da trama do filme. Vou usar as sinopses existentes na Wikipedia, juntando as informações das versões em inglês e francês, que se complementam com perfeição. Assim garanto minha isenção – posso lavar as mãos, como Pôncio Pilatos.
“Frédérique, riche bourgeoise parisienne oisive et insouciante…” Eta língua bonita do cão, meu Deus.
Frédérique (o papel de Stéphane Audran), burguesa parisiense rica, ociosa e despreocupada, repara um dia em uma jovem artista de rua, sem um tostão, Why (Jacqueline Sassard), que desenha corças com giz colorido na Pont des Arts, sobre o Sena, pertinho da Île de la Cité. Frédérique a seduz, e em seguida a leva para sua villa imensa, belíssima, em St. Tropez, na Côte d’Azur. Na villa convivem com a dona da propriedade dois amigos dela, ambos gays, Robegue e Riasis (interpretados respectivamente por Henri Attal e Dominique Zardi).
As duas mulheres vivem momentos agradáveis juntas – até que aparece, numa festa dada pela própria Frédérique em sua villa, um charmoso arquiteto, Paul Thomas (Jean-Louis Trintignant). Naquela mesma noite, Why e Paul dormem juntos na casa dele.
Frédérique, num acesso de ciúme incontrolável, decide então seduzir Paul. Começam a ter um caso. Ela o convida para vir morar na villa – eventualmente, Robegue e Riasis serão expulsos dali.
Ficam os três ali – agora sou eu mesmo relatando, depois de ter, neutramente, reproduzido o que a enciclopédia colaborativa diz. Pois é: ficam os três ali, juntos. A milionária ociosa que havia seduzido a artista de rua pobretona, a jovem artista de rua pobretona que passara a ser teúda e manteúda da ricaça e se apaixonara pelo cara que a havia comido uma vez e agora come a outra.
Vivem ali juntos, os três, remoendo o seu tédio, a sua infelicidade. Até que venha a acontecer algum assassinato – porque, diacho, o sujeito que inventou essa história pra boi dormir e dirigiu o filme disse que foi com ele que passou a fazer o que queria fazer – “Eu queria estudar o comportamento humano de pessoas envolvidas em assassinato”.
Uma atriz de beleza fascinante
Há algumas informações acerca de Les Biches que são bem mais interessantes do que o próprio filme. Jean-Louis Trintignant havia sido casado com Stéphane Audran, entre 1954 e 1961. À época das filmagens, Stéphane já estava casada com Claude Chabrol – os dois viveram juntos entre 1964 e 1982, e fizeram juntos nada menos de 24 filmes.
Em demonstração de que não era doido, Trintignant comentaria depois que se sentiu um tanto embaraçado ao fazer as cenas de amor com sua ex-mulher diante dos olhos e da câmara do novo marido dela.
Enquanto via o filme, e diante da beleza fascinante dessa moça Jacqueline Sassard, fiquei me perguntando por que diabos ela não se tornou uma das atrizes francesas mais famosas, por que não teve dezenas de papéis em filmes de grandes diretores. A resposta a essa minha dúvida é bem simples.
Jacqueline Sassard nasceu em 1940, em Nice – bem perto, por coincidência, de St. Tropez, onde se passa este filme aqui, e onde ele foi filmado. Estreou no cinema com apenas 17 anos, em Guendalina, um filme do italiano Alberto Lattuada, com roteiro de Valerio Zurlini – com quem a moça estava, nas palavras de Rubens Ewald Filho em seu Dicionário de Cineastas, “envolvido emocionalmente”. Aos 19 anos, em 1959, Jacqueline trabalhou sob a direção do namorado em outro filme italiano, Verão Violento. Por uma outra dessas coincidências de que é feita a vida, em Verão Violento trabalhava outro ator francês que precisou, como ela, ser dublado por um profissional italiano – exatamente Jean-Louis Trintignant, que ela reencontraria quase dez anos mais tarde nesse Les Biches.
Jacqueline fez apenas um único filme depois de passear sua beleza estonteante por este Les Biches – O Ladrão de Crimes, de 1969, dirigido por, haja coincidência, Nadine Trintignant, que foi casada com Jean-Louis durante 35 anos. (Nadine e Jean-Louis tiveram três filhos, um homem e duas mulheres, uma dela Marie Trintignant, a bela jovem atriz que morreu em 2003, aos 41 anos, depois de ter sido brutalmente espancada pelo namorado enciumado.)
Esse O Ladrão de Crimes, seu último filme, foi o 19º de sua carreira – que foi encerrada porque ela resolveu deixar de lado esse negócio de cinema e virar esposa: casou-se com o milionário italiano Gianni Lancia, dos automóveis Lancia, e viveu feliz na Suíça – se não para sempre, ao menos até os 81 anos.
Simples assim. O cinema perdeu Jacqueline Sassard como perdeu Grace Kelly.
“Langoroso exercício de erotismo classudo”
Elegante, Roger Ebert escreveu o seguinte:
“Les Biches de Claude Chabrol depende quase inteiramente do estilo, e como estilo ele é um sucesso. Ele não está tão interessado em sua história, mas sim em como contá-la. Ele dá preferência a cores suaves, em geral pastel, e muitas de suas cenas são filmadas à luz do final da tarde. Seus personagens se adequam a essas cores e atmosferas; às vezes eles parecem em transe, movendo-se lentamente, falando distraidamente. E seus movimentos de câmara são cuidadosamente planejados. Percebemos cenas em que a câmara e os atores se movimentam juntos numa espécie de minueto. Três ou quatro tomadas, usando degraus que não vemos ou espelhos com os quais não contávamos, têm a graça de uma dança.”
E, sempre elegante, Ebert conclui:
“Não é o tipo de filme de que muitos espectadores gostam. Mas, de sua maneira altamente educada, ele vai contra os truques de câmara chamativos e ginásticas da moda dos diretores dos anos 1960, e sonda as paixões psicológicas subterrâneas de um romance de Henry James. E dessa maneira Les Biches torna-se uma expressão melancólica, silenciosa e altamente pessoal.”
Ebert dá 3.5 estrelas em 4 para o filme.
Leonard Maltin dá exatamente a mesma cotação: “Excelente filme sobre lésbica rica, já ficando velha, que pega uma ainda não formada waif que ganha a vida desenhando nas calçadas de Paris”.
Diacho: o que é mesmo waif?
Pauline Kael fez jogo de palavras sobre o trio sexualmente ambíguo que se reúne em Saint-Tropez em dezembro: “a mope (Jacqueline Sassard), a dope (Jean-Louis Trintignant), and a chic, slinky lesbian (Stéphane Audran)”. “Claude Chabrol dirigiu esse langoroso exercício de erotismo classudo; muito pouca coisa de coisa alguma acontece.”
Vou aos dicionários.
Um diretor que odeia seus personagens
Waif: criança ou animal abandonado. Perfeito. É isso mesmo: essa moça Why é de fato uma criança ou animal abandonado. Aliás, por que raios ela adota o apelido de Why? Vai saber…
Mope. Mope, segundo o meu Longman, é uma expressão negativa para designar alguém que se mantém sempre triste sem tentar de maneira alguma se alegrar. Não temos uma palavra para isso na Última Flor do Lácio Inculta e Bela.
Dope. Dope tem a ver droga… A ver. Sim, droga. Drogado, dopado. Bobão. Sem vida.
Slinky. Essa é fácil. Furtiva.
Temos então que o trio criado pela imaginação de monsieur Chabrol e por seu amigo Paul Gégauff (os dois assinam juntos argumento, roteiro e diálogos) é formado por uma criança abandonada, tristonha a não mais poder, tadinha dela, um sujeito que é uma droga, e uma lésbica chique e furtiva.
E é exatamente isso.
São três personagens chatos de galocha. Pessoas desinteressantes, sem cor, sem força, sem vida. Chatos, enjoados, bestas. E pior: são absolutamente artificiais, que falam e agem da maneira mais artificial possível.
Mais acima foi dito que Chabrol tem ódio dos burgueses, e é a mais perfeita verdade. Como ele só fala de burgueses em seus trocentos filmes, podemos concluir que Chabrol tem ódio de todos os seus personagens.
Ver este As Corças que eu nunca tinha visto apenas confirmou o que sempre achei desse cineasta tão incensado: Chabrol é um chato de galocha, exatamente como seus personagens.
Os filmes de Chabrol são tudo de que eu não gosto na vida.
Gosto de filmes com personagens que seus criadores amam. Gosto de filmes de realizadores que amam seus personagens – que têm simpatia por eles, mesmo quando eles erram, fazem besteira, como todos nós erramos e fazemos.
Resolvi ver este As Corças porque é um filme famosérrimo, bem falado. Juro que me sentei diante dele sem preconceito, mente aberta. Vamos ver o que vem. Afinal, o cara fez pelo menos uma obra-prima – Mulheres Diabólicas/La Cérémonie é um filme excepcional.
Com dez minutos de filme eu já estava de saco cheio.
Nunca mais perco meu tempo com Claude Chabrol. Chega. Estou velho demais pra perder tempo com besteira.
Anotação em julho de 2022
As Corças/Les Biches
De Claude Chabrol, França-Itália, 1968
Com Stéphane Audran (Frédérique),
Jacqueline Sassard (Why),
Jean-Louis Trintignant (Paul Thomas)
e Nane Germon (Violetta), Henri Attal (Robègue), Dominique Zardi (Riais), Serge Bento (o vendedor de livros)
Argumento, roteiro e diálogos Claude Chabrol & Paul Gégauff
Fotografia Jean Rabier
Música Pierre Jansen
Montagem Jacques Gaillard
Figurinos Maurice Albray
Produção André Génovès, Les Films de La Boétie, Alexandra Produzioni Cinematografiche.
Cor, 100min (1h40)
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Que texto maravilhoso, maravilhoso mesmo. E engraçado. Casa comigo?
Ah, Mulheres Diabólicas é uma obra-prima mesmo, talvez porque Chabrol gostasse, de verdade, das suas protagonistas (duas pobretonas). Vá saber…. Vi inúmeros filmes do diretor e muitos são uma bela tolice e outros só se salvam pela onipresença de sua atriz fetiche, Isabelle Huppert (Assunto de Mulheres e Madame Bovary só são toleráveis por causa dela, mas tantos outros filmes dele com ela são só uma imensa bobagem). Sabia que não iria sair coelho nenhum da cartola quando fui assistir, ontem, As Corças, mas precisava de algo não-sério e que não me exigisse muito. E assim o foi. Foi como assistir a um filme da Disney com roteiro da Márcia Tiburi….. O que me assusta é que esse filme de burgueses entediados e lésbicas que vão dormir completamente maquiadas e com cílios postiços tenha sido levado a sério pela intelligentsia da época. Ainda era muito (bem) falando nos anos 80 da minha adolescência. Mas não se pode negar que o trio de protagonistas é um deleite para os olhos, lindos, jovens e em cores pastéis. 🙄