A Religiosa / La Religieuse

Nota: ★★★½

Anotação em 2010: A Religiosa, que Jacques Rivette filmou em 1966, com base no romance escrito por Denis Diderot em 1760, fez história não por causa de suas qualidades, mas porque o governo francês da época fez a besteira de proibir sua exibição.

A censura ao filme foi determinada para atender aos apelos de autoridades da Igreja Católica e políticos de olho nos votos dos eleitores conservadores e religiosos. Apesar dela, o filme foi exibido no Festival de Cannes de 1966; um ou dois anos tarde, a proibição revogada, foi um sucesso de bilheteria – o maior da carreira do diretor Rivette. Saiu em DVD no Brasil agora, em 2010.

É um ótimo, fortíssimo filme até hoje, tantas décadas e tanta explicitude depois. Suzanne Simonin, a religiosa do título, feita freira à força, contra sua vontade, sofre dentro do convento como uma prisioneira de campo de concentração nazista ou num Gulag soviético, como uma presa torturada pela Gestapo ou pela Operação Bandeirantes.

O romance A Religiosa não é tido como um dos trabalhos mais importantes de Diderot (1713-1784), filósofo, autoridade em matemática, anatomia, crítico de arte, romancista, dramaturgo, ensaísta, autor de uma obra vastíssima e diretor do grupo que elaborou a Enciclopédia, obra gigantesca, ciclópica, um dos marcos do iluminismo francês. Como diz o narrador num texto lido no início do filme, enquanto o espectador vê gravuras mostrando a vida nos conventos franceses de meados do século XVIII, Diderot levou apenas algumas semanas para escrever A Religiosa, em 1760, aos 47 anos de idade. O livro só seria publicado em 1796, depois da morte do autor.

Diz o texto com que o narrador abre o filme, para situar o espectador no contexto da história: “No século XVIII, a vida no convento era religiosa apenas aparentemente. Por um determinado valor, algumas famílias aristocratas confinavam as filhas até o casamento. (…) Conventos eram comprados como se fossem gado ou qualquer outra mercadoria. Madres superioras eram indicadas devido ao título de nobreza. Moças de 20 anos, às vezes até menos, algumas vezes administravam grandes conventos. Em muitos deles, recepções e espetáculos se sucediam. A vida religiosa perdia o sentido no contato com esse ambiente mundano. Diderot baseou seu romance em pessoas reais. (…) Suzanne, a freira, é baseada em Margueritte Delamarre, cujo pai a confinara em um convento quando tinha três anos. Mesmo tendo apelado na Justiça contra seus votos forçados, em 1752, ela perdeu o processo e permaneceu enclausurada até a morte.”

E a câmara focaliza um documento oficial da época, relativo ao processo que Margueritte Delamarre moveu para obter a liberdade.

         Uma jovem que queria viver a vida

Suzanne Simonin, a personagem central da história criada por Diderot, é uma jovem de 20 anos, inteligente, cheia de vida, amante de música; é profundamente católica, crê em Deus, pratica tudo o que a religião prescreve – mas não quer ser freira. Quer viver a vida, sabe que não tem vocação; a mãe, uma nobre empobrecida, no entanto, forçará a moça a entrar para o convento de Longchamp. A princípio, sob os cuidados de uma madre superiora que gosta muito de Suzanne, Madre de Moni (Micheline Presle), a vida da moça será como a de uma presa. Mas, após a morte de Madre de Moni, sob a administração da nova superiora, Sainte-Christine (Francine Bergé), uma pessoa absolutamente rígida, fria como uma sargentona nazista, Suzanne passa a viver no pior inferno possível.

Suzanne é interpretada por Anna Karina, a dinamarquesa que teve uma carreira como top model e depois virou a atriz fetiche, musa e mulher de Jean-Luc Godard, com quem fez os filmes mais marcantes das carreiras de ambos, como Viver a Vida, Pierrot le Fou, Alphaville, O Pequeno Soldado, Made in USA.

Sua interpretação como a pobre, infeliz Suzanne Simonin é um brilho absoluto.

Vejo no iMDB um texto de um leitor americano que transcreve adjetivos usados por críticos dos Estados Unidos. Vale a pena transcrever: “Quando The Nun foi lançado nos EUA em 1971, o filme gerou um monte de críticas positivas. A performance de Anna Karina foi unanimemente aclamada. Judith Crist da New York Magazine a chamou de ‘inesquecível’. Archer Winsten do New York Post a descreveu como ‘soberba’. Gene Shalit classificou Anna como ‘excepcional’, enquanto Kathleen Carroll do New York Daily News se entusiasmou assim: ‘Anna Karina tem uma atuação de profundidade incomum’. De fato, a interpretação de Anna é uma das melhores de sua carreira de mais de 70 filmes.”

         Um filme de narrativa, estrutura e linguagem clássicas

Foi o segundo longa-metragem dirigido por Jacques Rivette, que havia sido – assim como Truffaut – crítico de cinema; trabalhou no Cahiers du Cinéma, e foi um dos entusiastas da nouvelle-vague. A Religiosa, no entanto, é um filme sem nenhuma, absolutamente nenhuma ousadia formal. Muito ao contrário, é um filme de narrativa, estrutura e linguagem clássicas, até mesmo acadêmicas – esse adjetivo contra o qual os cineastas da nouvelle-vague se insurgiam.

É impressionante, por exemplo, como Rivette não usa close-ups. As tomadas são em planos gerais, ou de conjunto; há poucos planos americanos, aqueles em que vemos metade do corpo das pessoas, da cintura para cima. A câmara só vai se aproximar do belo rosto de Anna Karina em algumas poucas tomadas no final.

Há uma única, pequena, sutil característica formal que distingue o filme do mais absoluto academicismo (contra o qual eu, pessoalmente, não tenho nada, muito ao contrário): em algumas cenas, em vez de música, Rivette usa alguns ruídos, como que uma percussão estranha, metálica, dura.

         A Religiosa não é nada apelativo – é sóbrio como um juiz

Embora tenha ficado famoso por ter sido censurado na França, o país das liberdades, o filme não é apelativo, sensacionalista, escandaloso, em momento algum. Muito ao contrário. É sóbrio como um juiz – como um juiz bom deve ser.

Aliás, o filme abre com uma espécie de advertência, quase um pedido de desculpas. Antes que o narrador principie a situar o espectador no contexto histórico em que a história se passa, há um letreiro – não fiquei sabendo se ele foi acrescentado após o episódio da censura, ou se já estava lá originalmente – que diz o seguinte:

“Livremente adaptado de uma obra polêmica de Diderot, este filme é uma obra de imaginação. Ele não pretente apresentar uma pintura exata das instituições religiosas, mesmo que no século XVIII. Pede-se aos espectadores que o vejam dentro dessa dupla perspectiva, histórica e romanesca, e evitem toda generalização precipitada, injusta e evidentemente indefensável.”

O Guide des Films editado por Jean Tular traz um texto perfeito, que sintetiza maravilhosamente o filme. Num primeiro parágrafo, ele conta toda a história do filme – inclusive da segunda parte, o segundo convento para onde é levada a pobre Simone Simonin, sobre o qual eu não gostaria de adiantar nada, porque entendo que seria um spoiler. Em seguida faz a apreciação crítica:

“Uma ridícula interdição ministerial está na origem do sucesso deste filme. E no entanto Jacques Rivette não procurou de forma alguma o escândalo. Realizou um belo filme, austero e depurado, no limite do jansenismo. Não se trata jamais de uma condenação da fé, mas dos excessos que se cometem em seu nome. Obra corajosa, lúcida, atemporal, que proclama a liberdade e denuncia a opressão das consciências.”

(Já havia recorrido uma vez à Wikipedia quanto ao jansenismo – que é citado vários vezes neste filme. Recorro de novo: “O jansenismo é um movimento religioso, e depois político, que se desenvolveu nos séculos XVII e XVIII, principalmente na França, em reação a certas atitudes da Igreja católica e ao absolutismo real. É uma reflexão teológica centrada sobre o problema da graça divina, antes de se transformar numa força política que se manifesta de formas variadas.” Figurativamente, diz o Larrousse, jansenismo tornou-se sinônimo de austeridade, rigor nos costumes.)

Está tudo aí; gostaria de ter o talento do sujeito que escreveu a crítica no Guide des Films, Claude Bouniq-Mercier.

O problema não é a fé. Nunca é. O problema é dos excessos que se cometem em seu nome, conforme comprovam crimes que estão aí na nossa cara o tempo todo – as atrocidades cometidas por representantes da Igreja Católica, a perseguição aos cultos afrobrasileiros pelos evangélicos, a ditadura teocrática dos aiatolás iranianos (que o governo Lula aplaude e bajula), o terrorismo em nome de Alá.

O problema não é a fé – como mostra, com brilho, este belo filme.

A Religiosa/La Religieuse, ou Suzanne Simonin, la Religieuse de Denis Diderot

De Jacques Rivette, França. 1966

Com Anna Karina (Suzanne Simonin), Liselotte Pulver (Madre de Chelles), Micheline Presle (Madre de Moni), Francine Bergé (Irmã St. Christine), Francisco Rabal (Dom Morel), Yori Bertin (Irmã St. Therese), Catherine Diamant (Irmã St. Cecile), Christiane Lenier (Madame Simonin),

Roteiro Jacques Rivette e Jean Gruault

Baseado no romance de Denis Diderot

Fotografia Alain Levent

Música Jean-Claude Eloy

Produção Rome-Paris Films

Cor, 155 min (segundo o Allmovie) ou 135 (segundo o iMDB)

***1/2

5 Comentários para “A Religiosa / La Religieuse”

  1. Vamos contrabalançar a visão amarga da vida religiosa?
    Que tal o filme Assim Deus mandou (Dialogue des Carmelites-1960) baseado na obra-prima de Georges Bernanos? Já que o filme aqui apreciado do diretor Rivette traz a chancela crítica e ferina de Diderot, o outro filme mostra bem o espírito sanguinário dos próceres da Liberté, Fraternité, Egalité em seu desejo tenebroso de apagar toda e qualquer herança do cristianismo.

  2. Caro Rodrigo,
    Tudo o que posso fazer é agradecer imensamente pelos comentários que você enviou a este site. Comentários inteligentes, que denotam cultura, profundo conhecimento de causa.
    Não pode haver feedback melhor para o autor destas despretensiosíssimas anotações pessoais a respeito de alguns filmes.
    Espero que você continue participando com suas colocações – elas serão sempre muito bem-vindas.
    Um abraço.
    Sérgio

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