Toda a ação de O Anjo Embriagado, de 1948 – apenas três anos, portanto, após a rendição do Japão ao final da Segunda Guerra Mundial –, se passa em um bairro bem pobre, quase miserável, da periferia de uma grande cidade que jamais é identificada. Pode ser Tóquio, mas também poderia ser Osaka ou qualquer outra grande cidade – não importa. Importa é a pobreza.
Dentro do bairro há um grande pântano, uma quase lagoa suja, infecta, de aspecto asqueroso, nojento. A câmara do então jovem Akira Kurosawa e de seu diretor de fotografia Takeo Itõ focaliza aquilo diversas, diversas, diversas vezes ao longo dos 98 minutos do filme.
Não poderia haver metáfora mais óbvia de miséria, sujeira, falta de esperança, falta de saída. Podridão – a física e a moral.
O Anjo Embriagado conta a história de uma amizade profundamente improvável que vai surgindo entre aquele que parece ser o único homem bom do lugar, o personagem-título, um médico tão abnegado quanto bêbado, e um chefete local da Yakuza, a máfia japonesa, um sujeito brutal que no entanto merece o respeito dos homens e exerce imensa fascinação sobre as mulheres.
Na primeira sequência do filme – longa, bem longa –, o gângster aparece de madrugada na casa do médico, onde ele tem seu consultório, com um ferimento na palma da mão. Diz que a mão tinha levado uma batida de uma porta, e na porta havia um prego.
O médico arranca da mãozona do sujeito uma bala.
E depois percebe que ele tem sintomas de tuberculose.
Os dois homens discutem, berram um com outro, se xingam. Mas o médico – um profissional competente, extremamente dedicado – toma como seu dever na vida cuidar da saúde daquele homem que parece não se importar absolutamente com ela, e, apesar da tuberculose, fuma e bebe feito um louco.
O médico, o anjo embrigado do título, se chama Sanada, e é interpretado por Takashi Shimura, um ator impressionante. O gângster, Matsunaga, é o papel de outro jovem, Toshirô Mifune.
De 1910, Akira Kurosawa estava portanto com 38 quando O Anjo Embrigado foi lançado. Toshirô Mifune, de 1920, estava com 28. A partir deste aqui, realizador e ator fariam 16 filmes juntos, vários deles obras-primas, que seriam consagradas nos grandes festivais no Ocidente e colocariam o Japão como uma importante peça do cinema mundial: Rashomon (1950), O Idiota (1951), Os Sete Samurais (1954), Anatomia do Medo (1955), Ralé (1957), Trono Manchado de Sangue (1957), Homem Mau Dorme Bem (1960), Yojimbo, o Guarda-Costas (1961), para citar só alguns.
Pela primeira vez, Kurosawa teve ampla liberdade
Oitavo filme dirigido por Kurosawa, O Anjo Embriagado foi um marco em sua carreira. Não apenas por ter iniciado a parceria com aquele que seria seu ator preferido durante as décadas seguintes, mas porque foi o primeiro em que o estúdio deu a ele maior liberdade, e ele pôde trabalhar como queria. “Enfim, o meu estilo próprio apareceu nesse filme”, ele diria.
Um documentário sobre O Anjo Embriagado, The Masterworks, que acompanha o filme no DVD lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo (e que sairia na Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema), afirma que o filme foi o resultado da colaboração entre pessoas que estavam trabalhando com o realizador pela primeira vez, e que iriam influenciar muito os seus filmes seguintes: o diretor de arte Takashi Matsuyama, o diretor musical Fumio Hayasaka e, claro, Toshiro Mifune.
Takashi Matsuyama já era um profissional respeitado, requisitado. Em 1947, o diretor de arte havia construído nos estúdios da poderosa produtora Toho praticamente todo um bairro de periferia. Era o cenário para o filme Essa Época Tola, dirigido por Kajiro Yamamoto, o mentor de Kurosawa – uma comédia que explorava o mundo do mercado negro no imediato pós-guerra.
“O estúdio achou que seria um desperdício destruir o cenário”, conta um Kurosawa já idoso numa entrevista para o documentário The Masterworks. “Eles me pediram para realizar um filme utilizando aquele set, e então eu criei Yoidore Tenshi.”
Que fantástica frase! Para os gênios, tudo é muito simples. “E então eu criei Yoidore Tenshi”!
“Nós reutilizamos boa parte do cenário, tal como ele aparece no filme de Yamamoto, como a praça do mercado negro”, conta ele.
Com um adendo, saído da cabeça de Kurosawa: cerca de um terço da área externa do set foi convertida em um brejo, um pântano, onde os moradores jogavam seu lixo.
A podridão física e moral à mostra no meio do bairro.
Os créditos iniciais rolam com a câmara do diretor de fotografia Takeo Itõ mostrando um pedaço do brejo, que ocupa todo o quadro.
Há uma sequência impressionante, ainda no início da ação, em que um grupo de crianças brinca nas águas fétidas, podres do brejo. O doutor Sanada grita para que elas saiam dali, que aquilo transmite doenças. E uma criança grita: – “Você é um bêbado!”
O único homem bom da história é um bêbado. Um anjo embriagado.
“O pesado do Japão miserável do pós-guerra”
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre L’Ange Ivre:
“Acordado no meio da noite por um jovem gângster ferido, o doutor Sanada passa a ter simpatia por ele. Matsunaga tem os pulmões comprometidos. Ele enfrenta a rivalidade de um outro gângster, Okada (o papel de Reizaburô Yamamoto).” (E aqui a sinopse revela um evento fundamental do final da história.)
“Primeiro grande filme sobre o mundo da ‘yakuza’, os gângsteres japoneses, e um testemunho da desmoralização do Japão do pós-guerra. ‘L’Ange Ivre é o primeiro filme que eu dirigi livre de todos os constrangimentos exteriores’, afirmaria Kurosawa, que acrescentaria: ‘Eu investi nele todo o meu ser’.”
Aqui, a avaliação do Le Petit Larousse des Films, um guia que me surpreende a cada vez que o consulto:
“O primeiro filme importante de Kurosawa, que descreve com uma exatidão de pesadelo o Japão miserável do pós-guerra, ele sofre certamente a influência do neo-realismo, assim como da agressividade de (Orson) Welles e o refinamento de (Joseph von) Sternberg, que, é bom lembrar, sempre foi venerado pelos japoneses. Essa parábola abertamente crística, aliada a uma brutalidade às vezes extrema (a incrível briga dentro da usina de gesso em que os protagonistas são recobertos de poeira branca de forma tão impressionante quanto de sangue), é um presságio do cinema de (Pier Paolo) Pasolini. Toshiro Mifune se revelou neste filme por uma criação animal à flor da pele, que contrasta harmoniosamente com a composição tão humana de Takashi Simura (o ator que faz o médico, o anjo embriagado).”
Uau! Isso é que é avaliação de um filme!
E ainda aprendo, passados meus 70 anos, a palavra crístico, que não conhecia (ou, se é que algum dia conheci, esqueci, o que dá no mesmo de não saber da existência). Crístico, adjetivo: “Referente a Jesus Cristo; que, segundo o cristianismo, se refere ou está relacionado com o filho de Deus, cuja crucificação representa a salvação da humanidade: ensinamentos crísticos”.
Wimwenders e aprendenders.
Não saberia dizer o que exatamente em O Anjo Embriagado denota influência de Welles e de van Sternberg, nem em que ele prenuncia Pasolini, mas me parece absolutamente clara a influência do neo-realismo italiano. Embora o cenário tenha sido construído em estúdio, o que vemos na tela são cenas ao ar livre, como se tivessem sido filmadas nas ruas – uma das características básicas do neo-realismo.
A vida dura de gente pobre, mostrada em sequências filmadas nas ruas, ao ar livre: é neo-realismo puro.
E não poderia haver nada mais coincidente do que isso: a Itália do neo-realismo, exatamente como o Japão mostrado por Kurosawa neste filme, saía derrotada da Segunda Guerra Mundial. Dois países derrotados, duramente bombardeados, destruídos, empobrecidos, após anos da louca guerra ao lado do nazismo de Adolf Hitler contra o resto do mundo.
Vi também influências do cinema noir americano. O clima pesado, duro, denso, a falta de perspectivas, de esperança, de luz no fim do túnel. O domínio dos criminosos sobre a vida das pessoas. Noir puro.
Influências, influências – um mundo fascinante
Influências, influências. Acho fascinante isso. Kurosawa nunca escondeu sua admiração por John Ford – e é fascinante notar que o mestre americano teve com um ator, John Wayne, a mesma simbiose criativa que o mestre japonês teve com Toshiro Mifune.
Kurosawa disse sobre seu colega indiano Satyajit Ray: “Não ter visto os filmes de Ray é ter vivido no mundo sem nunca ter visto a Lua e o Sol”. Satyajit Ray começou uma década depois do japonês: seu filme de estréia, A Canção da Estrada, que demonstra inegável influência do neo-realismo italiano, é de 1955, quando Kurosawa, já consagrado em todo o mundo, lançava Anatomia do Medo, aquela maravilha, e alguns dos grandes realizadores do neo-realismo já estavam abandonando as linhas mestras, básicas, do movimento.
Ao receber um Oscar honorário pelo conjunto da obra, em 1992, Ray fez uma bela, apaixonada ode ao cinema americano, que o ensinou muito do seu metiê. Os jovens franceses críticos dos Cahiers du Cinéma, que viriam a criar a nouvelle vague no finalzinho dos anos 1950, início de 1960, um movimento que também se inspirava no neo-realismo italiano, eram apaixonados pelo cinema americano dos anos 30, 40, 50, assim como Satyjiat Ray e Akira Kurosawa.
Quando Kurosawa estava velho, e tinha dificuldades para encontrar financiamento para seus filmes, correram em socorro dele os então jovens diretores & produtores americanos; Steven Spielberg foi um dos produtores de Sonhos (1990), e Martin Scorsese fez o papel de Vincent Van Gogh no filme.
Mas as pessoas que se dizem adoradoras do “cinema de arte” torcem seus narizinhos arrebitados diante dos “filmes americanos”.
Acho tudo isso de fato muito fascinante.
Quase tão fascinante quanto um filme de Akira Kurosawa.
Anotação em julho de 2021
O Anjo Embriagado/Yoidore Tenshi
De Akira Kurosawa, Japão, 1948
Com Takashi Shimura (Sanada, o médico),
Toshirô Mifune (Matsunaga, o gângster)
e Reizaburô Yamamoto (Okada, o gângster mais velho), Michiyo Kogure (Nanae, a bela), Chieko Nakakita (Miyo, a protegidas do médico), Noriko Sengoku (Gin), Shizuko Kasagi (a cantora), Eitarô Shindô (Takahama), Masao Shimizu (Oyabun), Taiji Tonoyama (comerciante), Yoshiko Kuga (estudante), Chôko Iida (Bâya), Ko Ubukata (rapaz violento), Akira Tani (membro da Yakuza), Sachio Sakai (o violonista), Senkichi Ômura (membro da Yakuza), Tateo Kawasaki (comerciante de flores), Mayuri Mokushô (filha na loja de flores), Toshiko Kawakubo (dançarina), Haruko Toyama (dançarina), Yukie Nanbu (dançarina), Sumire Shiroki (Anego)
Argumento e roteiro Keinosuke Uekusa e Akira Kurosawa
Fotografia Takeo Itõ
Música Fumio Hayasaka
Montagem Akikazu Kôno
Direção de arte Takashi Matsuyama
Produção Sôjirô Motoki, Toho Company. DVD Versátil, Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema.
P&B, 98 min (1h38)
Disponível em DVD.
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Título nos EUA: Drunken Angel. Na França: L’Ange Ivre.
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