Festa de Formatura / The Prom

3.0 out of 5.0 stars

Alguém com má vontade, de narizinho empinado, pode argumentar que The Prom, no Brasil A Festa de Formatura, o filme de 2020 baseado em recente comédia musical da Broadway, comete o pecado da obviedade. Que faz a defesa de direitos que são absolutamente líquidos e certos, garantidos, corriqueiros. Que ataca preconceitos e intolerâncias já extintos pela civilização – tristes resquícios do tempo das cavernas, dos neanderthais.

Ou, para usar a expressão histórica de Caetano Veloso em 1968, que The Prom faz como aqueles que vão sempre enfrentar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem.

Em alguns momentos do filme, eu mesmo – é necessário reconhecer, registrar – fiquei pensando nessa coisa da obviedade.

Para o eventual leitor que não sabe nada sobre o filme, é assim: entre muitos números musicais – muitos, vários, todos gostosos, com excelente coreografia, aquela montagem rápida, alucinante, como dos clipes da MTV nos anos 80 e 90 –, e com um elenco afiado, Meryl Streep e Nicole Kidman à frente, The Prom faz uma firma defesa do direito de as pessoas assumirem sua homossexualidade e serem felizes.

Aí é que está.

Meu Deus, que coisa mais antiga!, a gente poderia pensar. Que coisa mais superada!

O quê – defender o direito de os homossexuais se assumirem? Isso é mais velho que andar pra frente!

Aí é que está.

A grande qualidade do filme – além da competência dos realizadores todos, além do talento, do bom humor – é nos mostrar que, infelizmente, essa ainda não é uma questão superada. Não é um problema da época das cavernas, do qual a humanidade, depois de mais 6 mil anos de civilização – só no mundo ocidental –, já se livrou faz séculos.

O filme não vem trazendo à baila uma luta contra o velhote inimigo que morreu ontem. Muito ao contrário: The Prom nos lembra que estes nossos são tempos em que está forte a extrema direita retrógada, reacionária, com toda sua carga de caretice, de ódio às liberdades individuais todas, de fanatismo religioso.

The Prom – fui tendo certeza disso, enquanto via o filme – foi feito como uma reação às trevas trazidas pelo governo Donald Trump. Que, obviamente, pode sair dos limites do país mais rico do mundo, e ser visto como um libelo contra a extrema direita e o reacionarismo planeta afora, de Jair Bolsonaro a Viktor Orbán, Mateusz Morawiecki, Matteo Salvini.

Como questiona um dos personagens quando o filme já vai ali pela metade de seus muitos 130 minutos:

– ”Como podemos livrar esta comunidade – e este país – do câncer da intolerância?”

Xi… Esse texto, até aqui, pode indicar que o filme é papo-cabeça, uma discussão séria sem fim.

Não, não, de forma alguma, nada disso: é uma comédia musical. Uma gostosa, divertida comédia musical.

Que, a rigor, a rigor, como tantas outras comédias musicais de Hollywood, baseadas em peças da Broadway ou não, tem uma trama que não é assim propriamente um grande brilho. É uma traminha, se for para pensar bem, bastante bobinha.

Mas, diacho, comédia musical muitas vezes, talvez a maioria das vezes, é assim mesmo. E não é pra pensar demais: é pra relaxar e curtir.

Só não vão relaxar e curtir e se divertir os seres que ainda não saíram da caverna, e acreditam que amor de pessoas do mesmo sexo é pecado.

Como elefantes numa loja de louças

A trama é assim:

Uma dupla de atores famosos, Dee Dee Allen (Meryl Streep) e Barry Glickman (James Corden), estréia uma nova produção na Broadway, um musical sobre Eleonor Roosevelt, a primeira-dama americana dos anos 30 e 40 – mas a recepção é a pior possível. Os jornais metem o pau sem dó nem piedade, a temporada é cancelada logo após a estréia.

Enquanto bebem para afogar a mágoa, os dois são acompanhados por Angie Dickinson (o papel de Nicole Kidman) e Trent Oliver (Andrew Rannells), dois atores que também não estão nada bem. Angie é, faz anos, chorus girl do musical Chicago (aquele que virou filme em 2002, dirigido por Rob Marshall, com Renée Zellweger, Catherine Zeta-Jones e Richard Gere), e sempre tem negado seu pedido para interpretar Roxie Hart, a protagonista. Trent é formado na Julliard, a mais famosa e respeitada faculdade de música e artes dos Estados Unidos, mas, sem oportunidade como ator, trabalha como barman.

Ficam ali os quatro pensando numa forma de (re)conquistar as graças dos críticos e do público. Uma boa idéia – um deles sugere – é defender uma causa simpática, politicamente correta, o que é garantia de visibilidade na mídia, nas redes sociais. E então Angie vê no celular a informação que todo mundo está comentando: um caso de intolerância contra uma garota homossexual numa cidadezinha do interior de Indiana – e o filme deixa bem claro que cidadezinha do interior de Indiana é o fiofó do mundo.

Resolvem ir os quatro, mais o agente de Dee Dee e Barry, Sheldon (Kevin Chamberlin), para o fiofó do mundo, para fazer a defesa da moça.

A moça se chama Emma Nolan, e está para se formar na high school da cidade. Emma pretendia ir à festa de formatura acompanhada de sua namorada (cuja identidade é mantida em segredo até quando o filme está ali com mais de 30 minutos). A Associação de Pais e Mestres, no entanto, chefiada por uma tal Mrs. Greene (Kerry Washington), uma carola retrógada a não mais poder, decide que não pode admitir tal “absurdo”. E, como Emma não pode ir à festa de formatura, a APM decide, por unanimidade, que não haverá festa de formatura.

Emma é o papel de uma jovem atriz bonitinha, graciosa, simpática, Jo Ellen Pellman (à esquerda na foto abaixo, com Ariana DeBose, que interpreta Alyssa.)

O diretor da escola, Tom Hawkins (o papel de Keegan-Michael Key), não é um ser da idade da pedra, e discorda, é claro, da decisão da Associação de Pais e Mestres. Diz que levará o caso à Justiça, se for necessário.

O caso vira notícia nacional.

A APM está de novo discutindo o assunto com o diretor quando a trupe de artistas de teatro de Nova York chega.

Uma trupe de artistas de teatro de Nova York numa cidadezinha conservadora do interiorzão de Indiana, obviamente, é algo tão bem-vindo quanto um grupo de elefantes numa loja de porcelana.

Seguem-se as mais deliciosas e divertidas confusões – e muitos números musicais, com coreografia esplêndida e um show de boas atuações de todo o elenco, as maravilhosas Meryl e Nicole à frente.

Boas piadas, boas canções – e uma homenagem a Fosse

Hum… Meio bobinha a trama? Meio forçação de barra? Pode ser – mas é tudo absolutamente gostoso.

E, entre uma piada e um número musical, o filme vai dando belas cutucadas na hipocrisia absurda que é usar a religião cristã como desculpa ou explicação para a intolerância, a ignorância, a não aceitação da homossexualidade e dos homossexuais.

Há uma sequência que é para aplaudir de pé como na ópera, quando Trent Oliver enfrenta as duas garotas mais bonitinhas, gostosinhas da turma de formandos e seus namorados – a linha de frente da intolerância contra a garota Emma Nolan. É um belo número musical, no meio do grande e belo shopping center da cidade, em que o ator lembra a velha e boa lição básica do cristianismo, o “amar ao próximo”. A canção “Love thy neighbor”, ama teu vizinho, é uma das melhores das mais de dez músicas compostas para o musical. (As garotos gostosinhas e idiotas são interpretadas por Logan Riley e Sofia Deler).

Outra boa canção é “Zazz”, que Nicole Kidman canta com Jo Ellen Pellman, na sequência em que Angie tenta mostrar a Emma que ela pode seguir os conselhos de Bob Fosse e procurar encontrar o seu próprio “jazz” – o seu jeito de ficar à vontade e encarar as adversidades. Angie começa cantando para Emma, até que as duas passam a cantar juntas – e, em sequência que imita uma de All That Jazz, as duas dançam numa escada.

Como já foi dito, Angie trabalha na chorus line do musical Chicago. E a canção, as referências a All That Jazz, são uma bela homenagem dos realizadores ao genial dançarino, coreógrafo e diretor Bob Fosse – o autor, junto com o letrista e compositor Fred Ebb, do musical Chicago, e diretor de Charity, Meu Amor (1969), Cabaré (1972), Lenny (1974), All That Jazz (1979) e Star 80 (1983).

O filme dividiu as opiniões de crítica e público

As canções do musical – todas elas cantadas pelos próprios atores – são de Chad Beguelin & Matthew Sklar, também os autores, juntamente com Bob Martin, do musical. (Os créditos especificam que eles se basearam num conceito de Jack Viertel.)

Bob Martin e Chad Beguelin assinam também o roteiro do filme.

 A peça estreou oficialmente na Broadway em novembro de 2018 e ficou em cartaz até agosto de 2019. Nenhum dos principais atores do elenco do teatro está no filme.

Eu não conhecia o diretor do filme, Ryan Murphy, o que – tudo indica – é uma grande falha minha. Ryan Murphy, natural do Estado de Indiana (nasceu em Indianapolis, em 1965), é produtor, roteirista e diretor. Tem 30 títulos como roteirista, 21 como diretor, e já venceu 31 prêmios, inclusive seis Primetime Emmys, fora outras 72 indicações. É um dos criadores e roteiristas da série Glee: Em Busca da Fama, que teve 121 episódios em 6 temporadas.

É necessário registrar que este The Prom é daqueles filmes que dividem as opiniões tanto da crítica quanto do público. O Rotten Tomatoes, o site que contabiliza as opiniões positivas e negativas, mostra que o filme dividiu os críticos quase ao meio: 60% deles gostaram do filme, enquanto 40% não gostaram. A aprovação do público foi maior – 73%, segundo o site.

No IMDb, os leitores estão bem divididos – há muita gente desancando o filme, metendo o pau, mas também há muita gente que gostou.

Fiquei impressionado com a fúria de um sujeito chamado Matt Zoller Seitz, que escreve no site que prossegue o legado do grande Roger Ebert: “The Prom, da Netflix, é rotulado com uma comédia musical porque as pessoas cantam nele, enquanto fazem caras engraçadas, mas, além disso, os níveis cômicos e musicais são tema de debate”, ele define, logo de cara, para, ao final, afirmara que não há nada no filme que você não viu num musical do canal Disney feito 20 anos atrás. Canal Disney este no qual “The Prom se sentiria bem à vontade, verdade seja dita”.

Roger Ebert, o crítico que amava filmes e amava ver filmes, demitiria um sujeito que escreve frases assim, creio eu.

São necessários filmes como este The Prom. Hoje mais que nunca, com essa onda de extrema direita retrógada, careta, idiota, imbecilizante ameaçando o mundo, tentando destruir as conquistas civilizatórias que a humanidade levou tanto tempo para obter.

Anotação em dezembro de 2020

A Festa de Formatura/The Prom

De Ryan Murphy, EUA, 2020

Com Meryl Streep (Dee Dee Allen),

James Corden (Barry Glickman),

Nicole Kidman (Angie Dickinson),

Andrew Rannells (Trent Oliver), Kerry Washington (Mrs. Greene, a presidente da APM), Keegan-Michael Key (Tom Hawkins, o diretor da escola), Jo Ellen Pellman (Emma Nolan), Ariana DeBose (Alyssa Greene), Tracey Ullman (Vera, a mãe de Barry), Kevin Chamberlin (Sheldon, o agente da trupe), Mary Kay Place (Grandma Bea, a avó de Emma), Logan Riley    (Kaylee, a gostosinha), Sofia Deler    (Shelby, a outra gostosinha), Nico Greetham (Nick), Nathaniel J. Potvin (Kevin)

Roteiro Bob Martin e Chad Beguelin

Baseado na peça musical de Chad Beguelin & Bob Martin & Matthew Sklar

Por sua vez baseada numa idéia de Jack Viertel

Fotografia Matthew Libatique

Música David Klotz e Matthew Sklar

Canções por Chad Beguelin & Matthew Sklar

Montagem Peggy Tachdjian, Danielle Wang

Casting Alexa L. Fogel  

Produção Dramatic Forces, Storykey, Netflixm Ryan Murphy Productions.

Cor, 130 min (2h10)

Disponível na Netflix em dezembro de 2020.  

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