Os três episódios da série Criminal: Espanha são inquietantes, perturbadores. Não sei se a intenção geral do conjunto de séries Criminal – além da espanhola, há as feitas na Alemanha, na França e no Reino Unido – é exatamente essa, mas, para mim, foi o que marcou.
Não é daquele tipo de coisa que reassegura o que você já pensa, que deixa você confortável por ter visto algo que confirma as suas opiniões. Muito ao contrário: Criminal perturba as certezas do espectador. Coloca em xeque. Exibe um outro lado, uma outra forma de ver as coisas. Faz o espectador pensar.
No mínimo, abre uma discussão.
É algo extremamente necessário – em especial nestes tempos que estamos vivendo, de polarização absoluta, de tomadas de posição em campos opostos, em que sobra muito pouco espaço, ou nenhum, para o diálogo, o abrir-se a um outro tipo de visão, o dispor-se ao raciocínio, o aceitar que seu ponto de vista pode não ser o melhor – e seguramente não é o único.
Pode estar parecendo etéreo demais, cabeção demais. Vou tentar baixar a bola para o campo em que os criadores das quatro séries Criminal a colocam para rolar: fala-se, aqui, da atuação da polícia diante de suspeitos de crimes.
Fala-se, portanto, de direitos humanos. De o que a Lei permite, o que a lei proíbe. De limites legais. Das fronteiras entre o que os policiais podem fazer, para investigar um crime, e o que não podem fazer.
As centrais de polícia são idênticas nos vários países
Cada série de cada um daqueles países é composta de três episódios, e os episódios têm cerca de 45 minutos de duração. São portanto, séries curtas, de duas horas de duração, pouco mais que a duração padrão dos filmes comerciais, que é aí entre 90 e 110 minutos.
Cada série mostra um grupo de policiais interrogando suspeitos – um suspeito em cada um dos episódios.
No total, seriam, portanto, 12 episódios, 12 suspeitos – três em cada um dos países. Seriam – porque os ingleses já partiram para uma segunda temporada e fizeram quatro novos episódios até aqui, outubro de 2020. Não sei se há planos de alemães, franceses e espanhóis criarem suas novas temporadas.
A idéia básica partiu dos jovens produtores e roteiristas ingleses Jim Field Smith e George Kay, donos de uma produtora independente, Idiot Lamp, e foi comprada pela Netflix. Equipes de roteiristas, diretores, atores e técnicos de cada um dos demais países criaram e executaram suas próprias séries, sob a supervisão geral de Smith e Kay. O que é absolutamente extraordinário, fascinante, pelo que já vi até agora (os três episódios espanhóis e os três alemães), é como há uma unidade formal em todo o projeto – e, ao mesmo tempo, como cada série reflete nitidamente muitas das características específicas de seu país.
Toda a ação se passa dentro de uma central de polícia. Basicamente na sala de interrogatório e na sala ao lado, em que ficam policiais que observam o interrogatório mas não são vistos pelo suspeito – aquele esquema de duas salas contíguas separadas por uma grande janela que de um lado é vidro, simplesmente, e do outro lado é espelho.
Os policiais da sala ao lado observam cada movimento do suspeito, que está sendo filmado quase todo o tempo. Já na sala de interrogatório, em que há apenas uma grande mesa e cadeiras, o que se vê é apenas um grande espelho.
Há também um corredor e um hall com máquinas com refrigerantes e salgadinhos e doces.
E nesse ponto os realizadores optaram por algo surpreendente: todo o conjunto de salas, corredor e hall, todo o espaço físico da central de polícia de Madri é exatamente idêntico ao de Berlim. Ainda não vimos as séries francesa e britânica, mas dá para imaginar que o ambiente será exatamente igual. Até porque, vejo agora numa matéria na internet, todos os 12 episódios foram filmados num estúdio usado pela Netflix na região de Madri.
No aspecto físico, na parte visual, é tudo absolutamente idêntico – por mais diferentes que sejam as economias, as tradições, os costumes, as formas com que cada polícia se organiza naqueles quatro países.
Mudam os métodos de interrogatório, assim como mudam as leis penais de país para país. Muda um tanto a forma com que os policiais se relacionam entre eles, é claro. Muda muita coisa – enquanto muitas características são idênticas.
As idéias básicas, as premissas da série de séries são, como se vê, interessantíssimas, fascinantes.
A realização, até onde vi, é de grande qualidade.
Duas posturas quase opostas diante dos criminosos
A questão central, é claro, é a definição dos limites, das fronteiras entre o legal e o ilegal, o certo e o errado. Até onde podem ir os policiais ao interrogar um suspeito? O que é abuso, o que não é?
Diante dessa questão, assim como de todas as questões relacionadas a violência, criminalidade, segurança pública, há basicamente duas posturas, duas posições, duas formas de entender o mundo, extremamente distantes uma da outra, quase opostas, antípodas. Há a visão em geral associada às ideologias “de direita” – a postura de que contra o crime vale tudo, criminoso é bicho, não é gente. E há a visão em geral associada às posições doutrinárias “de esquerda” – a postura de que o respeito aos direitos humanos vale para todos, que o combate à criminalidade, à violência, tem que se dar rigorosamente dentro dos limites da lei.
Uma é a visão do olho-por-olho, dente-por-dente. A outra é a visão de que se você combater o criminoso com as mesmas armas dele você se torna igualmente criminoso.
Sempre fui, a vida inteira – graças a Deus, à minha família, à sorte de ter tido bons professores, bons amigos – do lado da defesa dos direitos humanos, da legalidade, do bem, do correto, do certo.
Creio que as pessoas do outro lado, os da Lei do Talião, que virem essas séries, em geral não vão se incomodar muito, não vão ver abaladas suas convicções. Ao contrário. Provavelmente pensarão algo do tipo: se torturasse bem torturado aquele filho da mãe resolvia mais depressa; melhor seria matar de uma vez.
As pessoas da Lei do Talião tendem, me parece, a não ter muitas dúvidas, questionamentos.
Quanto mais fanática uma visão, uma causa, uma ideologia, menos espaço há para dúvidas, questionamentos.
As coisas se complicam é do outro lado – o meu, o do meu meio, o da minha família, meus amigos, os autores, os artistas que admiro.
A investigadora deixa a lei de lado – e obtém a confissão
No primeiro dos três episódios de Criminal: Espanha, diante de uma testemunha que parece escapulir das perguntas como um peixe ensaboado, a investigadora-chefe Maria, da polícia de Madri, acaba deixando de lado os regulamentos, a lei, a correção, e falsifica uma ordem judicial.
A testemunha – que é tratada como tal, e não como suspeita – se chama Isabel (Carmen Machi, na foto acima). É uma mulher de classe média bem de vida, aí de uns 50 e tantos anos, não propriamente bela, atraente, que tinha tido um caso com um homem que desaparecera.
Isabel é uma apaixonada por cachorros. Tem uma dálmata que parece ser sua razão de viver, e pretende ir a Berlim para cruzar a cadela com um puro-sangue premiado e mais não sei das quantas. Havia perdido o passaporte. A polícia a havia chamado para uma conversa, com a promessa de que obteria de volta o passaporte.
A investigadora-chefe Maria (o papel da magnífica Emma Suárez, de Julieta, de Pedro Almodóvar, na foto abaixo) deixa a lei de lado, parte para o abuso, apresenta para Isabel uma falsa ordem judicial para matar a tal da dálmata – e Isabel confessa tudo.
Abuso policial. Tortura psicológica.
Maria, profissional veterana, mais ou menos da mesma idade da interrogada Isabel, cerca de 55 anos está tendo um caso com Rai (Álvaro Cervantes), investigador jovem, ainda no início da profissão – e portanto mais puro, mais cheio de sonhos, esperanças, do que uma policial calejada que já enfrentou todo tipo de bandido.
Num diálogo belo, impressionante, no episódio 2, Maria dirá a Rai que seria bom que eles se afastassem. Ela não faria bem a ele. Não tinha nada de bom para dar para ele.
Situações em que se exige demais do policial
No episódio 2, a interrogada se chama Carmen (Inma Cuesta, ótima atriz, na foto abaixo); é uma moça pobre, cuja irmã mais nova, de 14 anos, autista, havia se afogado na banheira da casa. Maria a interroga para saber as circunstâncias da morte da menina, para saber se ela tem culpa ou não.
A história de Carmen é barra pesada. Tem tudo a ver com pobreza, e o que muitas, muitas vezes vem junto com ela na vida das famílias – ignorância, maus tratos, brutalidade, abuso.
Ao longo de todo o episódio, Maria não faz nada fora das regras, do que mandam os regulamentos. Até porque nem seria o caso, nem haveria como ou por quê.
No episódio 3, o interrogado é um bandido daqueles bem bandidos, um malandro, safo, filho da mãe. Chama-se Carmelo El Huzaini (Eduard Fernández), filho de mãe catalã e pai árabe do Magrebe, a África Meridional. Notório, conhecidíssimo traficante de drogas, envolvido em pelo menos três casos de homicídio, mas esperto demais da conta – sempre havia se safado bem das acusações, jamais havia passado um dia sequer num presídio.
Naquele momento em que se passa a ação, havia sido preso com um quilo de cocaína de extrema pureza, perto de um local onde tinha havido um ataque terrorista com características de ação de extremistas muçulmanos. Um dos policiais que o prendera havia enchido Carmelo de porrada – o que o bandido, espertíssimo, com toda certeza iria usar para se safar mais uma vez. Violência policial, prisão ilegal, blá-blá-blá…
E aí há aquela coisa perigosa, muitas vezes fatal, porém tão comum, tão inevitável: a mistura de estações. A intersecção do mesmo fato em duas realidades.
Lá atrás, num dos casos em que Carmelo havia sido suspeito de homicídio, uma das vítimas era uma parente muito próxima, muito querida de Maria.
Tendo ali, diante dela, na sala de interrogatório, o bandido bandido mesmo, filho da mãe, esperto, safo, safado, seguramente culpado daqueles outros quatro crimes do passado – inclusive da morte da parente próxima, querida –, a investigadora-chefe Maria iria se comportar rigidamente, magnificamente, perfeitamente como mandam os regulamentos, as leis, a ordenação legal, como diz cada um dos pontos da Declaração Universal dos Direitos do Homem?
Uma série que de fato inquieta, perturba
O conjunto dos três episódios espanhóis de Criminal de fato é, como falei lá no começo, inquietante, perturbador.
É extremamente agradável ouvir, ler, ver algo que confirma o que a gente acha, pensa, sente.
Criminal: Espanha – confesso, ainda que isso me deixe bastante envergonhado – fez tremer minhas tão firmes convicções de sempre.
Deve-se exigir que um policial veterano, experiente, competente, honesto, como essa investigadora Maria, aja sempre rigidamente, perfeitamente, corretissimamente conforme mandam os regulamentos, as leis, as ordenações legais, cada um dos pontos da Declaração Universal dos Direitos do Homem? Mesmo quando isso signifique deixar escapar, deixar incólume um bandido que é bandido mesmo, facínora, assassino, filho da mãe?
A série espanhola me pareceu de fato inquietante, perturbadora. Portanto, muito boa.
Anotação em outubro de 2020
Criminal: Espanha
De Jim Field Smith e George Kay, criadores, Espanha, 2019
Direção Mariano Barroso
Com Emma Suárez (investigadora-chefe María de los Ángeles Toranzo Puig), Jorge Bosch (investigador Carlos Cerdeño Varona), Álvaro Cervantes (investigador Rai Messeguer Ortiz, o mais jovem), María Morales (investigadora Luisa), José Ángel Egido (comissário Joaquin), Daniel Chamorro (Jorge), Carmen Machi (Isabel, a interrogada do episódio 1), Inma Cuesta (Carmen, a interrogada do episódio 2), Javi Coll (o advogado de Carmen), Carlos Manuel Díaz (o pai de Carmen), Eduard Fernández (Carmelo El Huzaini, o interrogado do episódio 3), Nuria Mencía (Clara, a advogada de Carmelo)
Argumento e roteiro Jim Field Smith, George Kay, Sebastian Heeg, Alejandro Hernández, Antonin Martin-Hilbert, Manuel Martín Cuenca, Mathieu Missoffe
Fotografia Pau Mirabel
Música Robin Foster
Casting Sara Bilbtua
Produção Idiot Lamp.
Cor, cerca de 120 min (2h)
***
Disponível na Netflix em 10/2020.
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