Vida Perfeita / Vida Perfecta – A Primeira Temporada

Nota: ★★★☆

(Disponível no HBO Max em 10/2022.)

As aventuras e desventuras afetivas, amorosas, sexuais de três amigas, mulheres na faixa dos 30 e muitos anos, numa grande cidade. Digamos que a série espanhola Vida Perfeita não seja assim propriamente uma novidade… Mas é bem-humorada, gostosa, divertida, deliciosamente safadinha, ousada – e, no que de fato importa, os valores morais, absolutamente correta.

Além, é claro, de ser artesanalmente muito bem feita, nos quesitos técnicos todos, de fotografia, direção de arte…

Para mim, e seguramente para muita gente, Vida Perfeita é a revelação de um grande talento, esta Letícia Dolera que tem um rostinho, um jeito de garota de pouco mais de 20 anos, e se mostra uma ótima atriz, uma diretora segura, firme, e, sobretudo, uma autora inteligente, arguta, sensível, fascinante.

Se dominarem a arte da autocrítica, os criadores de Sex and the City devem ter ficado com inveja dessa garota Leticia Dora.

O mesmo dá para dizer de Julie Delpy, essa moça tão simpática e bonita quanto talentosa. Dois anos depois de a espanhola Letícia Dolera fazer o seu Vida Perfecta, Julie Delpy lançou, em 2021, On the Verge, no Brasil À Beira do Caos, uma série sobre as aventuras e desventuras afetivas, amorosas, sexuais de três amigas, mulheres aí na faixa dos 40 e tantos anos, numa grande cidade, no caso Los Angeles – algo assim mais ou menos uma versão Costa Oeste da nova-iorquina Sex and the City.

On the Verge é uma criação de Julie Delpy, com direção dela em cinco episódios e, nos papéis principais, ela mesma, Sarah Jones e a sempre fascinante Elizabeth Shue. É uma boa série, sem dúvida; mas a de Letícia Dolera é muito melhor.

María é abandonada quase ao pé do altar

A abertura é uma absoluta delícia: um jovem casal, prestes a se casar, está em um escritório de uma imobiliária, fechando a compra do imóvel em que vão morar; à mesa de reunião estão também o vendedor do imóvel e a corretora. Esta lê o texto do contrato.

Ao final da leitura do documento, a moça, Maria (o papel da autora e diretora Letícia Dolera) e o noivo, Gustavo (David Verdaguer), começam a conversar. Em meio minuto estão metidos numa D.R. – estão discutindo a relação diante do vendedor do imóvel e da corretora. A D.R. inclui a menção ao fato de ela ter sugerido fazer uma lavagem intestinal quando ele propôs sexo anal.

Gustavo acusa María de ser a pessoa mais careta, mais quadrada do universo, levanta-se e sai – da sala e da relação. A qual, veremos depois, era bem longa, vinha de mais de 15 anos, desde quando eram ainda colegas de escola.

Abandonada não exatamente ao pé do altar, mas pouco antes disso, María, é claro, entra em parafuso. Vai chorar as mágoas com Esther, a irmã.

A atriz que faz Esther, Aixa Villagrán, está maravilhosa no papel, e rouba todas as cenas em que aparece. Esther é lésbica, e daquele tipo que quer namorar todas as mulheres do mundo. Pintora, dona de um estilo nada, nada convencional, é a encarnação do anti-convencionalismo. Aixa Villagrán é uma mulher grande, alta, imensos olhos claros, um cabelo curto mas impressionante. Fiquei pensando, ao longo da série, em como é possível que Pedro Almodóvar ainda não tenha chamado essa atriz para trabalhar em um de seus filmes – ela seria perfeita em um Almodóvar. Assim como a personagem que interpreta, essa louca, confusa, fascinante Esther.

O fantástico rompimento do noivado de María e Gustavo acontece pouco antes da festa de aniversário da garotinha Paula (Cocó Salvador), filha de Cris (Celia Freijeiro, uma atriz lindíssima), a maior amiga de María. E então Esther convence a irmã angustiada a experimentar, pela primeira vez na vida, uma droga – uma que, segundo Esther, vai deixar María doidinha para transar.

E lá vão as duas irmãs, muito doidonas, para a festa da filha de Cris. Lá pelas tantas, depois que a imensa maioria dos convidados já havia ido para casa, acontece que María se vê, num gigantesco pula-pula alugado para o evento, diante de um rapaz. Ela avança sobre ele, e cráu. (Na foto, Leticia Dolera, que faz María.)

Um casamento que não vai bem, uma gravidez…

A série vai acompanhar o dia-a-dia dessas três mulheres. María, Esther e Cris.

O casamento de Cris com Pablo (Font García) não vai bem. Os dois trabalham demais – ele é publicitário, ela é advogada; o trabalho de casa, os cuidados com Paula e Martina, a caçulinha de 18 meses, ficam todos com ela. Não está rolando sexo – e Cris nem precisa da droga de Esther para ficar a fim de trepar.

Lá pelas tantas, vai entrar num desses sites de relacionamento.

Algumas semanas depois da festa de aniversário de Paula, María começa a ter enjôos frequentes. Há até uma sequência de gosto bem duvidoso, em que María, uma dentista, passa mal enquanto atende um cliente.

Óbvio: estava grávida daquela trepada no pula-pula.

O rapaz – o espectador fica sabendo bem antes de María –, Gari (Enric Auquer, fantástico no papel), um jardineiro que trabalha no condomínio de Cris, tem um retardamento mental. Não sei qual é o termo politicamente para isso nos dias de hoje – creio que pessoa de necessidades especiais é uma forma aceita. Em espanhol se usa uma expressão nada ofensiva – persona con descapacidad.

O espectador já havia ficado sabendo que María queria muito ter um filho. Uma de suas grandes tristezas com a separação de Gustavo era ter perdido o parceiro que lhe daria um filho. Preocupava-se com o avanço da idade – estava já depois dos 35 anos, preocupada com a diminuição do número de óvulos.

Passa a enfrentar a questão de ter ou não o filho de um homem com descapacidad. Vai fazer mil exames – e vai atrás de Gari, para informá-lo sobre a gravidez, conhecê-lo, saber mais sobre sua incapacidade, se é genética, qual é o grau. (Na foto, Celia Freijeiro, que faz Cris.)

Uma diretora e autora corajosa, ousada

Essa moça Letícia Dolera é corajosa, ousada. Mexer com incapacidade mental numa comédia não é nada, mas nada, mas nada fácil. Muitíssimo antes ao contrário. O perigo de se cair no estereótipo, no agressivo, no ofensivo, já seria gigantesco uns 50 anos atrás – o que dirá hoje, nestes tempos do politicamente correto, do não pode usar tal palavra, não pode falar aquilo, não pode isso, aquilo ali não pode de jeito algum.

Pois ela se sai extremamente bem nesse terreno perigoso, movediço, em que resolveu se meter. Ela e seu colaborador na criação do roteiro, Manuel Burque – que também trabalha como ator, interpretando Xosé, o grande amigo de Gari, um assistente social que serve como orientador tanto do rapaz quanto de outros jovens com o mesmo tipo de problema, e que vivem juntos numa espécie de república.

Vida Perfeita consegue falar de incapacidade mental sem ser ofensivo, sem ser grosseiro. De forma respeitosa, carinhosa. Um gol e tanto, uma proeza de se respeitar, de se aplaudir.

Jeitosa no trato de tema tão absolutamente delicado, Letícia Dolera tem outra bela qualidade. Mostra cenas de sexo da forma mais natural possível – sem pudores, pudicícias, mas também explicitudes desnecessárias, provocativas ou quasepornôs.

E como tem cena de sexo. Meu, como trepam aquelas três moças!

Mostrar as coisas com naturalidade – sem frescura, sem agressão a ninguém. Me encantou – para usar uma expressão que se usa muito em espanhol – que Letícia Dolera tenha feito sua criatura, María, sofrer de hemorróida, e falar disso algumas vezes ao logo dos oito capítulos da primeira temporada de Vida Perfeita.

Como também é interessante a sequência em que a mãe de María senta-se no vaso sanitário e baixa a calcinha para fazer xixi enquanto revela para a filha, pela primeira vez na vida, que teve um caso extra-conjugal, muitos anos antes.

De novo: não que isso seja novidade. Já em 1977, Jane Fonda fazia exatamente isso numa cena de Adivinhe Quem vem para Roubar/Fun with Dick and Jane, gostosa comedinha de Ted Kotcheff. Mas é sempre bom ver esse tipo de exemplo, de como mostrar as coisas com naturalidade.

Pequenos gestos, pequenas iniciativas que fazem a humanidade ir pra frente, neste mundo em que estamos regredindo em tantos temas, em tantas áreas.

Maria del Pilar, a mãe de María e de Esther, é uma figuraça. Interpretada pela veterana atriz de teatro e cinema Carmen Machi, de Abraços Partidos e Criminal: Espanha (2019), María del Pilar era uma católica fanática que, de repente, passou a questionar a religião e a não mais acreditar em Deus.

Se não houver, em algum momento, um toquezinho anti-Igreja Católica, não é uma obra espanhola…

Dois anos depois dos oito episódios (de cerca de 30 minutos cada), foi lançada a segunda temporada da série, anunciada como última. Com seis episódios, estreou em 19 de novembro de 2021. A vida é curta e tem coisa demais diante de nós, mas pretendo ver essa segunda parte. (Na foto, Aixa Villagrán, que faz Esther.)

A série foi premiada em Cannes

Vida Perfecta ganhou sete prêmios, fora outras 14 indicações. Em 2019, no Festival Internacional de Séries de Cannes (que eu não sabia que existia), levou nada menos que o prêmio de melhor série, e mais um prêmio especial de interpretação para o trio central, Leticia Dolera, Celia Freijeiro e Aixa Villagrán. A autora, diretora e atriz foi a primeira artista espanhola a ser premiada nesse festival de Cannes.

Pois é. Letícia Dolera.

Como é possível que eu, um admirador apaixonado do cinema espanhol, não conhecesse essa moça?

É catalã; nasceu em outubro de 1981 em Barcelona. Em outubro de 2022, quando vimos a série, a moça tinha 68 títulos como atriz em sua filmografia, numa carreira iniciada em 2001. Uma passada de olhos rápida pela filmografia dela como atriz mostra que esses 68 títulos se dividem mais ou menos igualmente entre séries de TV e filmes.

Participou de várias produções não espanholas. Trabalhou, por exemplo, em The Emperor’s Wife, produção holandesa de 2003, de Julien Vrebos, de Visões/Imagining Argentina, de 2003, do britânico Christopher Hampton, e da minissérie francesa Petits Meurtres en Famille, de 2006.

Como diretora, são nove títulos; cinco deles são curta-metragens, três são séries. Seu único longa-metragem como diretora, até aqui, é Requisitos Para Ser una Persona Normal, de 2015, uma comédia romântica escrita e roteirizada por ela, em que estrela ao lado de Manuel Burque, o co-autor do roteiro deste Vida Perfeita.

Como vive nestes tempos duros da histeria do politicamente correto, em que até J.K. Rowling – a autora daquela saga maravilhosa que ataca com virulência os supremacistas de qualquer natureza e defende a mistura, a convivência de pessoas de origens diferentes – virou alvo de ataque das patrulhas, Letícia Dolera também enfrentou uma polêmica estéril.

Conhecida por posições feministas, crítica ferrenha da demissão de mulheres grávidas, a moça foi atacada por ter voltado atrás na decisão de contratar a atriz Aina Clotet para o papel de Cris nesta Vida Perfeita aqui. Letícia acertou verbalmente com essa moça que ela teria o papel – mas, ao saber que Aina Clotet estava grávida, a autora e diretora desistiu da sua primeira escolha, e chamou a bela Celia Freijeiro para o papel.

Pronto: virou alvo de pancadaria.

E não adiantou explicar que a atriz que faria Cris seria filmada em várias cenas de sexo, e que a personagem definitivamente não estava grávida, e portanto o papel não cabia mais para Aina Clotet.

Levou o maior pau.

Definitivamente, a vida não é perfeita.

Anotação em outubro de 2022

Vida Perfeita/Vida Perfecta – A Primeira Temporada

De Leticia Dolera, Espanha, 2019

Direção Leticia Dolera, Ginesta Guindal, Elena Martín

Com Letícia Dolera (María),

Celia Freijeiro (Cris),

Aixa Villagrán (Esther),

e Enric Auquer (Gari, o caso de María), Font García (Pablo, o marido de Cris), Manuel Burque (Xosé, o amigo e instrutor de Gari), Cocó Salvador (Paula, as filha mais velha de Cris e Pablo), Víctor Fontela (Richi), Carmen Machi (María del Pilar, a mãe de María), David Verdaguer (Gustavo, o namorado/noivo de María), Fernando Colomo (José Antonio, o pai de María), Alba Estapé (Natalia), Marieta Sánchez (Maruja), Alejandro Tous (Álex), Ángela Cervantes (Ro), Pedro Casablanc (Ricardo), Jasmine Roldan (Jimmy), Xavi Sáez (Carlos), José Pérez Ocaña (Javier), Paco Moreno (Sebas), Xavier Capdet (Genaro), Mia Torres Miró (Martina), Patricia Santos (recepcionista), Cheng Li Ye (Lucas)

Argumento Leticia Dolera (criadora), roteiro Letícia Dolera & Manuel Burque

Fotografia Marc Gómez del Moral    

Montagem David Gallart, Pau Itarte, Queralt González

Casting Arantza Vélez, Irene Roqué 

Desenho de produção Laia Ateca

Produção Movistar+, Corte y Confección de Películas

Cor, cerca de 240 min (4h)

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