Quando John Huston terminou as filmagens de Uma Aventura na África (1951), no meio da selva do então Congo Belga, foi para Londres cuidar da montagem do filme – e, lá, recebeu de presente de um amigo o livro Moulin Rouge, uma biografia bastante romanceada do pintor Henri de Toulouse-Lautrec escrita por Pierre La Mure.
“Depois da leitura, tive uma idéia para o desfecho que me deixou com vontade de fazer um filme baseado no livro”, escreveu ele na sua deliciosa autobiografia Um Livro Aberto.
E aqui vou transcrever o relato de John Huston sobre a idéia que teve para o final do filme que iria realizar. Não chega a ser um spoiler, já que todo mundo sabe que Toulouse-Lautrec morreu faz muito tempo. De qualquer forma, faço o alerta: no parágrafo abaixo, relata-se o final de Moulin Rouge. Quem não viu o filme deveria parar de ler por aqui, ou pular para mais adiante.
“Imaginei Lautrec no leito de morte”, escreve John Huston, “no castelo em Toulouse, enquanto a mãe e o pai assistem à extrema-unção dada pelo padre. O pintor sorri e abre os olhos. Está tendo uma alucinação: os fantasmas de seu amado Moulin Rouge invadem o quarto, para se despedir do amigo que vai partir para sempre. Começa a música do cancan e Lautrec exala o último suspiro. Seria um final realmente feliz.”
A idéia é brilhante, e a realização da sequência ficou à altura dela. É uma sequência maravilhosa, impressionante, antológica, um trabalho sensacional do diretor de fotografia Oswald Morris.
E é fantástico: John Huston conseguiu criar um happy end para uma história terrivelmente trágica.
Nossa Mãe do céu, que vida estupidamente triste a desse artista genial que pintou a alegria dos cabarés parisienses nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do século XX!
As indicações todas são de que o autor Pierre La Mure realmente romanceou muito a vida do pintor. Talvez tenha exagerado um tanto – mas o fato é que o homem que o filme de John Huston retrata sofreu tremendamente, incrivelmente. Um escravo condenado a remar nas galés romanas tinha vida boa comparada à de Toulouse-Lautrec.
Era chamado de anão, mulheres demonstram repulsa
Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa (1864-1901) era o filho mais velho do conde Alphonse de Toulouse-Lautrec Monfa e da condessa Adéle Tapié de Céleyran. Nascido literalmente em berço de ouro, sofria de uma doença rara, a Pycnodysostosis, que depois ficou conhecida pelo seu nome. A Doença de Toulouse-Lautrec se caracteriza pela fragilidade dos ossos.
Criança, Henri sofreu uma queda numa escada no castelo da família, e quebrou os ossos das duas pernas. Do tronco para cima, seu corpo teve desenvolvimento normal – mas suas pernas nunca cresceram. Adulto, tinha 1 metro e 52 centímetros. As pessoas o chamavam de anão, e muitas mulheres demonstraram ter repulsa por ele. Isso fez com que Henri mergulhasse na mais profunda amargura.
O ator escolhido por John Huston para viver o pintor de vida trágica, José Ferrer, tem uma impressionante semelhança física com Henri Toulouse-Lautrec. Os rostos dos dois são de impressionantemente parecidos. Ótimo ator, experiente, versátil, José Ferrer (1912-1992) interpreta também o pai de Henri, o conde Alphonse de Toulouse-Lautrec. E é uma beleza como ele faz bem os dois papéis: confesso que não percebi que era José Ferrer o intérprete do conde pai.
Algumas sequências mostram, em flashbacks, o acidente sofrido por Henri quando garoto; vemos os médicos informando ao pai e à mãe dele (interpretada por Claude Nollier) que, apesar de todos os esforços em delicadas cirurgias, os ossos do menino não apresentavam boa recuperação. Mas a ação já começa com Toulouse-Lautrec adulto, sentado em sua mesa cativa no Moulin Rouge, desenhando as bailarinas e seus parceiros que se apresentavam no centro do grande salão do cabaré. Enquanto desenhava, bebia, em doses industriais como se fosse água, ou cerveja, copos e mais copos de conhaque. Um letreiro informa que estamos em 1890.
É uma abertura fascinante: vamos vendo as bailarinas principais, Louise Weber, apelidada de La Goulue, a gulosa, e Aicha, uma negra argelina lindíssima, rodopiando pelo centro do Moulin Rouge junto com seus parceiros, e, simultaneamente, os rostos das pessoas da platéia, e, à sua mesa, Toulouse-Lautrec desenhando.
Depois do número das duas bailarinas e seus pares, apresenta-se a bela Jane Avril – cantando “It’s April Again”, a canção tema do filme, criada pelo compositor Georges Auric, autor da ótima trilha sonora. E, para encerrar a noite, vem a sensacional apresentação de seis bailarinas de cancan.
Os dez minutos iniciais são como se espectador estivesse num camarote privilegiado do Moulin Rouge, assistindo ao melhor do espetáculo.
Louise Weber, La Goulue, e Jane Avril existiram na vida real. Ambas foram pintadas por Toulouse-Lautrec. La Goulue (interpretada por Katherine Kath) tem certa importância na trama, e Jane Avril (o papel de Zsa Zsa Gabor, na foto acima, a maior estrela do elenco) mais ainda. É mostrada como uma mulher absolutamente consciente de sua beleza, de seu poder de sedução – e totalmente apaixonada pelos homens. Bastante como o Paulo de Todas as Mulheres do Mundo (1966) em relação a elas, Jane Avril bem que gostaria de experimentar todos os homens do mundo. Logo de cara, nessa primeira longa sequência dentro do Moulin Rouge, ela diz algo assim: – “Ó, Henri, por que você não é um homem alto e belo? Eu me apaixonaria por você, porque você é uma pessoa tão boa…” Ao que ele responde: – “Você acha que sou uma pessoa boa porque sou o único homem que jamais se apaixonou por você”.
Duas das histórias de amor mais trágicas que pode haver
Há outras figuras reais no filme, além de La Goulue e Jane Avril. Em uma sequência ainda na primeira metade do filme, Toulouse-Lautrec se encontra num bar com um grupo de pintores, entre eles o grande Georges Seurat (interpretado pelo então iniciante Christopher Lee). O rei Milo IV da Sérvia comparece a uma vernissage do pintor na galeria do seu amigo marchand, e acaba comprando um quadro dele (é interpretado por Theodore Bikel.
Vários personagens reais. Mas o roteiro escrito por John Huston e Anthony Veiller se concentra muito é em duas mulheres que não consegui saber se existiram realmente ou se foram criação do escritor Pierre La Mure. Talvez as duas – ou ao menos uma delas – sejam o que se chama de compósitos, personagens que juntam as características de diversas pessoas da vida real.
Uma delas é uma prostituta, Marie Charlet (o papel de Colette Marchand, na foto acima), por quem o pobre pintor tem uma paixão desesperada, desesperadora. É uma das histórias de amor mais trágicas de que já ouvi falar na vida.
Boa parte do filme trata da paixão de Toulouse-Lautrec por Marie Charlet. Na segunda metade dos 119 minutos de duração, surge na vida dele Myriamme Hayam (o papel de Suzanne Flon, na foto abaixo). Bem diferentemente de Marie Charlet, uma pessoa instável, desagradável, nada atraente, nada sedutora, Myriamme é uma mulher fascinante. Nasceu pobre – provavelmente não tão pobre quanto Marie, mas pobre. E foi melhorando de vida graças a seu trabalho, a seu talento – demonstrou-se uma figurinista de imaginação, talento, jeito.
Com Myriamme, o pobre pintor vive uma das histórias de amor mais trágicas de que já ouvi falar na vida. Mais uma.
Ninguém resiste a duas das histórias de amor mais trágicas que pode haver.
Um extremo cuidado com as cores
John Huston fez questão que as cores do filme fizessem lembrar o tipo de cores que Toulouse-Lautrec usava em suas pinturas e litografias. Fala longamente disso em sua autobiografia: “Nossa idéia era atenuar as cores, apresentá-las em planos de tonalidades uniformes, dispensando o relevo e a ilusão de terceira dimensão trazida pela modelagem. Contratei Eliot Elisofon, fotógrafo da Life, para fazer experiências com o emprego desse tipo de colorido em ensaios fotográficos, e ele e Oswald Morris, cinegrafista do filme, tentaram conseguir com a câmara cinematográfica os efeitos obtidos nas fotos.”
Ele prossegue: “Antes de iniciar a filmagem, fizemos nossos testes de cor definitivos. Para os interiores, utilizamos um filtro até então só empregado para simular neblina – e aumentamos esse efeito com o acréscimo de fumaça autêntica, de modo que as cenas adquiriram um tom monocromático. (…) No fim, esse emprego sui generis da cor se transformou na maior qualidade do filme, que foi o primeiro a dominá-la com êxito, em vez de ser dominado por ela.”
O realizador conta também como foi a experiência de filmar diversas das cenas de exteriores nas ruas de Paris. Foi uma aventura, segundo conta Huston, o mais aventureiro de todos os grandes cineastas: “Hoje tornou-se praticamente impossível obter licença para rodar uma produção em Paris”, escreveu ele, na autobiografia publicada em 1980, “mas naquela época (1951, 1952) as autoridades não podiam ser mais simpáticas. A cooperação chegava ao extremo de proibir o trânsito numa área de mais de dez quilômetros quadrados durante a tarde inteira de um sábado para que se pudesse reconstituir uma cena realista da Belle Époque na frente do café dos Deux Magots na Margem Esquerda da cidade. Tiramos da avenida todos os carros, ônibus, motos e pedestres, para deixar o caminho livre para as carruagens puxadas a cavalo e outros acessórios típicos da virada do século. Do lado direito da praça havia um cruzamento de cinco ruas, onde trinta policiais impediram a passagem por horas a fio. Não dá para descrever a indignação dos motoristas franceses. Todos buzinavam ao mesmo tempo sem parar. O barulho era tão ensurdecedor que os próprios atores não conseguiam ouvir o que estavam dizendo.”
A barba negra espessa ajudava a deixar o rosto de José Ferrer bastante parecido com o de Toulouse-Lautrec, assim como o corte de cabelo e os óculos. Para que ele parecesse ter o 1 metro e 52 do pintor, foram usados diversos truques – o uso de determinados ângulos da câmara, fossos e plataformas escondidas e também dublês bem baixinhos. Para muitas sequências, José Ferrer desenvolveu um método – trabalhoso, doloroso – de caminhar de joelhos.
Outras informações sobre o filme e sua produção, a maioria tirada da autobiografia de Huston e da página de Trivia do IMDb:
* A mão que a câmara focaliza diversas vezes nas cenas dentro do Moulin Rouge fazendo os desenhos – como se fosse a de Toulouse-Lautrec – é do artista francês Marcel Vertès, que ganhou dinheiro criando “falsificações muito convincentes de Lautrec antes de se consagrar com sua própria obra”, segundo John Huston. “Ele desenhava com tanta rapidez que dava para aprontar um plano geral da cena no tempo que se levava para filmá-la”.
Marcel Vertès também assina os figurinos do filme, ao lado de Julia Squire.
* A voz que canta a canção tema do filme e mais tarde uma outra música não é de Zsa Zsa Gabor. A atriz foi dublada, nas canções, por Muriel Smith, a atriz e cantora que interpreta Aicha, a dançarina que divide o tablado com La Goulue e está sempre brigando com ela.
* A atriz Claude Nollier, que interpreta a condessa mãe do pintor, tinha apenas 32 anos durante as filmagens. José Ferrer tinha 40.
* Foi a estréia no cinema de Colette Marchand, que faz a prostituta Maria Charlet. Ela teve uma carreira curtíssima, de apenas 6 títulos.
“Rico, exuberante; excelente elenco; memorável canção tema”
Moulin Rouge recebeu nada menos que 7 indicações ao Oscar, nas categorias de melhor filme, melhor direção, melhor ator para José Ferrer, melhor atriz coadjuvante para Colette Marchand, melhor montagem, melhor figurino e melhor direção de arte.
Venceu nas categorias de direção de arte e figurinos – por coincidência, exatamente as mesmas categorias em que foi premiado o filme Moulin Rouge: Amor em Vermelho, o musical de 2001 dirigido pelo australiano Baz Luhrmann, com Nicole Kidman linda de morrer, Ewan McGregor, Jim Broadbent e John Leguizano, este último no papel de Toulouse-Lautrec.
Leonard Maltin deu ao filme 3.5 estrelas em 4: “Rico, exuberante filme baseado na vida de Henri de Toulouse-Lautrec, o artista parisiense do século 19 cujo crescimento foi atrofiado por um acidente na infância. Huston brilhantemente captura o sabor de Montmartre, seus personagens, e a visão tristemente distorcida que Lautrec tinha da vida. Excelente elenco; memorável canção tema de Georges Auric. Vencedor de Oscars pelos figurinos e direção de arte deslumbrantes.”
E então Maltin conclui sua avaliação com uma frase que tinha sentido apenas nos primeiros anos da TV, quando ela ainda apresentava filmes coloridos em preto-e-branco: “Se você não conseguir ver o filme em cores, melhor não ver”.
Cada cabeça uma sentença. Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, arrasa com o filme: “É difícil acreditar que isto aqui foi feito pelo John Huston que fez Relíquia Macabra. Este era enxuto; Moulin Rouge é gordo (e mole no meio). É uma biografia de Toulouse-Lautrec (José Ferrer, ajoelhado e de sapatos falsos), com recriações visuais muitas vezes extraordinárias. Mas o roteiro, de Anthony Veiller e Huston, baseado no livro de Pierre La Mure, foi concebido em estilo deluxe e se leva muito a sério. Um filme pomposo. Ferrer fala com um sotaque esquisito, enrolado, e recita seus epigramas como se os tivesse bem decorados. Com Colette Marchand, Suzanne Flon e Zsa Zsa Gabor como Jane Avril, cantando a famosa música-título de Georges Auric com voz dublada. (Gabor está radiantemente bonita, embora seus gestos quando finge cantar sejam idiotas.”
“Un três beau film”, diz o Guide des Films de Jean Tulard: “Um filme muito belo que vale pela alucinante de semelhança de José Ferrer com Toulouse-Lautrec e também pela música nostálgica de Georges Auric. Pode-se preferir este filme ao French Cancan de Renoir, apesar de alguns erros na escolha dos atores.”
Não me pareceu haver erros na escolha dos atores.
Acho Moulin Rouge um belo filme, sim – embora haja uma certa pompa – como diz a cricri Pauline Kael – em alguns diálogos. É um defeitinho pequeno num belo filme.
Anotação em janeiro de 2020
Moulin Rouge
De John Huston, EUA, 1952
Com José Ferrer (Henri de Toulouse-Lautrec / conde Alphonse de Toulouse-Lautrec) e
Zsa Zsa Gabor (Jane Avril), Suzanne Flon (Myriamme Hayam), Colette Marchand (Marie Charlet), Claude Nollier (condessa Adèle de Toulouse-Lautrec), Katherine Kath (Louise Weber, a dançarina La Goulue), Muriel Smith (a dançarina Aicha / a voz de Jane Avril nas canções), Mary Clare (Madame Loubet), Walter Crisham (Valentin le Desossé), Harold Kasket (Charles Zidler, o dono do Moulin Rouge), Georges Lannes (sargento Balthazar Patou), Lee Montague (Maurice Joyant), Maureen Swanson (Denise de Frontiac), Tutte Lemkow (o dançarino par de Aicha), Jill Bennett (Sarah), Theodore Bikel (rei Milo IV da Sérvia), Peter Cushing (Marcel de la Voisier), Charles Carson (conde Moïse de Camondo), Walter Cross (Babare), Christopher Lee (Georges Seurat)
Roteiro Anthony Veiller e John Huston
Baseado no romance de Pierre La Mure
Fotografia Oswald Morris
Música de Georges Auric
Montagem Ralph Kemplen
Figurinos Julia Squire e Marcel Vertès
Produção Romulus Films. DVD Versátil.
Cor, 119 min (1h59)
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