Ali pela metade de Christine, produção de 2016 do cinema independente americano baseada em fatos reais, o espectador poderá se perguntar: mas exatamente por que mesmo resolveram fazer um filme sobre a vida dessa moça?
Terá todo o direito de fazer a pergunta. Eu fiquei me perguntando isso, e depois Mary comentou que ela também ficou.
Por que, afinal, fizeram este filme sobre a vida de Christine Chubbuck, uma jornalista mediana de uma pequena estação de TV de cidade pequena da Flória em meados dos anos 1970?
Não que o filme seja ruim. Não é, não, de forma alguma. Não conhecia o diretor Antonio Campos, jovem americano – apesar do nome – nascido em Nova York, em 1983. Ele dirige com segurança, firmeza de veterano. A narrativa é sóbria, tranquila, sem ceder a fogos de artifício, invencionices. Os atores estão muito bem, com destaque especial para Rebecca Hall, essa inglesa de grande talento e de belos filmes no currículo, como…
Uau. Pretendia listar os filmes de Rebecca Hall que já estão neste 50 Anos de Filmes, mas não sabia que eram tantos. Lá vai a lista: O Palácio de Joe / Joe’s Palace (2007), Vicky Cristina Barcelona (2008), Einstein e Eddington / Einstein and Eddington (2008), Frost/Nixon (2008), Pronto para Recomeçar / Everything Must Go (2010), Atração Perigosa / The Town (2010), Sentimento de Culpa / Please Give (2010), O Despertar / The Awakening (2011), O Dobro ou Nada / Lay the Favorite (2012), Uma Promessa / A Promise |(2012), Circuito Fechado / Closed Circuit (2013), Professor Marston e as Mulheres Maravilhas / Professor Marston and the Wonder Women (2017), O Jantar (2017).
Rebecca Hall não coleciona enorme penca de prêmios, ao contrário de algumas atrizes de sua faixa etária (ela é de 1982). Até março de 2020, haviam sido 11 prêmios, fora 28 indicações – bem pouco, comparado, por exemplo, com os 48 prêmios e 147 indicações de Michelle Williams (de 1980). Mas é, acho, uma das melhores atrizes de sua geração – e olha que essa é uma geração dourada.
Está não menos que brilhante no papel de Christine Chubbuck.
Uma palavrinha sobre o diretor Antonio Campos, nova-yorquino com esse nome tão português ou brasileiro. Apesar de muito novo – 33 anos quando Christine foi lançado –, tem já 19 títulos como produtor em sua filmografia. Este aqui foi seu quarto longa-metragem como diretor.
Um dos filmes que produziu foi o independente – e muito interessante – Martha Marcy May Marlene, de 2011. Sua mãe é a italiana Rose Ganguzza, produtora de cinema, que já foi empresária de Pelé. O pai é o jornalista Lucas Mendes.
Outro detalhe interessante: Antonio Campos é casado com a moça que é a montadora do filme, Sofia Subercaseaux.
Me pareceu que o filme é mais longo do que seria preciso
Então, retornando, repetindo: não é que o filme seja ruim. Não é isso. A questão é aquela que já coloquei: por que fazer um filme sobre a vida de Christine Chubbuck?
Para aqueles que sabem quem foi Christine Chubbuck, para quem conhece a história dela, essa é uma pergunta cretina. Para essas pessoas, faz todo sentido, sim, haver um filme sobre a vida da moça, um filme que procure explicar os motivos, que forneça pistas, que esclareça.
Para quem não sabe quem é ela, ou não identifica o nome à pessoa, ou simplesmente não sabe dos acontecimentos – a imensa maior parte das pessoas, creio eu, em especial fora dos Estados Unidos –, a explicação de por que se fez um filme sobre a vida de Christine Chubbuck só vem no final dos longos 119 minutos do filme. (A história, me parece, poderia ser perfeitamente contada em uns 90 minutos.)
E, para quem não conhece a história, o que acontece no final do filme é uma terrível surpresa, um profundo choque. Eu não vou apresentar esse spoiler, é claro.
Se o eventual leitor que não viu ainda o filme tiver chegado até aqui, e tiver ficado curioso, pode continuar lendo, se quiser. Não vou dar o spoiler. Pode e deve é ver o filme: está disponível na Netflix. Se for extremamente curioso, o eventual leitor poderá, é claro, dar um google – e aí ficará sabendo o que acontece no final do filme.
A história aconteceu em meados dos anos 70
O filme mostra a época – meados dos anos 1970 – em que Christine Chubbuck trabalhou como repórter de TV em Sarasota, cidade de menos de 60 mil habitantes na costa Oeste da Flórida, voltada para o Golfo do México.
Através de alguns diálogos, o espectador fica sabendo que Christine nasceu em Ohio, e viveu durante algum tempo em Boston. Lá, teve algum tipo de problema que jamais é explicitado – mas fica claro que foi algum episódio de problema mental, psiquiátrico.
Perto dos 30 anos, Christine morava com a mãe, a quem chama pelo nome, Peg (J. Smith-Cameron).
Trabalhava numa pequena emissora local de TV, a WZRB, que tinha uma programação de jornalismo cobrindo Sarasota e região, e era afiliada a uma rede, da qual reproduzia material – inclusive o jornalismo nacional.
Para uma emissora local, de uma cidade pequena, até que a WZRB tinha uma equipe numerosa. Ficamos conhecendo Michael, o Mike (Tracy Letts, bom ator), o diretor da TV, um sujeito que está sempre discutindo com Christine – volto ao tema logo adiante.
George (Michael C. Hall, em uma história passada na mesma Flórida em que ficou famosérrimo como Dexter, o perito policial e serial killer) é o mais experiente do time, que trabalha como o âncora do principal programa jornalístico da emissora, mais ou menos equivalente aos jornais locais da Rede Globo antes da entrada do Jornal Nacional, no horário mais nobre de todos.
Jean (Maria Dizzia) é uma cinegrafista, uma figura interessante, pessoa boa, doce – a única que poderia ser chamada de amiga de Christine.
Steve (Timothy Simons) apresentava a previsão de tempo. Andrea (Kim Shaw), uma lourinha bonitinha, cobria esportes.
Há várias outras pessoas na equipe – mas essas aí são as que têm alguma importância no roteiro escrito por Craig Shilowich.
Não que isso importe muito, mas o nome da emissora de TV em que Christine trabalhava, naquele ano de 1974 mostrado no filme, não é WZRB, e sim WXLT-TV, e ela é uma retransmissora da rede ABC, uma das três grandes redes nacionais dos Estados Unidos. O nome da ABC foi omitido no filme – não haveria necessidade de citá-lo, e talvez uma citação pudesse dar problemas jurídicos.
Uma jornalista mediana que se achava o máximo
Christine era a repórter que cobria as notícias importantes para a comunidade, para os moradores de Sarasota. Nada de especial, de grandioso.
Mas Christine – é o que o filme vai mostrando o tempo todo – se achava uma jornalista de TV muito especial, muito importante, feita para coisas grandiosas.
Não fica muito claro se isso tem, ainda que vagamente, alguma razão de ser. Poderia ser, por exemplo, que ela tivesse trabalhado em alguma emissora de Boston, uma das grandes metrópoles do país; se tivesse trabalhado em emissora de Boston, teria alguma lógica o fato de ela, em Sarasota, Flórida, menos de 60 mil habitantes, se achar uma versão feminina de Bob Woodward ou Carl Bernstein.
Numa bela sacada do roteirista Craig Shilowich, na primeira sequência do filme Christine está no estúdio da WZRB entrevistando ninguém menos que o presidente Richard Milhous Nixon – ela fala o nome completo dele, com o Milhous. Claro que é uma brincadeira dela – ou seria, muito pior que uma brincadeira, um sonho? Uma fantasia que ela acreditava ser verdadeira?
O fato é que o filme não demonstra que ela tivesse tido uma boa experiência profissional em Boston. O que é mostrado é que Christine se julga uma das melhores jornalistas de TV da América. E que Christine, pobre moça, tem sérios problemas comportamentais. Sérios problemas psicológicos e psiquiátricos.
É emocionalmente e comportamentalmente instável. Contesta sempre, incansavelmente, as ordens, as orientações do seu chefe, o diretor da emissora, Mike. Muitas vezes, acusa Mike de pecados que ele de forma alguma cometeu: entende que o chefe está pedindo sensacionalismo quando a rigor o chefe está pedindo atenção para as pautas e a forma de executar as reportagens, sugerindo atenção ao que os concorrentes com bons índices de audiência estão fazendo.
A rigor, como Mary bem disse, o que o filme retrata é que Christine Chubbuck não tem nada de jornalista brilhante, embora se julgue um dos melhores de todos, de todos os tempos. É uma boa jornalista – no máximo. Mas que se revela, no dia a dia, pelo modo com que trata todas as pessoas, pelo tanto que tem o rei na barriga, uma chata de galocha.
Me peguei pensando, ali pelo meio do filme, que Mike tem é um saco de filó, pra aguentar aquela pessoa tão chata, tão desagradável – e que chega mesmo ao cúmulo de falar, em alto e bom som, no meio do local de trabalho, que a mulher do diretor tem um drinking problem.
(A mulher de Mike tem, sim, um problema com a bebida – o filme mostra isso. Mas berrar isso no meio da redação é demais, certo?)
Por muitíssimo menos, qualquer chefe teria demitido Christine Chubbuck.
Isso no aspecto profissional.
Nas relações pessoais, afetivas… Christine não tinha relações pessoais, afetivas. Era – pelo que o filme mostra – uma pessoa travada, que não se abria para ninguém, não permitia que ninguém chegasse perto dela. E também não se interessava em chegar perto de ninguém, de ouvir confidências, ajudar, ser companheira.
A cinegrafista Jean gostava dela, tentava ser amiga dela. Era, provavelmente, a única pessoa que de fato fazia esforço para chegar perto dela.
Christine tinha uma atração por George, o âncora bonitão – mas não tentava demonstrar isso, muito ao contrário. Não tentava deixar que ele chegasse perto – nem tentava se aproximar dele.
E pela mãe, Peg, a única pessoa que se dedicava a cuidar dela, Christine não demonstrava afeto, carinho. Sequer respeito, gratidão.
Era uma pessoa profundamente neurótica, mergulhada em si própria, em sua depressão.
(Segundo o IMDb, o roteirista Craig Shilowich se interessou em trabalhar nessa história real porque sentia uma certa afinidade com Christine: ele também sofreu de depressão, quando muito jovem.)
E é aí que vem aquela pergunta: por que raios fizeram um filme sobre uma jornalista a rigor mediana, se não medíocre, com sérios problemas mentais, de uma pequena estação de TV de uma pequena cidade da Flórida?
O que não falta no mundo é gente a rigor medíocre que se acha genial. E que tem problemas mentais.
Pois é. Só o fim de Christine é que explica por que resolveram fazer um filme sobre ela.
No mesmo ano, dois filmes sobre Christine Chubbuck
Rebecca Hall está um brilho.
Como todo bom ator/toda boa atriz, Rebecca Hall é uma mulher de mil caras. Não tem, de forma alguma, uma beleza Barbie, de tracinhos perfeitos. Há filmes em que aparece bela; há filmes em que aparece gostosa, sensual – como, por exemplo, em O Dobro ou Nada.
Aqui, não está bela, não está sequer bonita, não está atraente. Bem ao contrário. Consegue parecer feia – coisa que ela não é, de forma alguma. Muitas vezes, parece simplesmente louca, alucinada.
Interessante: vejo agora que este Christine do diretor Antonio Campos, com Rebecca Hall nessa interpretação extraordinária, não foi o único filme que se fez sobre Christine Chubbuck.
No mesmo ano de 2016, foi lançado Kate Plays Christine, um documentário sobre como a atriz Kate Lyn Sheil se preparou para interpretar o papel de Christine Chubbuck. Os próprios produtores definiram Kate Plays Christine, dirigido por um tal Robert Greene, como “um thriller psicológico de não-ficção”. Se alguém entender o que isso significa, por favor, me conte.
O fantástico é que tanto este Christine, “baseado em fatos reais”, como ele se define, quanto o “thriller psicológico de não-ficção” Kate Plays Christine foram apresentados no mesmo Sundance Film Festival, o festival de Cannes dos filmes independentes.
Depois de ver o filme e ler um pouco (bem pouco, na verdade) sobre Christine Chubbuck, fiquei pensando em Network. Rede de Intrigas/Network, de Sidney Lumet, 1976, roteiro de Paddy Chayefsky, um elenco assombroso – William Holden, Faye Dunaway, Peter Finch, Robert Duvall. Nada menos que 10 indicações ao Oscar – e quatro estatuetas, para Peter Finch como ator, Faye Dunaway como atriz, Beatrice Straight como atriz coadjuvante e Paddy Chayefsky como autor de roteiro original.
Vi Rede de Intrigas/Network na época do lançamento, mas não gostei muito do filme. Dá para perceber que não devo ter entendido bem. Aquele foi um tempo extremamente tempestuoso na minha vida, a morte súbita de um irmão, o fim do casamento com a mãe da minha filha, o início tenso, duro, do novo casamento. Seguramente devo ter visto o filme num dia em que estava com a cabeça em outro lugar
Christine, como já foi dito, se passa em 1974. O filme do grande Sidney Lumet, repito, é de 1976. Tem tudo a ver. Acho que eu deveria procurar Network para ver agora.
O filme não tenta culpar a sociedade, o capitalismo
Depois de escrever a a anotação acima, dois dias depois de ver o filme, fico pensando que Christine tem uma abordagem…
Diacho, raio de palavra presunçosa, coisa de crítico de cinema, essa “abordagem” Pensei em approach, que é me parece menos presunçosa.
Fico pensando que Christine trata a personagem central de uma forma que considero muito boa. Uma forma, na verdade, admirável.
O roteiro de Craig Shilowich, a direção de Antonio Campos, a interpretação de Rebecca Hall – tudo se encaminha para mostrar que Christine, conforme tentei descrever acima, é uma jornalista mediana, na melhor das hipóteses boa, mas nada extraordinária, que se acha o máximo, que é afundada nas suas neuroses e na sua depressão, e que por isso é uma pessoa nada sociável, nada simpática. Em termos diretos, é uma pessoa danada de chata. Uma chata de galocha.
Não se tenta mostrar que Christine é assim por causa da “sociedade”, do “meio social”. Não se condena o regime capitalista ou a sociedade norte-americana como responsável por Christine ser como é.
Muito ao contrário. O filme mostra que aconteceu de Christine ser uma criatura frágil, neurótica, depressiva, anti-social – e ao mesmo tempo possuidora do rei, ou do Prêmio Pulitzer, na barriga.
Não tem que ficar procurando explicação complicada, complexa, não. O caminho mais direto entre dois pontos é a reta, não é um imenso cipoal, um labirinto.
Isso acontece. Neurose, depressão, loucura, isso acontece. Sem ser culpa da “sociedade”, do “meio social”, do “sistema”.
Acontece demais, acontece em tudo quanto é lugar, em qualquer país, em qualquer época.
Alguns – por questões específicas – viram tema de filme. Mas 200 milhões de outros acontecem sempre, na nossa frente, ao nosso lado, na nossa família, na família dos amigos.
Nesse sentido, por mostrar e demonstrar isso, Christine é um filme que – além de ser bom – tem bastante valor.
Anotação em março de 2020
Christine
De Antonio Campos, EUA, 2016
Com Rebecca Hall (Christine Chubbuck)
e Michael C. Hall (George), Tracy Letts (Michael), Maria Dizzia (Jean), Smith-Cameron (Peg), Timothy Simons (Steve), Kim Shaw (Andrea), John Cullum (Bob Andersen, o dono da emissora), Morgan Spector (doutor Parsons), Jayson Warner Smith (Mitch), Kimberley Drummond (Gail), Lindsay Ayliffe (capitão Frank Basil), Susan Pourfar (Miranda), Rachel Hendrix (Crystal)
Roteiro Craig Shilowich
Fotografia Joe Anderson
Música Danny Bensi e Saunder Jurriaans
Montagem Sofia Subercaseaux
Casting Dougas Aibel e Stephanie Holbook
Produção BorderLine Films, Fresh Jade, The Wonder Club.
Cor, 119 min (1h59)
***
Disponível na Netflix em 3/2020
Olá, Sérgio
Assisti Christine nesse ano doido e doído que vivemos imersos nessa pandemia e pensei a mesma coisa que você. A jornalista não possui nenhuma simpatia, emoção, história que prenda a atenção e pela atuação da Rebecca Hall (impecável) é literalmente um pé no saco de todos que a cercam.
Li algumas coisas sobre o ocorrido, após assistir o filme e tem um video no youtube que mostra a cena (filmado em qualidade bem, bem ruim) do que acontece no final do filme. Além disso, e “thriller psicológico de não-ficção” Kate Plays Christine” foi um documentário em formato diferente do padrão feito porque o diretor e as pessoas que participam do mesmo não encontram informações sobre o fato (acredito que na época, as tvs abafaram o caso e não deixaram muita divulgação aparecer.)
Enfim, espero ter ajudado nessa questão.
Abraço e que o final de ano seja com saúde, paz e esperança para o ano que está por vir.