Uma das características de Monika e o Desejo que mais me impressionaram ao vê-lo agora, 65 anos após seu lançamento, é como o filme demonstra clara influência do neo-realismo italiano – e como parece óbvio que ele iria influenciar a nouvelle vague francesa que surgiria daí a poucos anos.
A proximidade entre Sommaren med Monika, o 12º filme dirigido por Ingmar Bergman, de 1953, e a nouvelle vague é muito fácil de demonstrar. Em Les Quatre Cents Coups, no Brasil Os Incompreendidos, de 1959, o primeiro longa-metragem de François Truffaut e um dos filmes que marcaram a chegada do movimento dos jovens cineastas franceses, Antoine Doinel, o alter-ego do autor, interpretado por Jean-Pierre Léaud, e seu maior amigo, René (Patrick Auffay), roubam um cartaz à saída de um cinema em Paris. É uma foto de Harriet Andersson em Monika et le Désir. Não poderia haver algo mais sintomático, mais emblemático. Há outros exemplos dessa proximidade – falo delas mais adiante.
Aproveito para falar logo da questão do título. Sommaren med Monika, o título original, é “um verão com Monika”, e foi lançado na Inglaterra como Summer With Monika, na Espanha como Un Verano com Monica. Os distribuidores da França, da Itália, de Portugal e do Brasil foram de Monika et le Désir, Monica e il Desiderio, Mônica e o Desejo. Além de terem alterado o título, alguns, como os brasileiros, ainda mudaram a grafia do nome da protagonista da história, trocando o k por c. Para o lançamento em DVD no Brasil, a Versátil Home Vídeo voltou com a grafia correta de Monika, o papel de Harriet Andersson. (Em 2018, o DVD da Versátil foi incluído na Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema.)
Exatos 60 anos antes de o DVD com o filme chegar às bancas de jornal do Brasil, e apenas um ano antes do lançamento de Os Incompreendidos, o então jovem crítico François Truffaut escreveu um bom texto com o título “A obra de Ingmar Bergman”. Naquele ano de 1958, a filmografia de Bergman já estava com 19 títulos – e, segundo Truffaut, apenas seis haviam sido lançados comercialmente na França, inclusive Monika et le Désir.
“Dois jovens sem rumo, com empregos ruins”
Já a influência do neo-realismo italiano do pós-guerra – segunda metade dos anos 1940, primeira metade dos anos 1950 – sobre Bergman não é algo muito falado. Eu, pelo menos, não tinha conhecimento disso. E a proximidade é espantosa: como nos filmes de Vittorio De Sica, Roberto Rossellini, Luchino Visconti, como nos com roteiro de Cesare Zavattini, Monika e o Desejo focaliza gente simples, humilde, da classe trabalhadora. A câmara abandona os estúdios e vai para as ruas, para o ar livre: a imensa maior parte dos 96 minutos do filme se passa ao ar livre.
Há uma grande quantidade de planos gerais de Estocolmo, e muitas tomadas nas ruas, exatamente como Os Incompreendidos e Acossado/À Bout de Souffle (1959), o primeiro longa de Jean-Luc Godard, se passam em boa parte nas ruas de Paris – e os filmes dos mestres italianos se passavam nas ruas de Roma, Milão, Nápoles.
Aqui, no entanto, ao menos metade do filme se passa não nas ruas de uma grande cidade, e sim no arquipélago ao Sul da capital sueca. Boa parte das filmagens foi na ilha de Ornö. Como no neo-realismo que o precedeu e na nouvelle vague que viria depois, Ingmar Bergman filmava a céu aberto.
É necessário ter aqui uma sinopse, um resumo da trama. De preferência, não tão sintético quanto o próprio Ingmar Bergman fez, num gostoso depoimento de 5 minutos sobre o filme para o lançamento em DVD, já nos anos 2000: “Uma história sobre dois jovens com empregos ruins, ambos sem rumo”.
Recorro à sinopse do Guide des Films de Jean Tulard, adaptando uma outra coisinha:
Harry (o papel de Lars Ekborg), um modesto moço de entregas de uma fábrica de copos, de 19 anos, e Monika, uma vendedora de uma quitanda, de 17, ficam se conhecendo. (Acrescento o detalhe de que é ela que o aborda em um café, e toma toda a iniciativa nas primeiras vezes em que se encontram.) Monika sonha em fugir. Eles partem em direção à ilha de Ornö, no pequeno barco do pai de Harry, onde vivem uma vida livre, até o momento em que falta dinheiro. O casal retorna a Estocolmo; Monika, grávida, casa-se com Harry. Mas, sonhando sempre em estar em outro lugar, ela retoma sua vida independente.
Detalhe: o Guide de Tulard diz que o filme, lançado anteriormente na França como Monika et le Désir, foi depois relançado como Un Été avec Monika – absolutamente fiel ao título sueco.
Dois jovens fugindo da dura realidade
Harry e Monika estão presentes na tela durante praticamente todo o filme – que, afinal, conta a história deles, em especial a parte da história em que eles passaram o verão juntos, longe deste insensato mundo, longe dos empregos ruins, chatos, desagradáveis, em que ele era quase o tempo todo criticado por chegar tarde, por se ausentar para tomar um café, por se esquecer de um ou outro dever, e ela era bolinada por colegas.
A família de Monika era bem humilde, pobre. Viviam numa casa pequena e sempre desarrumada por causa dos três irmãos dela, bem novos, garotos aí entre 5 e 10 anos de idade. O pai bebia muito.
Harry tinha um status social melhor – mas não uma família feliz. A mãe havia morrido quando ele tinha 8 anos, e ele vivia sozinho com o pai que mal falava com o filho único.
Quando, a pretexto de que o pai havia batido nela – embora ele não tivesse batido nela coisa alguma –, Monika junta algumas roupas numa mala e vai esperar Harry diante do prédio dele, o rapaz a leva para o barco do pai. E os dois acabam se lançando na aventura louca de viajarem de barco pelo arquipélago ao Sul de Estocolmo.
É uma daquelas aventuras que estão necessariamente fadadas a acabar logo, que não têm saída.
Uma fuga da casa dos pais, da necessidade de trabalhar em empregos chatos, desagradáveis. Uma fuga da realidade, em suma – que, naturalmente, vai logo chegar ao fim.
Choque de gerações. Rebeldia juvenil. Rebelião contra os pais, os professores, a estrutura, o Establishment, a ordem estabelecida, o Sistema, o capitalismo. Essa coisa que, de uma forma ou de outra, foi marcando as sucessivas gerações do pós-guerra, em especialmente nos países desenvolvidos, mas que se espalharia também pelos periféricos, como este nosso aqui, no fundo do fundo do Tiers Monde, e que sempre teve reflexo no cinema e na cultura como um todo. Os beatniks dos anos 50, os hippies dos anos 60 – e, mundo afora, depois do neo-realismo italiano, a chegada da nouvelle vague francesa, do novo cinema inglês, do cinema novo brasileiro, que veio logo depois da bossa nova. O novo, o novo, o novo, no lugar do velho.
Foi impossível não pensar sobre essas coisas todas ao ver as belíssimas tomadas do verão que Harry passou com Monika – o trabalho do diretor de fotografia Gunnar Fischer é extraordinário, maravilhoso.
Fiquei lembrando que, enquanto Harry e Monika fugiam da dura realidade do dia a dia nas ilhas ao Sul de Estocolmo, nos Estados Unidos James Dean e Marlon Brando, com seus blusões de couro e suas motos, simbolizavam nas telas de cinema a geração da rebeldia sem causa muito clara, muito determinada. Juventude Transviada/Rebel Without a Cause, de Nicholas Ray, com James Dean, a mais perfeita tradução daquele fenômeno nos Estados Unidos, é de 1955, dois apenas depois deste Monika e o Desejo. O Selvagem/The Wild One, de Laslo Benedek, com Marlon Brando, na minha opinião é uma bobagem danada, mas refletia exatamente esse movimento de rebeldia da juventude de então; O Selvagem é de 1953, exatamente o ano deste filme aqui.
A rebeldia adolescente era um fenômeno global – e o cinema o mostrava, o refletia, refletia sobre ele.
Harriet Andersson é o que há de mais impactante
Como foi dito aí acima, Harry tinha 19 anos, e Monika, 17. Lars Ekborg, que interpreta Harry, é um ator extraordinário – mas, no entanto, não parece tão jovem. Nascido em 1926, estava portanto com 27 anos.
Digo isso para registrar – porque, a rigor, não atrapalha em nada o filme o fato de Lars Ekborg ser na verdade 10 anos mais velho que seu personagem. É um grande ator, repito, e está muito bem no papel.
Para fazer Monika, Ingmar Bergman escolheu Harriet Andersson – e a verdade dos fatos é que Harriet Andersson acaba sendo o elemento mais importante de Sommeren Med Monika.
Ingmar Bergman é um dos maiores realizadores da História do cinema, provavelmente o maior de todos, e este filme aqui é forte, marcante, impressionante. Mas, nele, parece que Harriet Andersson é que brilha mais. Mais até mesmo que Bergman.
Harriet Andersson, de 1932, estava com 21 aninhos em 1953, ano de lançamento do filme. (Bergman é de 1918, e estava portanto com 35.)
“Ingmar Bergman não descobriu Harriet Andersson”, afirma uma Trívia do IMDb, com um jeito de que está negando pela primeira vez uma fábula que se perpetuou ao longo dos anos. Só falta um ponto de exclamação. E o texto no grande site prossegue: “O coreógrafo, mestre do balé e diretor de teatro dinamarquês Sven Aaage Larsen havia feito a descoberta em 1948, na escola de teatro Calle Flygares, em Estocolmo, onde ele havia ido à procura de talentos. Harriet estava então com 16 anos.”
No delicioso depoimento feito nos anos 2000, para o lançamento do filme em DVD, um Bergman já idoso sorri quando diz que Harriet Andersson ainda não havia tido um papel principal, quando ele a escolheu para interpretar Monika. E conta, com um ar de nostalgia que não consegue esconder, que ele a havia visto num teatro de revista, meias de nylon à mostra, cantando canções insinuantes, “com um incrível carisma”.
Há um depoimento igualmente gostoso de Harriet Andersson no DVD da Versátil, dado pouco antes de 2013, quando o filme fez 60 anos, em que ela conta a sua versão de como foi escolhida para o papel – seu primeiro papel importante, seu primeiro papel dramático. Ela diz, com todas as letras, com uma simplicidade nórdica, que, até fazer Monika, ela era “só um par de pernas e um traseiro”. “A pair of legs and an ass”, como ela diz – a entrevista é em inglês.
É uma delícia ver o depoimento – ainda que curto – de Bergman e o de Harriet, que felizmente é longo, de cerca de 25 minutos. Mas é difícil de entender exatamente a verdade dos fatos quando se vê, na filmografia dela, que a atriz teve seu primeiro papel no cinema em 1949. Dessa estréia, em que seu nome sequer aparecia nos créditos, ela participou de mais 15 filmes, antes de ser escolhida por Bergman para fazer Monika.
Diacho: foram 16 filmes! Participações mínimas, na maioria dos casos, provavelmente – mas não era apenas uma moça que cantava canções insinuantes num teatro de revista quando Bergman a escolheu…
Uma garota nua – ah, furor na careta América!
Nesse depoimento de cerca de 25 minutos, Harriet fala a um entrevistador não tenho certeza se americano ou inglês, cujo nome não aparece no DVD. Ele demonstra ser um bom conhecedor de Bergman e da atriz – e conta que o filme causou grande furor quando foi exibido nos Estados Unidos.
Causou mesmo, segundo diversas fontes.
A conservadora, careta, quase pudica América do início dos anos 1950 não estava, de maneira alguma, acostumada a ver mulher nua nas imensas telas dos cinemas. E a jovem Harriet Andersson aparece nua, ou seminua, em várias tomadas de Sommaren med Monika.
Daquele país nórdico de que já haviam ido para a América alguns milhares de imigrantes, desde o século XIX, de onde já haviam sido importadas Greta Garbo e Ingrid Bergman, chegava então um filme em que uma atriz de 21 anos aparece de shortzinho em dezenas e dezenas de sequências, e até mesmo nua em pelo em algumas tomadas!
No filme, nas sequências passadas em pleno verão, nas ilhas ao Sul de Estocolmo, junto do mar, era a coisa mais natural do mundo que Monika ficasse de short bem short, as coxas cheinhas à bem mostra – e, aqui e ali, nua. No depoimento que acompanha o filme no DVD da Versátil, a Harriet idosa, ainda e sempre bela, diz, brincalhona, que o filme não foi escândalo algum na Suécia. Afinal, diz ela, todos na Suécia já haviam visto os dois seios de Ulla Jacobsson (1929-1982) em Última Felicidade/Hon Dansade em Sommer (1951), nos Estados Unidos One Summer of Happiness.
Nos Estados Unidos, no entanto, aquilo era uma novidade sensacional, excitante, louca.
Segundo o IMDb, Summer with Monika permaneceu como o filme de Bergman de maior bilheteria nos Estados Unidos. É uma arrematada loucura, já que o filme não é, nem de longe, um dos mais importantes da longa filmografia do gênio – mas parece que é a mais pura verdade.
Atenção: aqui vem um spoiler
Claro que é gostoso ver a super jovem Harriet Andersson de coxas de fora, ou totalmente nua – mas é necessário insistir em que não há absolutamente nada, nada de forçação de barra, de apelativo naquelas sequências. Monika-Harrriet Andersson passa pela frente da câmara do diretor de fotografia Gunnar Fischer, nas ilhas, junto do mar. Passa rapidamente diante da câmara. A câmara não a segue, não a persegue, de forma alguma. É tudo absolutamente natural.
Mas a verdade é que, como disse o Bergman já idoso, essa moça tinha “um incrível carisma”.
Aos 21 anos, aos parcos, ridículo 21 anos, já demonstrava ter, de sobra, aquele dom que só os grandes atores têm – a capacidade de mudar de rosto de uma cena para outra. É incrível como Harriet Andersson conseguia, já neste primeiro filme em que pôde mostrar seu talento de atriz, ser um camaleão. Ela exibe três, quatro, cinco faces diferentes. Ora aparece quase uma adolescente normal, comum, ora surge com um rosto de beleza arrebatadora.
Quando Sommaren Med Monika já se aproxima do fim, há uma tomada em tudo por tudo impressionante, marcante – dessas que, assim que são exibidas, se transformam em exemplares, antológicas, históricas.
E vai aqui, e a partir daqui, spoiler. Quem não viu o filme e por acaso está lendo este texto deveria parar por aqui.
Monika-Harriet Andersson está num bar – e não está com Harry, com quem havia se casado por estar grávida. Harry está trabalhando fora de Estocolmo, trabalhando duro, para alimentar a família, ao mesmo tempo em que tenta estudar para conseguir – quem sabe? – entrar para a faculdade e se tornar engenheiro. E Monika está em um bar, maquiada, vestida para matar – evidentemente com um outro homem.
E então a vemos em close-up. Está fumando. Ela vira os olhos para a câmara, e fixa os olhos na câmara – ou seja, olha nos olhos do espectador.
E demora a vir o corte.
A tomada permanece ali – a câmara fixa no rosto em close-up daquela jovem, pouco mais que uma adolescente mas já mãe, sentada em um bar, com um homem que não é o marido que está trabalhando para pagar sua comida. Um outro homem com quem certamente irá trepar em seguida. E a tomada se prolonga.
A rigor, a rigor, a tomada não deve demorar sequer um minuto. Para os espectadores, em especial os da época em que o filme foi lançado, deve ter dado a sensação de que durava o infinito.
Uma tomada marcante, antológica, histórica
Dá para fazer tratados a respeito daquela tomada.
Jean Tulard fala dela, no parágrafo em que tece considerações sobre o filme em seu Guide des Films. Lá para cima transcrevi o primeiro parágrafo do guia de Tulard sobre Monika et le Désir, a sinopse, o resumo da história. É sempre assim no Guide: um parágrafo com a sinopse, outro parágrafo com uma apreciação crítica.
“O filme foi apresentado como erótico. Mas Godard foi o primeiro a compreender o valor subversivo sobre o plano moral (a filha que fica com o pai, no inverso do esquema tradicional) e sobre o plano técnico (a sequência em que Monika fixa os olhos na câmara e olha para o espectador, método que seria retomado pela nouvelle vague). Revelação de Harriet Andersson.”
A Harriet octogenária que pode ser vista no depoimento do DVD fala dessa tomada emblemática, impressionante, que, sim, viria a abrir caminho para que, nos filmes da nouvelle vague, os personagens olhassem fixamente para a câmara, e portanto para os olhos do espectador:
“Era proibido olhar para a câmara”, ela diz. Sim: esse era um mandamento do cinema até então – não o sueco, o nórdico, o europeu, mas o cinema mundial.
“Era proibido olhar para a câmara. Quando filmamos essa cena, não havia som, por conta da música.”
Sim: na edição que o espectador vê, há um jazz sendo tocado no bar em que estão Monika e o eventual novo namorado. Não há diálogos. Deve ser a isso que ela se refere, na frase acima.
“Então ele disse: ‘Vire o rosto e olhe para a câmara.”
Ele, claro, é Ingmar Bergman.
“Eu fiz o que ele pediu e olhei para a câmara, mas pensei: ‘Será que ele ficou maluco? Eu estou olhando para a câmara!’ Hoje em dia ninguém entenderia isso. Os atores jovem não achariam isso estranho, mas naquela época eu senti um calafrio.”
Os americanos ficaram doidos com a nudez de Harriet Andersson. Nem perceberam que muitíssimo mais importante era o fato de que Harriet Andersson, quando o filme vai se aproximando do fim, vira o rosto e encara diretamente a câmara, algo que era terminantemente proibido.
Vira o rosto, encara diretamente a cãmara – e faz uma das tomadas mais antológicas da História do cinema.
Monika é a típica mulher que não deveria ter filho
Já foi dito que este texto teria spoilers. Então acho que dá para falar daquilo que Jean Tulard adianta em seu guia: a filhinha a que Monika dá à luz, depois do verão que passa com Harry, acabará sendo criada pelo pai.
Não tenho absoluta certeza, mas creio que dá para dizer com bastante segurança que Sommeren med Monika é o primeiro, ou um dos primeiros filmes a mostrar, com uma clareza acachapante, que nem toda mulher está preparada para ser mãe.
Era ainda 1953, e o mundo era muitíssimo mais machista do que é agora. Em 1953, as mulheres ainda não podiam sequer votar na Suíça, Colômbia, Honduras, Nicarágua, Peru, Egito, Argélia, Irã, para citar só alguns.
Até hoje, em todos os lugares do planeta, há gente que entende que toda mulher só é de fato mulher quando tem filho.
O que, evidentemente, é um absurdo. Há muitas mulheres, centenas de milhares, milhões, que não estão preparadas para a maternidade, que não querem a maternidade.
Portanto, não deveriam ter filhos. É claro, é óbvio.
Monika não deveria ter filho. Era jovem demais, imatura demais, irresponsável demais – e então teve.
A longa sequência em que a garotinha chora de noite, e é Harry que a pega e tenta fazer com que ela durma, e Monika se recusa terminantemente a sequer admitir participar do trabalho, é fortíssima, impressionante.
O jeito feminino de contar, o jeito masculino de contar
No seu depoimento de menos de 5 minutos sobre o filme, o velho Bergman conta: “Foi uma produção muito divertida, e Harriet e eu nos apaixonamos. Era uma espécie de fascinação com cenas externas. E isso também influenciou as filmagens.” Ele então faz uma pausa, e conclui: “Em certo sentido, acredito que o filme ainda seja válido”.
Ah, o jeito com que o homem conta a história e o jeito com que a mulher conta a história…
Bergman diz essa frase apenas, no seu depoimento sobre o filme: “… e Harriet e eu nos apaixonamos”.
Em seu depoimento de quase 25 minutos, ela conta que, filmagens terminadas, Ingmar Bergman perguntou se ela gostaria de tomar um chá com ele. Ela aceitou. Tomaram o chá – e, numa hora lá, o já respeitado diretor de cinema e de teatro, 14 anos mais velho que os 21 aninhos de idade dela, a beijou.
Foi um beijo meio sem graça, conta a octogenária Harriet. Aí então ela foi lá e crau: lascou um beijo de verdade no filho de pastor protestante.
Bergman separou-se então de Gun Grut, e passou a viver com Harriet. Fariam juntos vários filmes.
O povo fala de Liz Taylor, mas Bergman teve quase tantos casamentos quanto a maravilhosa estrela. Gun Grut havia sido já a terceira esposa do então rapaz – esposa de papel passado. Depois dela viriam ainda mais duas de papel passado. Cinco – mas isso sem contar a longa ligação com Harriet Andersson, nem a também longa relação com Liv Ullmann.
Nisso também Ingmar Bergman se parecia com François Truffaut. Os dois amaram muitas mulheres.
E, sobretudo, fizeram filmes maravilhosos.
Anotação em outubro de 2018
Monika e o Desejo/Sommaren med Monika
De Ingmar Bergman, Suécia, 1953
Com Harriet Andersson (Monika Eriksson), Lars Ekborg (Harry Lund)
e Dagmar Ebbesen (Fru Lindström, o pai de Harry), Åke Fridell (Ludwig Eriksson, o pai de Monika), Naemi Briese (a mãe de Monika), Åke Grönberg (Verkmästaren), Sigge Fürst (Johan), John Harryson (Lelle),
Roteiro Per Anders Fogelström
Baseado em seu romance
Fotografia Gunnar Fischer
Música Erik Nordgren
Montagem Tage Holmberg e Gösta Lewin
Produção Svensk Filmundistri. DVD Versátil.
P&B, 96 min (1h36)
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Belo comentário sobre esse excelente filme de Bergman! Um abraço.