No início de A Jóia do Nilo, de 1985, sequência do grande sucesso Tudo Por Uma Esmeralda, de 1984, há uma gostosa, interessante brincadeira com o enorme abismo que existe entre a vida e a vida tal como ela é na ficção escapista.
Bem, a própria personagem central da história, Joan Wilder – o papel de Kathleen Turner, bela de matar aos 30 e poucos aninhos – é uma grande brincadeira sobre a dura realidade da vida & a vida na ficção escapista. No comecinho de Tudo Por Uma Esmeralda/Romancing the Stone, Joan Wilder é apresentada ao respeitável público como uma escritora de romances de aventura, de ação, que sempre terminam com a protagonista feliz para sempre com seu amado, um sujeito belo, corajoso, audaz, o protótipo do príncipe encantado.
Joan escreve romances cheios de aventura, ação, romance, e é uma profissional de sucesso, seus livros vendem muito bem, são traduzidos em várias línguas. Mas ela mesma, na vida real, é totalmente o oposto da heroína que criou. É solitária, tímida, reservada, não tem namorado algum – belo ou não, aventureiro ou não, e mal sai de casa. Como bem resume sua grande amiga e editora Gloria (Holland Taylor), Joan é bem capaz de ter enjôo, passar mal, no meio de uma viagem pela escada rolante de uma loja de departamentos.
Joan acaba, eventualmente, viajando para a Colômbia, naquela época, meados dos anos 80, o sinônimo perfeito de terra hostil, cheia de bandidos, de traficantes sanguinários, e lá vive aventuras bem parecidas com aquelas que criava em seus romances escapistas – com direito a conhecer um homem dos sonhos como o dos seus romances, o aventureiro Jack Colton (o papel de Michael Douglas, o produtor dos dois filmes).
Um começo bem inesperado para um filme escapista
Em Tudo Por Uma Esmeralda, Joan e Jack enfrentam todo tipo de perigo possível e imaginável.
Quando a ação de A Jóia do Nilo começa, eles estão no paraíso perfeito, a Côte d’Azur. Passaram semanas e semanas viajando no belíssimo iate que Jack Colton comprou, e agora o iate está ancorado diante de uma daquelas cidades charmosíssimas da Riviera – tão charmosa que nem é especificada qual é. Pode ser Cannes, Nice, qualquer uma delas.
Em um iate ancorado no mar azul do Mediterrâneo, na Riviera Francesa.
Levando a vida que boa parte da humanidade pediu a Deus em seus sonhos mais arrebatados.
E, no entanto, as coisas não vão bem!
Jack está esquiando nas águas azuis e mansas, feliz da vida. Mas Joan, creme cobrindo o nariz que havia ficado exposto a muito sol, está sentada diante da máquina de escrever – e está tendo dificuldade para terminar mais uma aventura da sua heroína.
Em plena Côte d’Azur, no lugar que boa parte da humanidade considera a coisa mais charmosa, bela, fantástica, romântica do mundo, Joan Wilder tem bloqueio criativo. E pergunta a Jack, quando ele se cansa de esquiar e sobe a bordo do maravilhoso iate, quando é que eles irão para Nova York, a cidade dela.
E Jack, espantado, chocado, diz: – “Pensei que você tinha dito que queria velejar em volta do mundo comigo.”
Joan, a escritora de novelas escapistas: – ”Bem, eu quero, mas não tudo nesta semana. Digo, Jack, isso está ficando confuso. Portos exóticos. E grandes festas. E pores-de-sol sensacionais. Não basta!”
Uau! Um filme de ação, aventura e romance, com um lindo casal de atores no auge da beleza dos 30 anos, um filme escapista por definição, um filme escapista até o último milímetro do celulóide que começa com a heroína insatisfeita com o paraíso que conquistou depois de tão duras batalhas!
Um díptico que tem tudo a ver com Le Magnifique
Naquele mesmo dia em que começa a ação de A Jóia do Nilo, há uma festa em um charmosérrimo hotel da Riviera Francesa em homenagem a famosa escritora Joan Wilder. Meio de má vontade, deixando claro que preferiria continuar de short no seu iate, Jack se enfia numa roupa esporte para acompanhar a namorada famosa.
Gloria, a chefe da editora que lança os livros de Joan, amiga dela, vem de Nova York para a festa.
Há um diálogo sensacional entre as duas, a quintessência da gozação sobre os romances e/ou filmes escapistas – ou seria uma consideração bastante profunda, a ser levada bem a sério, a respeito disso?
Joan: – “Meu coração não está mais na coisa. Quer dizer, os romances já não me parecem mais reais.”
Gloria: – “Reais? Você não escreve sobre coisas reais. Você escreve sobre pessoas que velejam para perto da porra do pôr-de-sol lindo!”
Joan: – “Bom, mas e sobre o dia seguinte, quando o sol se levanta?”
Gloria: – “Não existe o dia seguinte! É por isso que é um romance. Você precisa parar de confundir a vida real com uma novela romântica!”
Uau!
Neste início, A Jóia do Nilo me fez lembrar duas obras-primas que falam sobre essa dicotomia vida real x vida rósea na ficção escapista: A Rosa Púrpura do Cairo (1985), de Woody Allen, e O Magnífico (1973), de Philippe de Broca
Na verdade, esses dois filmes, Tudo Por Uma Esmeralda e A Jóia do Nilo, têm bastante a ver com o filme de Philippe de Broca. É bem possível que a jovem Diane Thomas, a criadora da história original e do roteiro do primeiro deles, tenha visto Le Magnifique de de Broca. Se não viu, é uma coincidência fantástica, porque, no filme francês de 1973, há um escritor de livros de ação, aventura e romance, que se imagina vivendo as situações de seu herói – exatamente como Joan Wilder. E Le Magnifique, assim como os dois filmes com a dupla Michael Douglas-Kathleen Turner, brinca o tempo inteiro com essa coisa de vida real x fantasia escapista.
Autora do roteiro de um filme absolutamente delicioso, de imenso sucesso, Diane Thomas teve vida curta, interrompida cedo demais. Seu namorado dirigia o Porsche que ela havia ganho de presente de Michael Douglas; estava bêbado, houve um acidente. Diane Thomas não tinha sequer feito 40 anos.
Uma trama bem doidona, inverossímil
O primeiro filme foi dirigido pelo competentíssimo Robert Zemeckis. Para o segundo, o produtor Michael Douglas se contentou com Lewis Teague, que Jean Tulard define como ‘bom artesão da série B”. Para criar uma nova história com os dois deliciosos personagens criados por Diane Thomas, Jack Colton e Joan Wilder, foram convocados os roteiristas Mark Rosenthal & Lawrence Konner.
Criaram uma história bem doidona, bastante inverossímil. É bem verdade que não se exige verossimilhança em um filme de aventura, ação e romance, o suprassumo do escapismo. Mas a trama bolada por Rosenthal & Konner, que trata de grupos de muçulmanos em luta entre si, e retrata os árabes como seres bem, digamos, bárbaros, roça no desrespeito. Até mesmo para quem, como eu, tem ojeriza por essa bobagem do politicamente correto.
A trama envolve um líder político cruel, assassino, perigoso, que pretende se tornar o chefe de diversos clãs, diversas tribos, um tal Omar (Spiros Focás), e está de posse de uma jóia que tem imenso valor para vários grupos de muçulmanos ali da região do Rio Nilo.
A jóia valorosa atrai as atenções do aventureiro Jack, e de seu inimigo nas aventuras na Colômbia, Ralph – o papel do sempre ótimo Danny DeVito. Mary logo matou que a jóia – ao contrário do que imaginam Jack e Ralph – não era propriamente uma pedra preciosa.
A trama, como muitas vezes acontece em filmes assim, é o que menos importa. Há muita cena de ação, tiros, explosões – e piadas aos montes. Lá pelas tantas, por exemplo, o tal Omar diz para Joan que Jack está morto, e ela responde, de bate-pronto: – “Não seja ridículo. Jack jamais morreria sem me consultar antes.”
Primeiro, calor extremo – depois, gelo
É obrigatório registrar que a dupla Michael Douglas & Kathleen Turner se reuniria mais uma vez – e, mais uma vez, ao lado do baixinho invocado Danny DeVito.
Interessante: me ocorreu, depois de rever agora A Jóia do Nilo, que Kathleen Turner fez dois filmes ao lado de William Hurt nos anos 80. No primeiro, Corpos Ardentes/Body Heat (1981), protagonizaram algumas das mais quentes, arrebatadoras cenas de sexo do cinema americano até então. No segundo, O Turista Acidental (1988), os dois interpretavam personagens frios, gélidos, um casal que chegava ao fim do casamento – e, como diz o poeta, o amor é a coisa mais triste quando se desfaz.
Pois com Kathleen Turner e Michael Douglas aconteceu fenômeno bem semelhante. Fizeram estes dois filmes aqui, aventuras alegres, filmes de puro entretenimento, escapismo absoluto. E depois, em A Guerra dos Roses (1989), um drama apavorante, chocante, interpretam um casal que, ao fim do casamento, parte para a desavença, o combate, a briga, a luta, até mesmo em termos físicos. O filme, dirigido pelo próprio Danny DeVito, é um dos violentos libelos contra o consumismo, o apego às coisas materiais que o cinema americano já fez.
“Não se espera nada de substância”
A Jóia do Nilo não teve tanto sucesso quanto Tudo Por Uma Esmeralda. Não que tenha sido um fracasso – não foi, de forma alguma.
Os números, para comparação: o primeiro filme, de 1984, custou US$ 10 milhões, bem pouco, para os padrões de Hollywood, e rendeu US$ 115 milhões. Baita sucesso. Este aqui custou bem mais, US$ 25 milhões, e rendeu US$ 96 milhões.
Leonard Maltin deu 2 estrelas em 4: “’Alta aventura’ artificial, forçada, envolvendo um potentado mau e uma ‘jóia’ preciosa. Continuação de Romancing the Stone não conseguiu capturar o charme do original, porque os personagens são previsíveis – e as mudanças dos personagens (particularmente o de Turner) foram o que tornava o primeiro filme engraçado. Alguns bons dublês e falas engraças, mas tudo soa falso.”
Roger Ebert deu 3 estrelas, e, como sempre, se alongou bem mais que Maltin. Ebert gostava de ver filmes, gostava dos filmes que via, e gostava de escrever longamente sobre filmes. Não é à toa que tenho por ele imensa admiração.
“The Jewel of the Nile é mais tolice na tradição de Romancing the Stone, que por sua vez era uma engraçada comédia de ação inspirada nos épicos de Indiana Jones. Entramos no cinema esperando absolutamente nada em termos de substância, e é exatamente isso que nos é oferecido, em grande estilo. O filme se parece com os três membros chaves do elenco – Michael Douglas, Kathleen Turner e Danny De Vito— e acrescenta um quarto, uma decisão inspirada de adicionar Avner Eisenberg como um homem santo com uma doce patetice.
“Segundo boatos da indústria do cinema, Kathleen Turner não estava particularmente interessada em fazer essa seqüência, e até mesmo Michael Douglas, que produz e estrela, achava que seria melhor desistir. Mas o contrato original especificava que haveria uma sequência, e todos merecem crédito pelo fato de The Jewel of the Nile é uma tentativa ambiciosa e elaborada de repetir o sucesso do primeiro filme; não é uma imitação barata.”
Grande Maltin!
Sim. Não é um filme tão bom quanto o primeiro, sem dúvida. Mas é gostoso de se ver, é divertido, bem humorado – e que imenso prazer é ver Kathleen Turner. Meu Deus do céu e também da terra, que jóia preciosa é aquela mulher.
Anotação em setembro de 2018
A Jóia do Nilo/The Jewel of the Nile
De Lewis Teague, EUA, 1985
Com Michael Douglas (Jack Colton), Kathleen Turner (Joan Wilder)
e Danny DeVito (Ralph), Spiros Focás (Omar), Avner Eisenberg (Jewel), Paul David Magid (Tarak), Howard Jay Patterson (Barak), Randall Edwin Nelson (Karak), Samuel Ross Williams (Arak), Timothy Daniel Furst (Sarak), Hamid Fillali (Rachid), Holland Taylor (Gloria, a editora), Guy Cuevas (Le Vasseur), Peter DePalma (missionário), Mark Daly Richards (pirata)
Argumento e roteiro Mark Rosenthal & Lawrence Konner
Baseado nos personagens criados por Diane Thomas
Fotografia Jan de Bont
Música Jack Nitzsche
Montagem Peter Bolta e Michael Ellis
Casting Caroline Mazauric e Rose Tobias Shaw
Produção Michael Douglas, SLM Production Group, Stone Group Pictures, Twentieth Century Fox.
Cor, 106 min (1h46)
**1/2
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