O Rei da Comédia, que Martin Scorsese lançou em 1983, é seguramente o único filme da longa carreira de Jerry Lewis em que ele não provoca sequer uma risada na audiência. E o único em que ele – conhecido pelo epíteto de Rei da Comédia – ri e sorri muito, muito pouco.
Jerry Lewis – comediante de rádio, teatro, televisão e cinema, ator, cantor, produtor, diretor, filântropo, mais de 70 filmes na carreira – não me pareceu nada à vontade, neste filme que fez com os garotos geniais que tiveram importante participação na grande revolução do cinema americano nos anos 70, Martin Scorsese e Robert De Niro.
Sim, garotos. Embora não seja tão grande assim, a diferença de idade entre Lewis e Scorsese, 12 anos, e entre Lewis e De Niro, 13 anos, deve seguramente ter contado. A diferença de idade e o tempo de estrada, a quilometragem. Em 1946, quando o diretor tinha 4 anos de idade e o ator 3, Jerry Lewis já trabalhava como comediante em shows ao lado do sujeito que seria seu parceiro ao longo de 17 filmes entre 1949 e 1956, Dean Martin.
Jerry Lewis interpreta um personagem muito parecido com ele próprio, a começar pelo nome, Jerry Langford, um famosíssimo comediante, estrela de um show semanal em uma das grandes redes de TV dos Estados Unidos, transmitido de costa a costa. Ao longo de todo o filme, está sério, sisudo, com a cara amarrada, tenso, nervoso – e não é à toa, de forma alguma. Durante os 109 minutos do filme, Jerry Langford sofre o pesadelo do assédio de fãs apaixonados, obstinados, desesperados, irracionais, tresloucados, malucos. Em especial, de um sujeito mais obstinado, mais desesperado, mais irracional, mais tresloucado, mais maluco que os demais fãs do comediante famosérrimo: um tal de Rupert Pupkin, um tipo que se julga um comediante extraordinário, tão bom quanto seu ídolo.
O Rei da Comédia é a narrativa de como Rupert Pupkin, o fã maluco, persegue o ídolo Jerry Langford de todas as maneiras possíveis, na tentativa de a) ficar amigo dele; b) fazer com que ele leia as piadas que escreve; e c) convencê-lo a permitir que ele, Pupkin, apresente, no show semanal em rede nacional, de costa a costa, um número que vem preparando.
Rupert Pupkin quer mostrar ao mundo que ele é o novo Rei da Comédia.
Ele é interpretado – maravilhosamente – por Robert De Niro.
Scorsese disse depois que fazer este filme foi uma experiência perturbadora
Martin Scorsese afirmou que a interpretação de Robert De Niro em O Rei da Comédia foi a melhor de todas entre os filmes que os dois fizeram juntos. Não sei quando ele fez essa afirmação, mas todos sabemos que Scorsese e De Niro fizeram muitos filmes juntos. Oito, até agora.
Antes deste The King of Comedy, os dois fizeram juntos Caminhos Perigosos/Mean Streets (1973), Taxi Driver (1976), New York, New York (1977) e Touro Indomável/Raging Bull (1980).
Depois, fariam Os Bons Companheiros/Goodfellas (1990), Cabo do Medo/Cape Fear (1991) e Cassino (1995).
Num pequeno (18 minutos) making of de O Rei da Comédia que acompanha o filme no DVD lançado pela Fox, o próprio Scorsese conta – naquela rapidez absurda com que pronuncia as palavras, coisa típica de quem é hiperatrivo – que foi De Niro que mostrou para ele, lá por 1974, uma primeira versão do roteiro do filme, escrito por Paul D. Zimmerman. Scorsese gostou, mas não se entusiasmou muito – talvez por não ser um ator, por não ser propriamente uma figura pública, como o personagem do comediante sempre muito assediado por multidões de fãs onde quer que fosse.
É sempre bom contextualizar: em 1974, quando De Niro mostrou Scorsese o roteiro do que acabaria sendo O Rei da Comédia, os dois eram bem jovens, na faixa dos 30 e pouquíssimos, e estavam explodindo em suas carreiras. Por uma dessas brincadeirinhas do destino, haviam crescido a poucas quadras um do outro, na região do Village, no Sul da ilha de Manhattan, mas só foram se conhecer em 1972; no ano seguinte fariam o primeiro filme juntos, Caminhos Perigosos.
E então, na época em que estava supervisionando a montagem de Touro Indomável, em 1980, Scorsese recebeu de novo de De Niro um toque sobre aquele roteiro. Dessa vez o diretor resolveu fazer o filme.
Mais tarde o grande realizador diria que fazer O Rei da Comédia foi uma experiência “unsettling” – inquietante, perturbadora, desestabilizadora. E talvez tenha sido por isso, porque fazer o filme foi tão emocionalmente extenuante, que ele e De Niro tenham passado sete anos sem trabalhar juntos novamente – até Os Bons Companheiros/Goodfellas, de 1990.
É tudo extraordinariamente bem feito – mas é um filme chato de se ver
Por algum motivo qualquer, ou sem motivo algum, não vi O Rei da Comédia na época de seu lançamento, 1983, embora costumasse ver quase sem falta os filmes de Scorsese e de De Niro. Perdi na época, e só vim ver agora, 2017, o ano em que Jerry Lewis morreu, aos 91 anos de idade (nasceu em 1926, em Newark, Nova Jersey, bem pertinho da Nova York natal de Scorsese e De Niro).
Ainda vou falar de fatos sobre a produção do filme, e da avaliação de grandes críticos sobre ele, mas já dou de uma vez minha opinião em poucos itens:
– É todo perfeitamente bem encenado, bem feito, como tudo o que Martin Scorsese faz;
– É um filme muito chato de se ver, e é fácil explicar por quê: é muito chato de se ver porque o personagem central, Rupert Pupkin, é um chato de galocha. Meu Deus do céu e também da terra, como é chato! É absolutamente insistente, não desiste; é cara de pau – ou não entende os sinais emitidos pelos outros, ou finge que não entende; é repetitivo, incansável. É um pé no saco, a pain in the ass. E De Niro, num desempenho de fato sensacional, brilhante, realça maravilhosamente bem a chatice inaturável do personagem – e então fica chato ver o filme. Quase inaturável.
– Não chega a ser algo original – muito ao contrário. O tema fã fanático (perdão pelo óbvio pleonasmo), obsessivo, compulsivo, que chega às raias da loucura ou a ultrapassa, tem sido longamente explorado pelo cinema. O próprio De Niro trabalhou em um desses filmes, com o título apropriadíssimo de The Fan, no Brasil Estranha Obsessão (1996), de Tony Scott, sobre uma estrela do beisebol (Wesley Snipes) que passa a ser perseguido por um insano – feito pelo próprio De Niro.
Em Louca Obsessão/Misery (1990), de Rob Reiner, com base em novela de Stephen King, um famoso escritor (James Caan) sofre um acidente de carro e é socorrido por uma fã (Kathy Bates) – e logo descobre que sua salvadora vai transformar sua vida num inferno.
Nesse filme, Lauren Bacall tem um papel menor. Anos antes, ela havia interpretado uma atriz que se vê vítima de um fã, interpretado por James Garner, em O Fã – Obsessão Cega/The Fan (1981).
Não é o caso de se pedir originalidade absoluta dos filmes; há temas que se repetem mesmo – e essa coisa de uma pessoa famosa ser vítima da perseguição absurda de um fã alucinado é importante, e merece mesmo ser mostrada. Só citei esses outros filmes aqui para mostrar que O Rei da Comédia tem seus similares bem similares.
– E, finalmente, achei que O Rei da Comédia tem uma grande semelhança, uma íntima proximidade com Taxi Driver, um dos filmes mais importantes das carreiras tanto de Scorsese quanto de De Niro. Falar dessa semelhança, dessa proximidade, no entanto, é spoiler, e então vou deixar esse item para o fim da anotação.
Scorsese botou no filme o pai, a mãe, a filha e vários amigos
O Rei da Comédia é um filme com muitas cenas improvisadas. E com muitas participações especiais (cameo roles, como se diz em inglês), de parentes e amigos de Scorsese e também de pessoas famosa que fazem o papel delas mesmas, e com muitas cenas improvisadas.
É o que mostra a página de Trivia do IMDb sobre o filme. Foi dela que retirei boa parte das informações interessantes abaixo.
* Quem faz a voz da mãe de Rupert Pupkin é a mãe de Martin Scorsese, a dona Scorsesona, como a gente diria no bar depois do fechamento da edição. A voz da mãe de Rupert aparece várias vezes, quando o filho, em casa, em Nova Jersey, ensaia seus números cômicos. De longe, a voz da mamma tenta chamar o sujeito do mundo da Lua para o planeta Terra: “Rupert, fale mais baixo!”; “Rupert, está na hora de dormir”; “Rupert, não vá chegar atrasado no serviço”. É muito divertido saber que a voz da razão é a voz de dona Catherine Cappa, depois Catherine Scorsese, por seu casamento com Charles Scorsese.
* Charles Scorsese, o pai do realizador, aparece na cena do bar, bem no final do filme, quando Rupert vai mostrar seu momento de glória para a garçonete por quem era apaixonado desde sempre, Rita (o papel de Diahnne Abbott, sobre quem é preciso falar no mínimo um parágrafo). Scorsese pai é um dos fregueses do bar, sentado diante do balcão.
* Cathy Scorsese – um dos três filhos que o realizador teve em seus cinco casamentos até agora – faz o papel de Dolores, uma moça que se aproxima da mesa de bar em que estão conversando amigavelmente Rupert, o fã, e Jerry, o ídolo, e recebe um autógrafo do primeiro. A sequência é uma das várias em que vemos uma alucinação, visão, sonho de Rupert – algo muito longe da realidade.
* O já então veterano ator Tony Randall, que fez tantas comedinhas românticas nos anos 50 e 60, faz o papel dele mesmo como um convidado do Jerry Langford Show. Outros que representaram a si próprios no programa ou nos ensaios para o programa são Lou Brown, como o band leader; Victor Borge, como um convidado; Federick De Cordova, produtor de cinema e de TV, no papel de produtor do show do comediante; Ed Herlihy, como o locutor que faz a introdução do show; Joyce Brothers, como convidada; Edgar J. Scherick, também produtor de cinema e TV, que faz o presidente da rede de TV.
* Scorsese escalou também amigos e conhecidos para aparecer como figurantes no filme. Mardik Martin, um amigo, aparece no balcão do bar, na cena bem perto do final da narrativa.
Na sequência em que Rupert e Masha (Sandra Bernhardt), outra fanática louca, discutem na rua, há algumas pessoas que gozam a moça. São participações especiais de Mick Jones, Joe Strummer and Paul Simonon, da banda The Clash. Scorsese tem estreita ligação com a música, do rock ao pop.
E o próprio Scorsese faz não uma, mas duas participações especiais como figurante. Numa das cenas do final do filme, ele aparece como um executivo da rede de TV. E, numa cena em que Jerry Langford está andando numa rua de Manhattan, sozinho, sem assessor, sem um segurança, Scorsese aparece numa van.
Uma sequência foi toda sugerida e dirigida por Jerry Lewis
Essa sequência de Jerry Langford-Jerry Lewis, famosérrimo, andando na rua, é muito impressionante. Ele passa por uma senhora idosa que está falando ao telefone. Ao vê-lo, a mulher o chama, pede para que ele diga alguma palavrinha com a filha dela, com quem está falando ao telefone. Quando Jerry se distancia dela, sem atende-la, a mulher, frustrada, enraivecida, grita: – “Espero que você fique com câncer.”
Consta que um incidente assim aconteceu de verdade com Jerry Lewis. Segundo Scorsese contou em entrevista, essa sequência foi toda dirigida pelo próprio Jerry Lewis.
Scorsese estimulava os atores a improvisar – e eles improvisaram. Por exemplo: a sequência – irritante, desagradável, chata – em que Rupert leva Rita à casa de praia de Jerry Langford, mentindo para ela que havia sido convidado, teve várias improvisações. Kim Chan, que interpreta o mordomo chinês do humorista, de fato se atrapalhou e demorou a conseguir abrir a porta da frente da mansão para Jerry. A câmara estava rolando – e consta que Jerry Lewis improvisou a reação de Jerry Langford, reclamando da demora do mordomo.
Diahnne Abbott faz a garçonete por quem o personagem de De Niro é apaixonado
A enumeração de histórias curiosas, interessantes, curiosas, sobre o filme, poderia continuar por quilômetros de texto. A página de Trivia do IMDb sobre o filme tem 66 itens. Por imensa preguiça, não vou sequer ler todas elas.
Mas gostaria de registrar dois pontos que acho importantes: Robbie Robertson e Diahnne Abbott.
Robbie Robertson foi o guitarrista principal e o autor de boa parte das canções da The Band, que acompanhou Bob Dylan do final dos anos 60 até meados dos 70, e teve carreira solo importante. Foi uma bela e profícua amizade, a de Robertson e Scorsese. O realizador assinou o ótimo documentário sobre o concerto final da banda, The Last Waltz, de 1978. E Robertson assinou a trilha sonora de vários dos filmes dele – inclusive deste The King of Comedy.
A trilha de Robertson é muito boa – e ele incluiu como música incidental, que toca no ambiente em que estão os atores, pérolas de Ray Charles, Pretenders, Frank Sinatra, Talking Heads, Van Morrison.
Diahnne Abbott. Diahnne Abbott, uma mulher grande, bela, pele maravilhosamente cor de chocolate, interpreta Rita, garçonete de um bar, que Rupert ama desde sempre, desde o ginásio, embora não tenham se visto desde então. Lá pelo meio do filme ele vai visitar Rita e tentar conquista-la.
Jamais tinha ouvido falar em Diahnne Abbott.
12 títulos na filmografia – pequena participação em Taxi Driver (1976), outra pequena participação em New York, New York (1977), dois filmes de Scorsese com De Niro.
Diahnne Abbott foi senhora Robert De Niro entre 1976 e 1988. Ele adotou a filha dela de um casamento anterior, e os dois tiveram um filho.
Atenção: o trecho abaixo é spoiler. Revela-se o final da história
Para falar da semelhança entre O Rei da Comédia e Taxi Driver, é necessário avisar que aqui vai spoiler. Vou falar do finalzinho do filme. Portanto, o eventual leitor que ainda não tiver visto O Rei da Comédia deveria parar por aqui – ou pular para o próximo intertítulo.
Em Taxi Driver, Travis, o personagem de Robert De Niro, um sujeito desajustado, desarranjado, psicopata, se prepara para cometer um atentado contra um político; por acaso, simplesmente por acaso, acaba se desviando do plano e cometendo atos que o transformam em herói.
Em O Rei da Comédia, esse Rupert, o personagem de Robert De Niro, um sujeitos desajustado, desarranjado, meio doido, comete um crime: com a ajuda da amiga Masha, sequestra e prende por algumas horas o seu ídolo Jerry Langford, para poder aparecer no show dele na televisão. Consegue aparecer na TV, faz o maior sucesso, vira herói, sensação nacional.
Nos dois filmes, o acaso acaba levando o protagonista – que está pronto para cometer um crime – a virar uma celebridade.
“Um agonizante retrato de pessoas solitárias, raivosas”
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4 e diz que que é uma pungente comédia de humor negro sobre um perdedor que adora um comediante e imagina um esquema bizarro de aparecer no programa. “O desenlace é um uau! Mordente e ‘doente’ para o gpsto der muitos espectadores, embora tudo seja feito com um mínimo de exagero… e atuações maravilhosas de De Niro e Lewis”.
Tenho um problema sério com a coisa de humor negro. Não consigo entender humor negro. Não sou capaz de compreender o que é isso. Ao ver o filme, não tinha idéia de que aquilo fosse humor negro. Na verdade, não vi humor algum – vi só o negror das situações dramáticas, trágicas.
O grande Roger Ebert deu 3 estrelas em 4, e começa seu texto assim:
“The King of Comedy de Martin Scorsese é um dos filmes mais áridos, dolorosos, feridos que já vi. É difícil acreditar que Scorsese o fez; em vez da vida da grande cidade, a violência e o sexualidade de seus filmes como Taxi Driver e Mean Streets, o que vemos aqui é um agonizante retrato de pessoas solitárias, raivosas. Este é um filmer que parece prestes a explodir – mas de alguma maneira ele nunca explode.”
Grande Roger Ebert.
Grande Jerry Lewis.
Anotação em dezembro de 2017
O Rei da Comédia/The King of Comedy
De Martin Scorsese, EUA, 1982
Com Robert De Niro (Rupert Pupkin), Jerry Lewis (Jerry Langford)
e Diahnne Abbott (Rita Keane), Sandra Bernhard (Masha), Shelley Hack (Cathy), Margo Winkler (a recepcionista), Ed Herlihy (ele mesmo), Lou Brown (ele mesmo), Tony Randall (ele mesmo), Frederick de Cordova (ele mesmo), Ralph Monaco (Raymond Wirtz), Bill Minkin (McCabe), Kim Chan (Jonno, o mordomo), Catherine Scorsese (a voz da mãe de Rupert), Charles Scorsese (homem no bar), Joe Strummer (sujeito na rua), Martin Scorsese (diretor de TV), Doc Lawless (motorista)
Argumento e roteiro Paul D. Zimmerman
Fotografia Fred Schuler
Música Robbie Robertson
Montagem Thelma Shoonmaker
Casting Cis Corman
Produção Embassy International Pictures, 20th Century Fox. DVD Fox.
Cor, 109 min (1h49)
***
Eu por acaso vi o filme quando saiu e gostei mas não muito. Concordo que é difícil engraçar com ele.
É um filme triste e amargurado e de comédia não tem nada.
E é também uma crítica feroz à mania da celebridade a todo o custo, em especial na televisão.
Foi exatamente o que senti, caríssimo José Luís.
Nós dois concordamos em muitos temas.
Um grande abraço.
Sérgio
Coincidência, também assisti esse filme pela primeira vez pós-falecimento do Lewis. Seu texto é maravilhoso, como sempre.
Eu não me lembro muito do filme, mas acho que o fã da Bacall era o Michael Biehn, embora o MARAVILHOSO Garner lá estivesse também.
Mas
Mas
Mas
eu preciso dizer que não consegui ler seu texto todo de uma vez. Precisei parar e me recuperar do ataque de riso e engasgo quando li DONA SCORSESONA.
“DONA SCORSESONA” HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
O filme realmente é um pouco difícil, mas as interpretações de Robert De Niro e Jerry Lewis, mereciam uma indicação ao Oscar e Jerry deveria ter levado, mas são coisas do Oscar mesmo né!!!!