Quem não gosta de filmes previsíveis deve passar bem longe de And So It Goes, no Brasil Um Amor de Vizinha, que o veterano e sempre bom Rob Reiner lançou em 2014. Afinal, é uma comedinha romântica, e comedinhas românticas são necessariamente previsíveis.
Mas Um Amor de Vizinha exagera um pouco no quesito previsibilidade. O protagonista da história, Oren Little (interpretado por Michael Douglas), é um sujeito antipático, chato, desagradável, irritante, egoísta a não mais poder – o típico sujeito sem coração, ou de coração duro como pedra. E esta é uma lei de que nenhum filme – em especial os filmes americanos, mais em especial ainda as comedinhas românticas americanas – jamais foge: quando no começo da história o protagonista é sem coração, ou de coração duro como pedra, no fim ele ficará bonzinho. O coração de pedra vai amolecer.
Tinha sido exatamente assim no filme anterior de Rob Reiner, O Reencontro/The Magic of Belle Isle (2012). Nos primeiros cinco, dez minutos de filme, vemos um sujeito mal humorado, crispado, chato, de mal com a vida, com o mundo. É o personagem interpretado por Morgan Freeman, esse ícone, esse gigante, de imenso talento, rosto belo e uma voz personalíssima, inigualável, reconhecível à primeira palavra que pronuncia. Além de tudo, Monte Wildhorn, o personagem de Morgan Freeman, bebe demais da conta, em quantidades industriais.
Ao final do filme, está de bem com a vida e com o mundo.
Não tenho nada contra histórias previsíveis. Muito menos com realizadores que gostam de contar variações da mesma história.
Um Amor de Vizinha é um filme divertido, agradável, gostoso, que só passa para o espectador coisas boas, bons valores. A boa e velha ode à solidariedade entre as pessoas, ao respeito aos diferentes, às disparidades. E/ou, como bem diziam os Beatles, money can’t buy me love, e all you need is love.
E além de tudo isso ainda tem Diane Keaton.
Até para colocar flores no túmulo da mulher o personagem é chato, rabugento
Rob Reiner abre seu filme com um fascinante plano-sequência, feito com a câmara num helicóptero ou num drone, passando sobre uma região litorânea com muito verde e boas casas. Não se identifica o lugar, não se fala hora alguma em nome de cidade, mas dá para imaginar que seja Costa Leste, parte Norte, tipo Connecticut ou Massachusetts.
A câmara vai sobrevoando o lugar belo, gostoso, enquanto vão rolando os créditos iniciais. Deixa o litoral, entra um pouquinho mais para o continente, focaliza uma estrada – vemos um Mercedes conversível, com Michael Douglas, cabelos já quase inteiramente brancos, ao volante. Quando o nome de Rob Reiner aparece, encerrando os créditos iniciais, o Mercedes está entrando num cemitério.
Com um buquê de flores na mão, o personagem de Michael Douglas, Oren Little, vai subindo uma colina no belo cemitério até chegar no topo, onde está o túmulo de Sarah Elizabeth. A primeira frase que o espectador ouve Oren Little pronunciar é uma reclamação dirigida a Sarah Elizabeth, tipo por que raios seu túmulo tinha que ficar tão longe e tão no alto?
Até para depositar flores junto do túmulo da mulher o cara é rabugento!
Depois da visita ao cemitério, Oren vai até uma belíssima casa, no meio de gostosa área verde. Na grama, um grande cachorrão preto está fazendo cocô. Oren pega no porta-malas do Mercedes uma metralhadora e atira no cão – é uma metralhadora de brinquedo, dessas que se usam naqueles parques de paintbrush. Uma mancha de tinta amarela se espalha no pêlo do animal.
Em seguida, Oren está mostrando o interior daquela bela mansão a um casal de possíveis compradores. Vai recitando tudo o que o imóvel tem, as marcas dos equipamentos da cozinha.
Não admite que os potenciais compradores façam qualquer tipo de proposta, barganha, pechincha: o preço do imóvel é US$ 8,6 milhões, e pronto. Oito ponto seis, ele diz, firme como uma rocha.
O protagonista ganhou muito dinheiro na vida, tinha uma casa esplêndida
Ao longo aí dos primeiros 20 minutos do filme, o espectador fica conhecendo alguns fatos básicos a respeito desse Oren Little. É um corretor de imóveis, e tem um histórico de corretor de imóveis de extrema competência – tanto que ganhou muito dinheiro na vida, o suficiente para ter aquela mansão que agora está à venda.
Trabalha há décadas numa imobiliária que hoje pertence a Ted (Andy Karl), moço aí de uns 30 e poucos anos, neto do fundador – que havia sido o primeiro patrão de Oren. Ted e o empregado veterano não se dão nada bem. Mas Oren tem com a avó do moço, Claire (Frances Sternhagen, na foto acima), que também trabalha na imobiliária, uma boa, sólida relação um tanto de amor e ódio. Os diálogos entre Oren e a velha senhora, um sempre contradizendo o outro, agredindo suave e amistosamente o outro, são deliciosos.
Pouco tempo antes do início da ação, Oren havia perdido Sarah Elizabeth, morta depois de longa batalha contra o câncer. Tinha resolvido, então, pôr a grande casa à venda; construiu um conjunto de pequenas casinhas geminadas, ao qual deu o nome em tudo por tudo irônico de Little Shangri-La. Ocupou uma das casinhas, e alugou as demais.
Mantém, com seus vizinhos e inquilinos, uma relação seca, dura. Todos eles o consideram insuportável – e estão cobertos de razão.
Entre os vizinhos, há um casal de negros, Ray, um policial, e Kennedy (Maurice Jones e a bela Yaya DaCosta), uma jovem mãe de dois garotos, Kate (Annie Parisse), e, at last but not at least, Leah, o papel de Diane Keaton, gloriosamente linda aos 68 anos de idade.
O filme primeiro nos apresenta os dois protagonistas. O problema só vem depois
Leah – o espectador vai ficar sabendo pouco a pouco – é viúva de Eugene, morto uns quatro anos antes do início da ação. Ganha algum dinheirinho cantando nos fins de semana em um barzinho da cidade. Canta – com uma voz pequena mas afinada, doce – basicamente standards da Grande Música Americana, como “Cheek to Cheek”, “Blue Moon”. A canção mais recente de seu repertório era “The Shadow of Your Smile”, composta por Johnny Mandel e Paul Francis Webster para a trilha sonora do filme The Sandpiper, no Brasil Adeus às Ilusões, de 1965.
As canções escolhidas por Leah para cantar no barzinho são belas, mas em geral tristes, e então muitas vezes ela não consegue chegar até o final: fica embargada e acaba chorando – de solidão, de saudade do marido morto, por pura sensibilidade diante da canção, ou todos os motivos juntos e mais alguns.
E, entre uma música e outra, fala um pouco com a platéia – de coisas tristes, memórias, o marido morto.
O roteiro de Mark Andrus – roteiro original, história criada diretamente para o filme – nos apresenta os dois personagens centrais, o casca grossa Oren e a doce Leah, antes de introduzir o tema mais espinhoso, complicado, complexo: de repente, de forma totalmente inesperada, Oren fica sabendo não apenas que tem uma neta de 10 anos incompletos, como também que terá que ficar cuidando dela.
Luke (Scott Shepherd), seu filho único, reaparece depois de muitos anos – e reaparece na pior situação possível. Ele entra na mansão que foi da família no momento em que o pai e o patrão Ted estão mostrando o imóvel para outro casal de possíveis compradores. O casal acaba indo embora dali às pressas.
Veremos que Luke sempre foi um filho problemático. Envolveu-se com drogas desde bem cedo. No dia do enterro da mãe, apareceu tão drogado que levou um tombo e rolou colina abaixo no cemitério, acabando por bater o rosto numa lápide.
O pai não gosta dele. Nunca gostou.
E então Luke comunica a Oren que a) está para ser preso, por um período que poderá ser de apenas 6 meses, se tudo der certo e ele tiver bom comportamento; b) que não tem com quem deixar sua filha de 9 anos, quase 10; e c) ele não está mais drogado, está limpo há muito tempo.
A notícia boa não serve para amolecer nada o coração de pedra do pai. Oren diz que não tem condições de receber uma criança.
Mas Luke de fato não tem outra opção. E um belo dia simplesmente deixa a pequena Sarah (Sterling Jerins) com uma mala e uma mochila, mais aquele cão grandão que já havíamos visto bem no início do filme, no gramado diante das pequenas casas de Little Shangri-la.
Oren dá dicas para Leah: que ela não chore ao cantar; que não conte histórias tristes
É aí que entra o que dá o título do filme no Brasil, Um Amor de Vizinha. Oren simplesmente não sabe o que fazer – e Leah toma as rédeas da situação, pega a pequena Sarah, leva-a para dentro da sua casa, conversa com ela. Rapidamente ganha a confiança dela.
Sarah passará os primeiros dias, as primeiras noites, as primeiras semanas não com o avô, mas com o amor de vizinha que ele felizmente tem – e que a garota logo passa a chamar de avó.
A atriz Sterling Jerins é um encanto – e a netinha do homem de coração de pedra também. Vai levar tempo, mas o coração de pedra vai amolecer.
Auxilia no processo de humanização de Oren o encanto que é sua vizinha. Inevitavelmente haverá uma ligação entre os dois personagens centrais da história. Uma ligação difícil, é claro, como é preciso ser para que haja uma boa comédia romântica.
Mesmo antes de haver algo mais entre os dois, Oren vai dar algumas dicas a Leah sobre suas apresentações no bar. Oferece-se para ser o agente dela, e sugere que ela deveria evitar contar histórias tristes entre uma canção e outra – as pessoas vão para os bares para esquecer seus problemas, e não para ouvir os problemas dos outros. Deveria evitar chorar ao final de cada canção. Deveria incluir no repertório algumas músicas mais recentes. Ah, sim, e seria bom cuidar melhor das roupas que usa.
Leah a princípio protesta. Mas vai dar certo. Quando já estamos mais para o final da narrativa, Oren arranja para ela um teste num casa noturna mais rica, com a possibilidade de um salário muitíssimo maior do que o que recebia antes.
A curiosidade é que o dono do novo bar é interpretado, numa participação especial, por Frankie Valli, que foi o vocalista do grupo The Four Seasons, tremendo sucesso nos anos 60 e 70, e que teve sua trajetória mostrada no belo Jersey Boys, que Clint Eastwood lançou em 2014.
É isso. Um filme gostoso, que defende bons valores. Mais um bom filme de Rob Reiner, um sujeito que só faz bons filmes.
Anotação em janeiro de 2017
Um Amor de Vizinha/And So It Goes
De Rob Reiner, EUA, 2014
Com Michael Douglas (Oren Little), Diane Keaton (Leah)
e Sterling Jerins (Sarah), Annie Parisse (Kate), Austin Lysy (Kyle), Michael Terra (Peter), Sawyer Tanner Simpkins (Dylan), Maxwell Simkins (Caleb), Maurice Jones (Ray), Yaya DaCosta (Kennedy), Scott Shepherd (Luke, o filho de Oren), Andy Karl (Ted), Frances Sternhagen (Claire), Frankie Valli (o dono do night club), Luke Robertson (Jason)
Roteiro Mark Andrus
Fotografia Reed Morano
Música Marc Shaiman
Montagem Dorian Harris
Casting Laura Rosenthal
Produção Castle Rock Entertainment, ASIG Productions, Envision Entertainment, Foresight Unlimited, Knightsbridge Entertainment.
Cor, 94 min
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