Stage Fright, no Brasil Pavor nos Bastidores, de 1950, é da fase em que Alfred Hitchcock tinha assinado um contrato com a Warner Bros, depois de ter trabalhado para o produtor David O. Selznick, que o importou de Londres para Hollywood.
Foi seu filme de número 13 nos Estados Unidos – o primeiro havia sido Rebecca, A Mulher Inequecível, de 1940. Logo depois dele viriam Pacto Sinistro (1951), A Tortura do Silêncio (1953), Disque M para Matar (1954), o último para a Warner, e Janela Indiscreta (1954), o primeiro para a Paramount.
Veio logo depois do terceiro e último dos filmes que fez com Ingrid Bergman, Sob o Signo de Capricórnio (1949) – um fracasso de público e crítica. E foi seu primeiro e único filme com outra das grandes divas do cinema mundial, Marlene Dietrich. Marlene trabalharia sete anos mais tarde, em 1957, em outro filme absolutamente hitchcockiano, Testemunha de Acusação – só que dirigido por outro grande, Billy Wilder.
Marlene tem um dos quatro papéis mais importantes em Pavor nos Bastidores, mas a principal personagem da história é interpretada por uma atriz excelente, em uma atuação primorosa, mas que, bem diferentemente de Ingrid e Marlene, nunca foi propriamente uma estrela de primeira grandeza, uma diva – Jane Wyman.
A escolha das duas atrizes não poderia ser mais adequada.
Jane Wyman (1917-2007) é bonita, tem um jeito simpático, delicado, gostoso – mas não é aquela coisa extasiante, enlouquecedora, de fechar o comércio, de deixar loucos homens e mulheres. Tem aquele jeitinho de pessoa comum, da vizinha, da mulher da esquina – algo como, mais recentemente, Sandra Bullock incorporou.
Marlene Dietrich (1901-1990), bem ao contrário, é daquele tipo que entorta o pescoço das pessoas na rua, entorta casamentos, relações, que faz as pessoas jogarem no lixo certezas, promessas de amor eterno.
Jane Wyman faz Eve, uma gracinha de pessoa, uma mulher que está disposta a fazer de tudo para ajudar o homem que ama.
Marlene Dietrich faz Charlotte, “a quintessência da mulher má”, o retrato do mal em si, a femme fatale, a mulher que, como a viúva-negra, atrai os homens para a sua teia, usa tudo o que eles podem dar e depois jogam o bagaço no lixo.
É tido como “um Hitchcock menor”. É uma delícia, uma maravilha
Pavor nos Bastidores não é tido como um grande filme. Ao contrário: parece ser um entendimento quase unânime de que este é um Hitchcock menor. O próprio diretor falou muito mal dele.
Sempre gostei do filme, mas há muito tempo não o revia. Ao rever agora, fiquei absolutamente maravilhado. É uma delícia, é uma maravilha de filme. Tem uma trama interessante, belos personagens, maravilhosas atuações, movimentos de câmara de fazer a gente querer ficar de pé e aplaudir como na ópera, um bom humor absolutamente no ponto certo. E ainda por cima foi capaz de ensejar uma das polêmicas mais engraçadas da História do cinema e da crítica de cinema. Sobre a polêmica, no entanto, só vou falar bem mais adiante, e depois de avisar que é spoiler.
O filme é, como já foi dito, o 13º da fase americana, mas a ação se passa na cidade em que Hitch iniciou a carreira, a capital do Império Britânico. E o elenco é cheio de atores ingleses; americana, só Jane Wyman. Disseram, e talvez com razão, que quando fez Pavor nos Bastidores o velho Hitch estava com um pouco de saudade de sua pátria.
A primeira coisa que o espectador vê, antes ainda do logotipo da Warner Bros. e dos rapidíssimos créditos iniciais, é uma cortina de teatro em que está escrito “cortina de segurança”.
Enquanto rolam os créditos, a cortina vai sendo levantada, para que o espectador veja uma tomada geral de Londres, ainda com marcas dos bombardeios nazistas da Segunda Guerra Mundial terminada cinco anos antes, e a gigantesca Catedral de St. Paul dominando o quadro.
E logo em seguida vemos um carro em disparada pelas ruas de Londres. Uma mulher dirige – é Eve, a personagem de Jane Wyman. No banco do carona está um homem, Jonathan Cooper (o papel de Richard Todd). Jonathan toda hora olha para trás, e o espectador entende de cara: o casal está fugindo da polícia.
Depois de breves e intensos 2 minutos de filme, começa um flashback
Na primeira tomada em que há ação, vemos um casal fugindo da polícia bem no meio de Londres! Isso é que é abrir um filme em tom maior, na nota mais alta da escala.
Plano médio. Vemos a mulher ao volante e o homem no banco de carona do peito para cima, no carro.
Eve: – “Algum sinal da polícia?”
Jonathan (que havia acabado de olhar para trás): – “Nenhum. Vamos nos livrar.”
Eve: – “Ótimo.”
Jonathan: – “Quanto tempo levaremos até o barco?
Eve: – “Com sorte, duas horas. Acho que você tem sorte. (Rápida pausa.) Agora você poderia me contar o que houve. Gostaria muito de saber. Se você estiver com vontade de contar.”
Jonathan: – “É Charlotte Inwood.”.
Eve: – “Oh…”
A expressão de Eve muda completamente. Fica sombria – e, com menos de 3 minutos de filme, o roteiro escancara para o espectador um monte de informações. Eve está ali dirigindo seu carro, ajudando Jonathan a escapar da polícia. Eve, portanto, ama o sujeito – mas o sujeito conta para ela naquele momento que está fugindo da polícia por causa de uma outra mulher.
E aí repito a frase: isso é que é abrir um filme em tom maior.
Jonathan: – “Ela está encrencada.”
Eve: – “Não me surpreende.”
Tipo assim: essa mulher é encrenca. Tudo que ela faça é encrenca, tudo em que ela encosta vira encrenca.
Jonathan: – “Mas é sério, Eve. É muito sério. Ela estava histérica. Tive que ajudá-la. Qualquer um faria isso. Eu estava na minha cozinha, por volta das 5…”
E aqui começa um flashback. O flashback. The flashblack.
Vamos ver na tela o que Jonathan está relatando para Eve, a mulher que gosta demais dele e que ele procurou para ajudá-lo a fugir da polícia.
Jonathan está na cozinha da casa dele. A campainha toca. Ele desce a escada – é uma casa bem pequena, mas de dois andares. Enquanto ele desce a escada, a câmara vai se abaixando, para mostrar as pernas de Jonathan descendo.
Jonathan abre a porta – e o espectador vê os pés, o iniciozinho das pernas que veremos logo que são de Marlene Dietrich, as pernas que eram as mais famosas do planeta na época em que o filme foi lançado. Mas naquele momento, naquela tomada, a câmara voltada para baixo, mostrando a visitante que chegava ao apartamento de Jonathan só dos pés até a altura dos joelhos, o que interessa não são as pernas dela, as mais famosas do planeta.
O que interessa é que o vestido claro, comprido, que chega até bem abaixo dos joelhos de Charlotte Inwood exibe uma gigantesca marca escura.
O filme é em preto-e-branco, e então o que vemos é uma gigantesca mancha escura, mas é óbvio que é uma mancha vermelha, do vermelho mais vivo que há, o veneno de sangue fresco.
E então Charlotte Inwood, com aquela voz rouca, sensual, de dar tesão em frade de pedra que era marca registrada de Marlene Dietrich, diz:
– “Johnny, você me ama. Diga que você me ama. Você me ama, não é?”
Jonathan é o suspeito óbvio do assassinato da bela Charlotte, a femme fatale
A história que Jonathan conta para Eve – e que o espectador vai vendo, no flashback – é esta. Charlotte chegou à casa dele com o vestido com uma imensa mancha de sangue; contou que tinha discutido com o marido, que o marido a provocara, a deixara furiosa, e então ela tinha pego alguma coisa… e tinha batido nele… e achava que ele estava morto.
E ela não sabia o que fazer.
Charlotte era uma atriz de musicais, assim uma espécie de vaudeville chique. Teria que se apresentar daí a algumas poucas horas. Jonathan diz que ele precisa ir para o teatro – não ir seria como uma confissão do crime.
Mas como ela vai fazer, com aquele vestido todo manchado de sangue?
Jonathan, apaixonado por aquela viúva-negra, aquela femme fatale, diz que vai até a casa dela pegar um outro vestido, enquanto ela espera ali na casa dele.
E ele assim faz, e o flashback o mostra indo até a casa da mulher por quem estava apaixonado, e pegando um vestido limpo, e…
Ao sair da casa, Jonathan é visto pela empregada de Charlotte, uma tal Nellie Goode (Kay Walsh).
E então é simples: a polícia soma 1 mais 1 e dá 2: o assassino do marido da famosa Charlotte Inwood foi Jonathan Cooper, ator sem brilho, que testemunhas dizem ser terrivelmente apaixonado pela estrela. Ele foi visto pela principal testemunha, a criada que foi a primeira a encontrar o corpo da vítima.
Para tentar inocentar o amado, Eve se aproxima do policial que investiga o crime
A garota simpática, boa gente, apaixonada pelo sujeito que está apaixonado pela mulher má, má, má, leva o cara para a casa do pai dela, no litoral. O pai, o comodoro Gill (interpretado pelo ótimo Alistair Sim), marinheiro que no passado andou contrabandeando umas caixas de conhaque para dentro da principal das Ilhas Britânicas, é uma figuraça. Terá importância fundamental na história.
Eve estuda na excelsa, augusta Royal Academy of Dramatic Arts. Não tem ainda experiência no palco, mas confia em seu talento. Resolve tentar se aproximar da cena do crime, imaginando que assim terá elementos para descobrir o que de fato aconteceu, incriminar a rival Charlotte e inocentar o amado Jonathan.
Consegue chegar perto do detetive-inspetor da Scotland Yard que está investigando o caso, Wilfred Smith (o papel de Michael Wilding). Estabelece uma relação com ele – uma relação que vai longe. E, paralelamente, consegue negociar com Nellie Goode, a tal empregada de Charlotte, que irá substituí-la durante alguns dias, sob o pretexto de que Nellie ficou doente e então indicou a prima para ficar em seu lugar – sendo a prima uma personificação da rica Eve como uma londrina pobre, com o nome de Doris.
Uma beleza de trama, ótimas atuações, maravilhosa câmara, momentos antológicos
Uma mulher bonita, simpática, que tenta proteger o homem que ela ama – mesmo sabendo que o homem estava por sua vez tentando proteger a mulher que ele ama, e que muitíssimo provavelmente matou o marido e armou para que o Pato fosse pego pela polícia.
E a mulher simpática ainda vai se envolver com o detetive que investiga o caso.
Eis aí sem dúvida uma ótima trama.
Uma ótima trama. Ótimos atores, em grandes interpretações. A câmara de Alfred Hitchcock, fazendo maravilhosos movimentos – desde aquele inicial, em que, ao descer as escadas do apartamento de Jonathan, focaliza antes de tudo os pés, as pernas e o vestido manchado de sangue de Charlotte, a mulher má.
Tem ainda todas as citações ao teatro, os paralelos entre a vida real e atuação de atores no palco – a começar daquela primeira tomada, a cortina do teatro que se abre no começo do espetáculo. Aquela coisa de realçar que o que vai se ver em seguida não é uma história da vida real, não é a realidade – é uma representação, uma ficção. Peter Bogdanovich, um dos grandes conhecedores da obra de Hitchcock, realça isso, o artificialismo da história, o artificialismo de tudo no filme, sem pejo algum por isso, muito ao contrário.
Eve é uma estudante de arte dramática, moça educada, de família de meios, como se dizia lá naquela época, que vai interpretar o papel da prima de uma empregada pobre, trabalhando justamente para uma atriz de teatro musical que parece estar interpretando Marlene Dietrich o tempo todo.
Wilfred Smith, o detetive-inspetor, vai acusar a pobre Eve, quando a narrativa já se aproxima do fim, de ter tido uma belíssima atuação ao fingir que estava se apaixonando por ele – e Eve terá dificuldade, naquele momento, de convencê-lo de não era assim, de que naquele momento ela não estava interpretando um papel, estava sendo ela mesma.
E todo esse jogo entre vida e teatro, entre a verdadeira face das pessoas e a atuação teatral, ainda será realçada nas duas sequências envolvendo palco de teatro, atmosfera de teatro – aquela em que Charlotte Inwood-Marlene Dietrich canta “La Vie en Rose”, e o Comodoro aparece com a boneca com o vestido manchado de sangue, e a longa, extasiante sequência final, em que Jonathan tira a máscara que usara até então e mostra seu verdadeiro rosto para o espectador e a aterrorizada Eve – e que maravilha aqueles close-ups do rosto de Jane Wyman em que vemos uma faixa clara iluminando apenas a região dos olhos absolutamente abertos pelo pavor.
Marlene canta a canção safada de Cole Porter sensualíssima, pés descalços
E ainda há, de quebra, como se tudo o que já se falou acima não bastasse, a sequência em que Charlotte Inwood-Marlene Dietrich canta “The laziest gal in town”, a canção safada do safadíssimo Cole Porter.
Marlene está cobertíssima com um vestido longo imaculadamente branco, virginal, e ainda tem uma estola branca de plumas sobre os ombros – mas mostra os pezinhos, e nos pezinhos de Marlene há uma dose industrial, fatal, mortal de sensualidade.
E, at last but not at least, há o bom humor que permeia toda a narrativa – um delicioso bom humor.
Um monte de piadas sobre o nome do pobre detetive-inspetor da Scotland Yard, Wilfred Smith – Smith, o nome mais comum que pode haver, o Silva dos países de língua inglesa. Mrs. Gill (Sybil Thorndike), a mãe de Eve, senhora rica, que se tem como muito lady (embora tenha queda forte por um conhaque contrabandeado), diz, ao ouvir o nome Smith: – “Esse nome me parece familiar…”
A própria Eve, que precisa tentar agradar ao detetive-inspetor para obter informações sobre as investigações do assassinato do marido de Charlotte, pergunta se o nome dele é “plain, ordinary Smith” – Smith, simplesmente, só Smith, e ele assume aquilo e diz mais tarde que adora quando ela fala “Ordinary Smith”, como se Ordinary fosse um prenome – ela, a “extraordinary Eve”.
O gosto de Hitchcock pelo bom humor atinge os píncaros na longa série de sequências na garden party, a festa ao ar livre que se realiza logo após os funerais do assassinado Mr. Inwood – que, aliás, não são mostrados, nem Mr. Inwood, nem seus funerais.
Hitchcock criou toda uma sequência numa barraquinha de tiro ao pato em que a prenda para quem acertasse o alvo era uma pequena boneca. O pai de Eve, o comodoro Gill, precisava desesperadamente de uma bonequinha, para manchar o vestido dela de sangue e aí exibir para Charlotte, para testar a reação dela diante daquilo. Mas ele está sem dinheiro, porque tinha acabado de pagar o que tinha à empregada de Charlotte, que estava chantageando Eve.
Então o comodoro tem um diálogo com a senhora que toma conta da barraquinha, interpretada por Joyce Grenfell (na foto), uma ótima atriz inglesa da época. Ele quer comprar uma bonequinha – mas, se for para vender, a moça da barraquinha exige 4 libras. Agora, se ele quiser atirar nos patinhos, aí pagará bem menos que uma libra – não me lembro a fração que ela menciona daquelas estranhas frações da libra.
A sequência leva uns bons 3 minutos. É engraçadíssima.
Uns 50 anos depois, quando Stage Fright foi lançado em DVD, e o especialista Laurent Bouzerau fez um pequeno documentário, Hitchcock and Stage Fright, para acompanhar o filme, um dos entrevistados comentaria que aquela sequência não tem nada a ver com a trama – é assim uma coisa desnecessária enfiada na narrativa.
Na minha opinião, a sequência, com a participação da dentuça Joyce Grenfell, é um delicioso momento de cinema.
É um caco, no sentido que o pessoal de teatro usa – algo que não tem de fato fundamental relevância para a trama? É, mas e daí? É uma maravilha, é bem humorado, é gostoso, Joyce Grenfell é engraçadíssima, Alistair Sim é excelente. E o comodoro Gill aplicando sobre o novo sujeito que chega à barraquinha o mesmo golpe que havia sido aplicado sobre ele é extremamente engraçado.
A rigor, todos os filmes de Hitchcock têm cacos como este. São uma das grandes qualidades desse realizador monstruoso.
Os créditos citam o nome de Alma Reville, algo que é raro
Há um detalhe que considero importante: o nome de Alma Reville está nos créditos iniciais – ao contrário do que acontece na maioria dos 51 filmes realizados por Alfred Hitchcock.
É mais do que sabido que Alma Reville tinha enorme influência sobre o marido. Hitch tinha o maior respeito pelas opiniões de Alma – e é sempre bom lembrar que Alma já era uma profissional experiente do cinema inglês quando Alfred dirigiu seu primeiro longa, O Jardim dos Prazeres/The Pleasure Garden, em 1925.
Alma dava palpites em todos os roteiros que o marido filmava.
No entanto, pouquíssimas vezes seu nome constou dos créditos. Neste filme aparece assim: “Roteiro Whitfield Cook, Baseado na novela Man Running, de Selwyn Jepson, adaptação Alma Reville”.
Uso aqui o santo nome de Alma como um argumento de sustentação à minha admiração pelo filme.
Mas o fato é que Pavor nos Bastidores não aconteceu. Veio depois de um fracasso de público, Sob o Signo de Capricórnio, e não foi um sucesso. Caso raro de dois fracassos consecutivos na carreira de Hitchcock.
A crítica, na época, não gostou nada.
Na verdade, a crítica, na época, atolou-se numa discussão que hoje a gente tem todo de direito de achar que é engraçadíssima, hilariante, fantástica. Uma sensacional polêmica tão importante quanto uma discussão de bêbados a respeito do sexo dos anjos.
E aqui vem spoiler.
A partir daqui, spoilers. Quem não viu o filme deve parar de ler este texto
Naquele primeiro diálogo, em que Jonathan conta para Eve o que aconteceu – e o espectador vê o que ele está relatando em um flashback –, ele mente.
Mente. Trapaceia. Não diz a verdade.
E então o que o espectador vê, no flashback que começa quando o filme não está sequer com 2 minutos, é a versão de Jonathan.
Só saberemos bem no final do filme que a versão de Jonathan é mentirosa.
O que aconteceu então foi que os críticos de cinema meteram o pau no filme porque Hitchcock apresentou um flashback que mostra uma mentira.
Os críticos de cinema disseram que flashback não pode contar mentira.
Está no livro The Films of Alfred Hitchcock, de Robert A. Harris e Michael S. Lasky:
“O diretor tem dito que uma importante qualidade de seus filmes é sua habilidade de resistir a uma segunda ou terceira visão. Stage Fright é um de meia dúzia de filmes de Hitchcock que não corresponde a essa afirmação. (…) Provavelmente seu maior erro, e ele é o primeiro a admitir isso, foi mentir para os espectadores. Logo depois que os créditos iniciais terminam, somos levados a um flashback que, lá pelo fim do filme, vemos que foi um logro. Uma das regras básicas dos filmes é que flashbacks não deveriam mentir. A audiência foi enganada e o resultado é um desapontamento para o diretor.”
“One of the cardinal rules in movies is that flashbacks should not lie”, sentenciam os dois autores do livro sobre os filmes de Hitch.
Mas, diacho, quem determinou isso?
Nunca houve uma Bíblia do Cinema, ou os Dez Mandamentos do Cinema, dizendo o que pode ou não pode haver.
Nunca houve uma Constituição da Arte Cinematográfica afirmando com todas as letras e vírgulas em algum artigo, parágrafo, inciso e alínea que “É proibido que nos flashbacks se mostrem fatos que não existiram, que não correspondam à verdade escorreita dos fatos”.
No entanto – como bem mostra o texto no próprio livro sobre os filmes do realizador –, os críticos da época reagiram foi como se Hitchcock tivesse cometido gravíssimo crime contra a Constituição do Universo.
Prefiro deixar de lado a polêmica boba: Pavor nos Bastidores é uma maravilha
A fantástica discussão não se esgotou na época do lançamento do filme. No documentário feito por Laurent Bouzerau, em 2004, Richard Schickel, respeitado historiador de cinema, enfatiza que o flashback conta uma mentira: “Não foi o que aconteceu!”
Talvez fosse o caso de promover um simpósio dos maiores historiadores, pesquisadores e críticos de cinema para discutir o tema, e enviar apelos para o Supremo Tribunal do Cinema para que alguém afinal decida: há algum item na inexistente Constituição da Arte Cinematográfica proibindo que um flashback conte uma mentira?
São os deuses astronautas?
Anjos são meninos, meninas ou transgêneros?
Juro que não tenho resposta para questão tão metafísica. Agora, que Pavor nos Bastidores é uma delícia de filme, e que a cada nova revisão ele se prova mais gostoso de se ver e rever, quanto a isso não tenho dúvida alguma.
Anotação em março de 2017
Pavor nos Bastidores/Stage Fright
De Alfred Hitchcock, EUA, 1950
Com Jane Wyman (Eve Gill), Marlene Dietrich (Charlotte Inwood), Michael Wilding (inspector-detetive Wilfred Smith), Richard Todd (Jonathan Cooper), Alistair Sim (comodoro Gill), Sybil Thorndike (Mrs. Gill), Kay Walsh (Nellie Goode), Miles Malleson (Mr. Fortesque), Hector MacGregor (Freddie Williams), Joyce Grenfell (‘Lovely Ducks’, a moça do stand de tiro ao pato), André Morell (inspetor detetive Byard), Patricia Hitchcock (Chubby Bannister), Ballard Berkeley (sargento Mellish)
Roteiro Whitfield Cook
Baseado na novela Man Running, de Selwyn Jepson
Adaptação Alma Reville
Diálogos adicionais James Bridie e Ranald MacDougall (não creditaddos)
Fotografia Wilkie Cooper
Música Leighton Lucas
Montagem Edward B. Jarvis
Casting Robert Lennard
Produção Alfred Hitchcock, Warner Bros. DVD Warner Bros.
P&B, 110 min
R, ****
Talvez um dia eu goste de Hitchcock… Mas uma coisa eu tenho que dizer: o elenco dos filmes desse cara eram uns negócios assim, tipo, amo todos!!!
Ver Marlene e Jane juntas já vale 4 estrelas 🙂
Este filme nunca vi e nem me lembro de ler sobre ele. Fui pegar na entrevista de Alfred Hitchcock por François Truffaut para refrescar a memória e conclui que não me lembrava mesmo de nada. Pelo que li parece-me que é mesmo um filme menor e que não perdi nada de especial.
Você lê pensamentos? Faz alguns dias que quero encontrar esse filme para rever, pois lembro-me de ter gostado, e nunca ter concordado com os que o consideram um filme menor de Hitchcock. Lembro de Wyman, Todd, Dietrich, Wilding & Wyman juntos, etc.
Ainda não revi. Foi uma surpresa imensa ver justo esse filme na sua página. Uau.
Quem sabe pensamento insistente funcione… Passei semanas querendo rever “Jovem e Inocente”, um Hitchcock da fase inglesa, e consegui dias atrás. Talvez consiga com este também.
Estou com uma inveja… 🙂
Filme muito bom. Boa crítica. Gosto muito das críticas do seu blog. Toda vez que vejo algum clássico, vejo se você postou algo sobre ele. A respeito desse filme, é Hitchcock menor. Mas se fosse feito hoje em dia era indicado até a Oscar. Os filmes dele são sempre acima da média.