Dirigindo no Escuro / Hollywood Ending

3.0 out of 5.0 stars

Dirigindo no Escuro/Hollywood Ending, de 2002, o 32º filme de Woody Allen, é uma furiosa gozação da indústria do cinema, de Hollywood. Até aí, nada demais da conta: dezenas e dezenas de filme gozam Hollywood – basta lembrar das sátiras violentas de Mel Brooks, como Banzé no Oeste e Alta Ansiedade, e as estreladas por Leslie Nielsen, como Apertem os Cintos… O Piloto Sumiu e Duro de Espiar.

E Woody Allen, afinal de conta, nunca foi um homem da indústria do cinema, de Hollywood. É um outsider, um rebelde, um independente.

Mas Dirigindo no Escuro não goza apenas Hollywood. Goza o próprio cinema. Goza o próprio Woody Allen. E mais ainda: goza o público que gosta dos filmes dele. Goza a crítica de cinema da França, que sempre o endeusou, muito mais que a crítica de seu próprio país.

Ao rever o filme agora, para escrever esta anotação, não pude deixar de sentir que talvez Woody Allen tenha exagerado um tanto, nesta sua sátira furiosa demais a tudo e todos.

Assim, não é de se espantar que o filme tenha sido um tremendo fracasso de crítica e público.

Custou, segundo consta, US$ 16 milhões, parte deles bancados pela DreamWorks, a produtora criada por Steven Spielberg, Jeffrey Katzenberg e David Geffen. Rendeu, no mercado americano, míseros US$ 4,8 milhões; com os US$ 9,7 milhões arrecadados no resto do mundo, dá US$ 14,5 milhões. Não cobre sequer o orçamento – e, para dar lucro, é preciso que um filme renda pelo menos duas vezes o que custou.

O AllMovie deu 2 estrelas em 5 para o filme. Os exibidores da Grã-Bretanha não se interessaram pelo filme – foi o primeiro de Woody Allen a não ser lançado nos cinemas britânicos.

O próprio Woody Allen, normalmente pouco preocupado com os números da bilheteria, declarou, em várias ocasiões, que achava que o filme teria uma recepção melhor, pois afinal é uma comédia engraçada e o elenco tem muita gente boa e famosa.

O produtor faz a vontade da mulher e põe o ex-marido dela para dirigir um filme

O escracho já começa no título original, Hollywood Ending. “Hollywood ending” se transformou numa expressão da língua inglesa, uma coisa irônica, gozativa. Está no Oxford Living Dictionaries da internet: “Um final convencional de um filme, visto como sentimental ou simplista e em geral apresentando uma conclusão positiva improvável. Um desfecho improvavelmente afortunado ou feliz para uma situação da vida real”.

A história e os personagens que Woody Allen criou em seu opus 32 para gozar tudo e todos, inclusive o eventual leitor e eu mesmo, são assim:

Em um estúdio de Hollywood, o Galaxy Pictures, o chefão Hal (Treat Williams) e seus executivos discutem quem será convidado para dirigir o novo filme da companhia, The City Never Sleeps, um thriller psicológico cuja ação se passa na Nova York dos anos 40. Ellie (o papel de Téa Leoni, linda demais), uma das pessoas da direção do estúdio e noiva do tycoon Hal, insiste em que a pessoa mais adequada para a tarefa é Val Waxman.

Val Waxman (o papel do próprio Woody Allen) é um nome polêmico, para dizer o mínimo. Teve seu tempo de glória, uns dez anos antes, com filmes incensados pela crítica. Filmes de auteur, como diz alguém ali na reunião dos executivos da Galaxy Pictures.

Nos últimos dez anos, no entanto, nenhum estúdio chamou Val para dirigir um filme. O grande diretor, o auteur, está atualmente vivendo de fazer comerciais. Naquele exato momento em que a ação do filme começa, está no Canadá, morrendo de frio, contratado para fazer um comercial. Reclama tanto do frio, da vida – nós o vemos falando ao telefone com a namorada Lori (o papel de Debra Messing) –, que acaba demitido.

Todo o diálogo das várias pessoas na reunião da Galaxy Pictures é delicioso, mas há um trechinho especialmente fantástico. Ed, um dos executivos do estúdio (o papel de George Hamilton, aquele galã que fez muito sucesso nos anos  60), diz: – “Olha, eu amo o Val. Eu o amo. Mas, com todo respeito, ele é um psicopata delirante, incompetente”.

Ao que Ellie replica de primeira: – “Ele não é incompetente!”

Ellie é a única ali a defender que Val Waxman dirija o novo filme do estúdio. Ellie havia sido casada com Val durante dez anos; dez anos antes, havia se separado dele ao se apaixonar por Hal, o grande produtor, hoje chefão da Galaxy Pictures.

Pois bem. Contrariando a boa lógica, os argumentos de seus executivos e o seu próprio feeling, mas agradando à mulher que ama, Hal topa entregar a produção de US$ 60 milhões ao diretor has-been, um que já foi, o gênio que perdeu a lâmpada faz muito tempo, um fracassado.

Diálogos engraçadíssimos, situações hilariantes

Comédia cheia de diálogos engraçadíssimos, Hollywood Ending tem um de seus melhores momentos quando Val e Ellie se revêem, a sós, em um bar em Nova York. Tinham se visto antes numa reunião formal, com a presença do chefão Hal e do agente de Val, Al Hack, uma figura sensacional, interpretada pelo realizador Mark Rydell (o segundo da esquerda para a direita na foto abaixo), de Num Lago Dourado (1981) e Os Cowboys (1972), para citar só dois títulos.

É Al, que, além de agente, é um amigo, um excelente companheiro de Val, seu maior protetor, que sugere o encontro com Ellie, como forma de agradecer por ter brigado por ele.

Val chega para o encontro dizendo que só vai falar do trabalho, do filme que vão fazer – ela havia escrito o roteiro de The City Never Sleeps. E um segundo depois está despejando dez anos de mágoa acumulada por ter sido abandonado por ela – e abandonado por ela por um produtor, um milionário, um sujeito em tudo o oposto dele.

A sequência é extremamente engraçada – mas, ao mesmo tempo, incômoda, desagradável. O espectador fica com vontade de dar uns tapas na cara de Val para chamá-lo à razão – ei, cara, acorda!

Um dos trechos:

Ellie: – “Nosso casamento não estava indo a lugar algum”.

Val: – “Onde você queria que ele fosse? Para onde vão os casamentos? Depois de algum tempo, eles só ficam lá parados. É assim com os casamentos.”

E mais:

Ellie: – “Nós não nos comunicávamos!”

Val: – “Nós fazíamos sexo!”

Ellie: – “É, nós fazíamos sexo. Mas nunca conversávamos.”

Val: – “Sexo é melhor que conversa. Pergunte a qualquer um aqui no bar. Conversa é o que você tem que aguentar até chegar ao sexo.”

Outra:

Val, reclamando que descobriu que Ellie o estava traindo com Hal:

– “No Plaza Hotel. Pelo amor de Deus, eu recebi a conta. Você pediu escargot naquela tarde. Que nojo. Sexo e moluscos com aquele rosbife de Beverly Hills.”

Depois desse encontro, Ellie diz para Hal, por telefone, que ela e Val haviam tido uma ótima conversa sobre o filme que iriam fazer. Tinha sido tudo muito profissional, muito legal.

O diretor Val só faz asneiras, idiotices – e a ex-mulher permite tudo

Val escolhe para diretor de fotografia um chinês que não fala uma palavra de inglês (Lu Yue). Toda a comunicação com o chinês – um tipinho bravo, irascível, metido a gênio, é claro – terá que ser feita com a ajuda de um tradutor (o papel de Barney Cheng).

Para diretor de arte, Val escolhe Elio Sebastian (Isaac Mizrahi), outro profissional metido a gênio, que explica candidamente aos executivos da Galaxy Pictures que será necessário construir em estúdio a Times Square, a Broadway, o Empire States Building e um pedaço do Central Park – só isso.

Pelo telefone, Ellie vai dizendo para Hal – ele de volta a Los Angeles, é claro – que está tudo indo muito bem.

Lá pelas tantas, a própria Ellie desiste de acompanhar as loucuras que estão sendo preparadas por Val, e volta para Los Angeles.

E aí, quando o filme está com 40 minutos, acontece o lance fundamental da trama.

Não chega a ser um segredo, de forma alguma. Mas acontece quando o filme está com 40 minutos, e então me sinto na obrigação de dar o aviso: se o eventual leitor ainda não viu o filme, e tem intenção de ver, não deveria ler a partir daqui, porque, a rigor, a rigor, é spoiler, é informação que atrapalha o prazer de ver o desenrolar da trama.

Atenção: a rigor, a rigor, o que vem abaixo é spoiler

Quando o filme está com 40 minutos, Val Waxman, conhecido hipocondríaco – como praticamente todos os personagens interpretados pelo próprio Woody Allen –, descobre que está cego. Não vê absolutamente nada.

Liga para Al, o agente, o amigo, o protetor. Al o leva a um oftalmologista, a um neurologista, depois a um psiquiatra. Não há nada de errado fisicamente: é coisa mental, coisa de cabeça. Cegueira psicossomática.

Al reage com rapidez e determinação: ninguém vai ficar sabendo. Val dirigirá o filme como se nada tivesse acontecido. Ele, Al, vai acompanhá-lo no estúdio, ser assim uma espécie de seu cão-guia.

O diálogo é terrivelmente engraçado, mas também pavorosamente violento:

Al: – “Estou dizendo para você, Val, você vai se virar até que sua vista volte.”

Val: – “Mas, Al, eu não posso dirigir um filme. Estou cego!”

Al: – “Você tem visto alguns filmes que estão por aí?”

Diacho. “Have you seen some of the pictures out there?” Os cinemas estão cheios de filmes tão horrorosos que parecem que foram feitos por gente cega.

Isso é que é pegar pesado.

Embora, a rigor, ele tenha toda razão…

É incrível a quantidade de belas atrizes que trabalham nos filmes de Allen

Woody Allen já é, normalmente, um eterno citador de filmes, de elementos do cinema. Neste filme sobre o mundo do cinema, então, ele não pára de citar gente. Enquanto revia o filme, anotei que os diálogos citam, entre outros, pela ordem, Peter Bogdanovich, Steven Spielberg, o produtor Harvey Weinstein, François Truffaut, Alfred Hitchcock, Federico Fellini, Orson Welles.

(Sim, Harvey Weisntein, da então poderosa Miramax Films, produtora de muito filme bom, hoje exposto como um dos maiores predadores sexuais da História mundial.)

Lá pelas tantas, Ellie diz para uma secretária enviar uma carta cumprimentando Haley Joel Osment pelo Oscar honorário que ele recebeu pelo conjunto da obra. Oscars honorários, como se sabe, são entregues a velhos profissionais; o ator mirim que interpreta o garoto que via gente morta em O Sexto Sentido (1999) estava com 14 anos em 2002, o ano de lançamento de Hollywood Ending.

Por falar em prêmios…

O IMDb registra que Hollywood Ending teve uma única indicação a prêmio. Com tanto prêmio que existe, com tanto festival mundo afora, uma única indicação. Foi a um prêmio do qual eu jamais tinha ouvido falar, um parente da Framboesa de Ouro, aquele troféu para os piores filmes. Chama-se The Stinkers Bad Movie Awards – que poderia ser traduzido como Os Prêmios Fedorentos de Filmes Ruins, e a indicação foi na categoria de Pior Casal na Tela, para “Woody Allen e qualquer atriz décadas mais jovem”.

Téa Leoni, essa atriz de beleza fascinante, é de 1966. Woody Allen é de 1935. Só 31 aninhos de diferença.

E por falar em atrizes mais jovens, e belas…

Fiquei pensando: é incrível como Woody Allen e sua eterna diretora de casting Juliet Taylor têm olhos para incluir jovens belas nos filmes dele. Belas e talentosas, é claro. Mas belas demais…

Incrível, impressionante. Pegando só os filmes a partir de 1990, quando ele, aos 55 anos, lançou Simplesmente Alice, seu filme de número 20, trabalharam sob a direção de Woody Allen – além de Téa Leoni, claro – Cybill Shepherd, Jodie Foster, Madonna, Jennifer Tilly, Julia Roberts, Drew Barrymore, Melanie Griffith, Winona Ryder, Uma Thurman, Helen Hunt, Charlize Theron, Christina Ricci…

Não terminou ainda. Continua a lista, em ordem de entrada em cena (mais ou menos) :

Radha Mitchell, Chloë Sevigny, Scarlet Johansson, Emily Mortimer, Rebecca Hall, Penelope Cruz, Evan Rachel Wood, Naomi Watts, Freida Pinto, Carla Bruni, Marion Cotillard, Rachel McAdams, Ellen Page, Cate Blanchett.

A mais recente da lista é a gracinha da Emma Stone, que nos encanta em Magia ao Luar (2014) e O Homem Irracional (2015).

Os teóricos ensinavam que bons eram os filmes com final infeliz

Sobre um filme chamado Hollywood Ending, é preciso falar de final de filmes, esse que é o maior spoiler de todos.

Mas, antes de falar sobre o final de Dirigindo no Escuro/Hollywood Ending, tomo a liberdade de fazer uma digressãozinha.

Nos anos 60 – a década em que comecei a ver muitos filmes e a anotar cuidadosamente os dados básicos de cada um deles em um caderninho, e depois fiz uns dois cursos de História do Cinema com bons críticos, e passei a frequentar cineclubes e ler sem parar sobre cinema –, havia teóricos que diziam que os filmes com final feliz eram uma forma de a indústria de entretenimento entorpecer as massas, e impedir que elas se revoltassem contra as injustiças sociais, o iníquo sistema capitalista.

O happy ending – ensinavam esses teóricos – era parte importante do ópio que as classes dominantes ofereciam ao povo incauto. Hollywood, a Coca-Cola, o futebol – pão e circo, panis et circenses, como no tempo de César. Tudo ópio para o povo.

Falavam-se de teorias assim na revista Sight & Sound, a resposta britânica aos Cahiers du Cinéma, em livros de críticos e estudiosos como os ingleses Penelope Houston e Ivor Montagu e o francês Georges Sadoul.

Sim! Ao contrário do que podem imaginar os reacionários, os direitistas, os neoliberais mais jovens, a bestiologia não foi uma invenção do PT – ela já existia antes de Marilena Chauí e Emir Sader.

Mas aí fugi do assunto. (Um pouco.)

Os bons filmes – ensinavam aqueles teóricos – eram aqueles que tinham finais infelizes. Em que as coisas não davam certo. Porque aí os espectadores, em vez de saírem do cinema satisfeitos, alegres, felizes, saíam ruminando sobre os problemas da vida, as injustiças.

Os bons filmes eram os de final infeliz, porque incutia nas massas o espírito da rebeldia.

E não adiantava alguém argumentar que os filmes soviéticos e dos países satélites da União Soviética, seguindo a cartilha do realismo socialista, sempre tinham finais gloriosos, que enalteciam a força do operariado – os teóricos lembravam que, naqueles países, já se havia atingido o Paraíso Socialista, e então não era mais necessário ficar incutindo rebeldia nas massas.

Perdão se me alonguei na digressão, mas é que tem a ver.

Agora, sim, o spoiler dos spoilers.

Atenção: spoiler dos spoilers. Revela-se aqui o final de Hollywood Ending

Depois que terminam as filmagens de The City Never Sleeps, e chega a hora de montar o filme, de repente, assim como chegou a cegueira psicossomática de Val Waxman via embora.

Val e Ellie estão no Central Park. De repente, Val volta a ver.

Acha tudo lindo – o Central Park, Ellie-Téa Leoni, a vida.

Vão então, os dois, ver o que havia sido filmado.

Depois de ver aquela coisa sem sentido, sem coerência, sem coisa alguma, Val exclama: – “Chamem o dr. Kevorkian!”

(O dr. Jack Kevorkian foi o médico ativista pela morte digna que ajudou mais de 130 pessoas, doentes crônicos, desenganados, sofrendo dores violentíssimas, a acabar com seu sofrimento. Barry Levinson fez um belo filme sobre o polêmico médico, Você Não Conhece Jack, em que ele é interpretado por Al Pacino.)

Val edita aquela porcariada da melhor maneira que consegue. Quando o filme é exibido em sessões teste, em que os espectadores são convidados a opinar sobre o que viram, o bombardeio é absolutamente intenso. À pergunta “Você recomendaria este filme a um amigo?”, um espectador respondeu: “Não – a não ser que eu fosse amigo de Hitler”.

Faltam uns 5 minutos para terminar o filme. Está tudo ruim. É uma tragédia, um horror, uma tristeza só.

Aí vem o “Hollywood ending” – “um final convencional de um filme, visto como sentimental ou simplista e em geral apresentando uma conclusão positiva improvável. Um desfecho improvavelmente afortunado ou feliz para uma situação da vida real”.

Al aparece na casa de um deprimidíssimo Val trazendo um jornal nas mãos. The City Never Sleeps foi exibido na França – e a crítica a-do-rou o filme! Produtores querem que Al Waxman vá fazer seu próximo filme na França!

Para forçar a barra e criar do nada um final feliz à la Hollywood, o roteirista Woody Allen gozou a cara dos críticos franceses! Na melhor das hipóteses, riu deles, brincou com eles!

Logo os críticos franceses, que sempre o aplaudiram, desde seus primeiros filmes, na segunda metade da década de 60! Seus mais fiéis admiradores – mesmo quando a crítica americana (e a de outros países também) passou a torcer o nariz para seus filmes, exatamente nessa fase aí, entre 1999 e 2005, a fase de Poucas e Boas, Trapaceiros, O Escorpião de Jade, este Dirigindo no Escuro, Igual a Tudo na Vida, Melinda e Melinda, filmes que foram considerados “menores”.

Em entrevista para a divulgação do filme, o realizador se critica, se goza

Mas a verdade é que Woody Allen ri de todo mundo – a começar de si próprio.

Os produtores deste Dirigindo no Escuro obrigaram Woody Allen a fazer algo que ele seguramente detesta, que é dar aquelas entrevistas para a divulgação do filme, que são distribuídas para as emissoras de TV e usadas nos making ofs e como extras nos DVDs. São raríssimos os DVDs de filmes de Woody Allen que têm algum extra; na imensa maioria, não há coisa alguma, a não ser o próprio filme.

No DVD de Dirigindo no Escuro, lançado no Brasil pela Europa Filmes, há rápidas entrevistas com os atores – Téa Leoni, Debra Messing, George Hamilton, Treat Williams, mais Mark Rydell – e uma com o próprio Woody Allen. A entrevista com o cineasta acaba sendo um delicioso complemento do próprio filme – é uma grande gozação dele próprio, sua maneira de dirigir (ou não dirigir) os atores, e a aura que acabou adquirindo de, como diz um executivo do fictício estúdio Galaxy Pictures, um auteur:

– “Faço tomadas longas porque sou preguiçoso, e eu não ensaio porque não tenho paciência. E isso é visto como um ‘estilo do diretor’.”

Hum… Truco! Não é sempre que Woody Allen faz tomadas longas. Em geral de fato é assim. Mas em alguns filmes, em algumas situações, ele bem que faz tomadas curtas, com montagem acelerada.

– “Eu contrato pessoas que são excelentes, e aí eu as deixo em paz, e não falo com elas. E elas pensam: ‘Ele é tão misterioso! Ele chega ao set e não fala. Ele sabe o que quer. Ele é tão…’ Sabe? E eu não falo nada porque não tenho nada a dizer. Eles improvisam nas cenas, mudam meus diálogos à vontade, improvisam, usam minhas falas quando querem. E, como eles são bons, e já eram bons antes de me conhecer, e continuarão bons depois de mim, saem-se bem nos meus filmes. E todos dizem: ‘Que estilo! Ele não fala com os atores, ele não lhes entrega todo o roteiro, ele…’ Sabe? E não é nada. É só preguiça, falta de paciência, falta de profissionalismo – e isso é visto como um estilo de direção.”

Preguiça, falta de paciência, falta de profissionalismo, diz Woody Allen sobre Woody Allen.

É uma boa piada, se a gente lembrar que o cara dirigiu 46 filmes no espaço de 47 anos, todos eles com histórias boladas por ele mesmo e transformadas em roteiro cinematográfico por ele mesmo – uns 3 ou 4 deles com um colaborador, mas a imensa maioria tudo criado única e exclusivamente por ele mesmo.

Só existe um outro caso assim no cinema mundial: o de Ingmar Bergman. Não por acaso o principal ídolo de Woody Allen, o que mais influencia essa sua obra fantástica.

Woody Allen seguiria os passos de sua criatura, e iria filmar na Europa

Nem tudo o que acontece nesses 46 filmes que o sujeito escreveu e dirigiu saiu de sua imaginação, é claro. Há coisas que ele copiou da vida. Por exemplo, isso de um diretor nova-iorquino contratar um diretor de fotografia chinês, que está em Hollywood Ending, Woody Allen não criou – copiou da vida, apenas exagerando um pouco.

O diretor de fotografia Zhao Fei foi contratado por Woody Allen para trabalhar em três de seus filmes, exatamente os três que antecederam este Hollywood Ending: Poucas e Boas/Sweet and Lowdown (1999), Trapaceiros/Small Time Crooks (2000) e O Escorpião de Jade/The Curse of the Jade Scorpion (2001).

Também o fato de Val Waxman embarcar de mala e cuia para a Europa, para filmar lá, não foi algo que saiu da imaginação do cineasta. Ele já havia filmado na Europa boa parte de seu filme de número 26, Todos Dizem Eu Te Amo (1996).

O fascinante é que essa coisa de um diretor nova-iorquino embarcar para a Europa para filmar lá antecipou o que viria a acontecer de fato com Woody Allen a partir de 2006, quando faria quatro filmes consecutivos no Velho Continente: Match Point (2005), Scoop – O Grande Furo (2006), O Sonho de Cassandra (2007) e Vicky Cristina Barcelona (2008).

Pegou gosto por filmar lá. Depois de um filme em Nova York, Tudo Pode Dar Certo (2009), faria mais quatro na Europa: Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010), Meia-Noite em Paris (2011) e Para Roma Com Amor (2012) e Magia ao Luar (2014).

Woody Allen, assim como o tempo, conforme dizia Cazuza, não pára.

Anotação em agosto de 2017

Dirigindo no Escuro/Hollywood Ending

De Woody Allen, EUA, 2002

Com Woody Allen (Val Waxman), Téa Leoni (Ellie)

e Debra Messing (Lori), Mark Rydell (Al Hack, o agente), Treat Williams (Hal, o chefão do estúdio), George Hamilton (Ed, executivo do estúdio), Tiffani-Amber Thiessen (Sharon Bates, a atriz que se oferece), Lu Yue (o diretor de fotografia), Barney Cheng (o tradutor), Isaac Mizrahi (Elio Sebastian, o diretor de arte), Marian Seldes (Alexandra), Jodie Markell (Andrea Ford, a reporter), Peter Gerety (o psiquiatra), Mark Webber (Tony Waxman, o filho), Erica Leerhsen (atriz), Bob Dorian (executivo do estúdio), Ivan Martin (executivo do estúdio)

Argumento e roteiro Woody Allen

Fotografia Wedigo von Schultzendorff

Montagem Alisa Lepselter

Casting Laura Rosenthal e Juliet Taylor

Produção DreamWorks, Gravier Productions, Perdido Productions;

Cor, 112 min (1h52)

R, ***

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