Depois de ver Perdido em Marte/The Martian, me ocorreu que Ridley Scott é hoje assim uma espécie de Cecil B. deMille, de David Lean. O Cecil B. DeMille das superproduções O Maior Espetáculo da Terra (1952) e Os Dez Mandamentos (1956), o David Lean da segunda fase, a das superproduções, a partir de A Ponte do Rio Kwai (1957).
Os filmes mais recentes de Ridley Scott são sempre grandiosos, super, hiper, mega, e ele não apenas os dirige como também produz – exatamente como as duas figuras lendárias que citei.
Naturalmente, há outras características que diferenciam – e demais – os dois ingleses, David Lean e Ridley Scott. Todos os épicos de Lean passavam-se no mesmo século em que foram feitos, o século XX, enquanto os épicos de Scott se passam no ou passado distante (Gladiador, Cruzada, Robin Wood, Êxodo: Deuses e Reis) ou no futuro (Blade Runner, Prometheus e este Perdido em Marte).
A outra grande diferença diz respeito à quantidade: o perfeccionista, ourives David Lean produzia relativamente pouco – apenas cinco filmes (cinco filmaços, é verdade) ao longo de 27 anos. Já Ridley Scott produz freneticamente – os seus próprios filmes e mais diversos outros projetos, como por exemplo as séries de TV Numb3rs e The Good Wife.
Ficção, sim – mas em um estilo realista, não fantasioso
Perdido em Marte é um filme de muitas qualidades, mas, na minha opinião, a mais fascinante de suas características é o realismo. É fantástico que uma ficção científica, um filme sobre uma missão tripulada a Marte – algo que nunca existiu, nem está programado para existir nos próximos anos – seja realista, mas este é o grande segredo de The Martian.
O filme segue a linhagem de Os Eleitos/The Right Stuff (1983) e Apollo 13 (1995), duas belas obras que recontam acontecimentos históricos. The Right Stuff, de Philip Kaufman, se baseia no livro homônimo de Tom Wolfe, um belíssimo trabalho de reconstituição de fatos reais, desde a pré-história da corrida espacial, ainda nos anos 1950, até os grandes êxitos da Nasa no lançamento de foguetes tripulados nos anos 1970. E Apollo 13, de Ron Howard, descreve em detalhes a epopéia dos três astronautas da missão destinada a pousar na Lua e que teve que ser interrompida por causa de uma explosão num módulo.
A diferença entre esses dois filmes anteriores e o de Ridley Scott de agora é simplesmente que os fatos mostrados em Perdido em Marte ainda não aconteceram, são pura ficção, produto de imaginação. Porém, a forma com que Ridley Scott mostra os fatos é semelhante à usada antes por Philip Kaufman e Ron Howard: é um estilo de quem está contando não uma ficção, uma história improvável, mas sim uma sucessão de acontecimentos reais, plausíveis, palpáveis.
É ficção, é invenção, é criação – mas com um tom realista.
A sensação que se tem, ao longo do filme, é de que houve muita pesquisa. De que tanto o autor do romance, Andy Weir, quanto o do roteiro, Drew Goddard, quanto as equipes todas de direção de arte, de figurinos pesquisou a sério como seria uma base operacional da Nasa (para quem não está lembrando, a National Space Agency) em Marte. De que toda a equipe envolvida na produção do filme mergulhou em estudos, muito provavelmente sob a orientação de técnicos da própria Nasa.
Nos dez primeiros minutos, acontece uma série de eventos, o filme diz a que veio
Como os filmes de Cecil B. DeMille e de David Lean, The Martian é longo: são 144 minutos. Como é um bom filme, não cansa.
E já começa com tudo, e em pouco mais de cinco minutos diz a que veio.
A rigor, começa suave: três astronautas estão andando sobre o solo de Marte, colhendo amostras do chão, conversando, fazendo piada com os colegas que estão a bordo da gigantesca nave.
É como uma Ferrari, um desses carros esportivos milionários que passam de 0 km a 190 km por hora em menos de um minuto: depois de um minutinho dessa suavidade, vem uma tempestade bravíssima, uma daquelas tempestades de deserto, de vento e areia. O vento é tão violento que a grande nave, pousada na vertical, periga tombar. A comandante da missão, Melissa Lewis (o papel da ótima Jessica Chastain), hesita por um pequenino momento, mas dá a ordem para que todos entrem na nave.
Um dos astronautas, Mark Watney (o papel de Matt Damon), é atingido por um pedaço de uma antena lançado pelo vento furioso.
Quase não se enxerga nada, no meio da areia.
A comandante Lewis tenta várias vezes chamar Mark pelos aparelhos de comunicação dos trajes espaciais, mas não há resposta.
A nave se inclina sob a força do vento, periga tombar.
Não havia mais nada a fazer – tentar resgatar Mark, àquela altura muito provavelmente morto, seria pôr em risco a vida de todos os demais tripulantes.
Entram na nave, e a comandante dá ordem de abortar a missão, e voltar para casa.
Era para a equipe ter ficado em Marte por cerca de 30 e poucos dias; haviam ficado apenas uns 10.
A viagem de volta à Terra duraria diversos meses.
O presidente da Nasa, Teddy Sanders (Jeff Daniels), em concorridíssima entrevista coletiva, explica o que aconteceu, e informa que Mark Watney morreu.
Quando estamos aí com uns 10, no máximo 15 minutos de filme, a ação volta para Marte. Mark não morreu. Todos os 134 minutos restantes do filme vão mostrar seu paciente, duríssimo, tenaz trabalho de encontrar condições de sobreviver até que a Nasa tivesse condições de enviar algum tipo de missão para resgatá-lo.
Todos os passos que Mark dá na luta pela sobrevivência são mostrados com a calma e quase o didatismo de um documentário. Ah, o povo da produção seguramente aprendeu muito com a Nasa.
É preciso registrar: esse Mark Watney levado à tela pelo sempre bom Matt Damon é uma figura bem humorada. Isso ajuda muito a tornar o filme agradável de ser visto, já que, a rigor, a situação que se mostra é cruel, apavorante, angustiante. Como o próprio Mark diz diante de um computador na base que a equipe ocupava e agora está só para ele:
– “Se o oxigênio acabar, eu vou sufocar. Se a água acabar, eu vou morrer de sede. Se este traje rasgar, eu vou tipo implodir. Se nada disso acontecer, eu vou eventualmente ficar sem comida e passar fome até a morte. Então… é… é…”
Sete indicações ao Oscar, um belo resultado nas bilheterias
The Martian teve sete indicações aos Oscars, nas categorias de filme, ator para Matt Damon, roteiro adaptado, edição de som, mixagem de som, efeitos visuais, direção de arte. Não levou nenhum na cerimônia realizada no dia 28 de fevereiro de 2016.
Ganhou os Globos de Ouro de melhor filme e melhor ator para Matt Damon na categoria comédia ou musical, o que é uma ironia absoluta, já que é um danado de um drama e não tem coisa alguma de musical.
Ao todo, o filme ganhou 28 prêmios e teve outras 146 indicações.
Foi uma produção cara, embora não propriamente milionária para os padrões de Hollywood: teve um orçamento estimado em US$ 108 milhões. Entre o lançamento americano, em 2 de outubro de 2015, e meados de fevereiro de 2016, faturou US$ 608 milhões. As superproduções de Ridley Scott, assim como as de DeMille e Lean, têm bom retorno.
Produção grandiosa costuma dar muitos itens na página de Trivia do IMDb, mas na de The Martian houve um exagero: são 105 itens de informações sobre a produção do filme! Ô louco!
Aí vão algumas das que achei mais interessantes:
* Há informações conflitantes sobre o local em que foram rodadas as cenas exteriores passadas em Marte. Um dos itens diz que foi o deserto de Wadi Rum, na Jordânia, que tem uma superfície avermelhada. Já outro item diz que todas as cenas exteriores de Marte foram filmadas nos estúdios Korda, em Budapeste – que é o maior estúdio do mundo, hoje em dia, em área disponível.
* O autor do livro em que o filme se baseia, Andy Weir, publicou o texto em seu blog, apenas por diversão. Só depois de aconselhado por várias pessoas colocou para download no Amazon, pelo preço mínimo de US$ 0,99.
* A produção do filme de fato fez consultas à Nasa. Como é uma agência federal, ela não cobrou nada da produção do filme por dar amplo acesso à sua base de dados.
* Na realidade, a Nasa já planeja para o futuro – em dada ainda não definida – viagens tripuladas a Marte. E já trabalha em protótipos de estações de trabalho como as mostradas no filme, com geradores de água e oxigênio.
* O nome da missão dos astronautas é Ares 3, uma homenagem ao deus da guerra da mitologia grega, Ares – que ganhou dos romanos o nome Marte. O nome da grande nave que faz a viagem entre Marte e a Terra é Hermes – Hermes é o deus grego que é o mensageiro, o emissário, o patrono e protetor dos viajantes. Os romanos, que roubaram as histórias todas da mitologia grega, mudando apenas o nome dos deuses, semideuses e demais personagens, deram a Hermes a alcunha de Mercúrio.
* A nave Hermes do filme tem gravidade artificial e um escudo contra a radiação para proteger a tripulação e tornar a viagem mais agradável. A Nasa está trabalhando para conseguir essas duas coisas, mas ainda falta muito para chegar lá.
* A equipe fez de fato uma grande plantação de batatas num pedaço do estúdio, com batatas em todos os estágios de seu desenvolvimento, para serem usadas na filmagem.
* No dia 28 de setembro de 2015, faltando quatro dias para a estréia de The Martian nos Estados Unidos, a Nasa anunciou que havia encontrado evidências da existência de água em Marte.
* As filmagens duraram apenas 72 dias.
* O dia em Marte – chamado de Sol no filme – dura 37 minutos a mais que o dia terrestre de 24 horas. Porém, um ano em Marte dura quase dois anos terrestres: como o planeta está mais longe do Sol do que a Terra, leva, obviamente, mais tempo para completar uma volta inteira em torno da estrela do nosso sistema.
* Apesar de todo o cuidado da produção para que o filme seja acurado, correto, do ponto de vista científico, a trama parte de algo absolutamente irreal: a força, a intensidade dos ventos da tempestade de Marte, capaz de lançar longe equipamentos pesados e até mesmo ameaçar derrubar um grande foguete. Como a atmosfera de Marte é fina demais, o vento mais forte de lá seria sentido como uma leve brisa pelos humanos.
A mais bela nave do cinema desde a de 2001 de Kubrick
Ufa!
Bem, para encerrar, duas coisinhas.
É interessante, bastante significativo, que a segunda potência na área espacial mostrada no filme – e que irá ajudar a Nassa – seja a China, e não mais a Rússia, herdeira do programa especial da antiga União Soviética. Sinal dos tempos.
E uma sensação que tive: a nave – por dentro e por fora – é a mais bela que já apareceu no cinema, desde a de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, a obra-prima de 1968 de Stanley Kubrick.
Anotação em fevereiro de 2016
Perdido em Marte/The Martian
De Ridley Scott, EUA-Inglaterra, 2015
Com Matt Damon (Mark Watney)
e Jessica Chastain (Melissa Lewis), Kate Mara (Beth Johanssen), Michael Peña (Rick Martinez), Sebastian Stan (Chris Beck), Aksel Hennie (Alex Vogel) (a tripulação da nave),
Jeff Daniels (Teddy Sanders), Chiwetel Ejiofor (Vincent Kapoor), Kristen Wiig (Annie Montrose), Sean Bean (Mitch Henderson), Benedict Wong (Bruce Ng), Mackenzie Davis (Mindy Park), Donald Glover (Rich Purnell) (na Nasa),
Nick Mohammed (Tim Grimes), Shu Chen (Zhu Tao), Eddy Ko (Guo Ming)
Roteiro Drew Goddard
Baseado no livro de Andy Weir
Fotografia Dariusz Wolski
Música Harry Gregson-Williams
Montagem Pietro Scalia
Casting Carmen Cuba e Nina Gold
Produção Twentieth Century Fox, TSG Entertainment, Scott Free Productions, Genre Films, International Traders.
Cor, 144 min
***
Eu gostei e é um bom filme mas não é o meu tipo de filme. Tenho aversão À ficção científica
Outro ponto em comum entre Lean e Scott é que os dois são experts na narrativa. Peritos em contar o roteiro atraves de imagens. Bom, pelo menos quanto a Scott isso se aplica a alguns filmes como Alien, Blade Runner Gladiador, verdadeiros primores narrativos. Ultimamente ele tem perdido a mão, vide o fiasco Prometheus !
É um filme que se vê sem sobressaltos e que entretém mas não provoca grandes emoções. Vê-se e está visto, siga.
A música da comandante da missão é realmente horrível e chega a incomodar.
Por causa deste filme fui rever Alien esse sim um excelente filme que, apesar da idade, está em perfeitas condições.
Posso também referir Blade Runner que é para mim o melhor filme de ficção científica, em boa parte graças ao argumento adaptado de um romance de Philip K. Dick. Este escritor tem várias obras adaptadas para o cinema com sucesso.
Infelizmente alguém teve a triste ideia de fazer um remake e aí esta Blade Runner 2049 que nunca vi nem vou ver.