O grande Robert Altman e seu comparsa Elliott Gould apropriaram-se do detetive Philip Marlowe – essa glória, esse monumento dos Estados Unidos da América – e fizeram dele uma figura à imagem e semelhança de John McIntyre, o médico doidão, gozador, inabalável non-chalant de M.A.S.H., o filme que haviam feito juntos em 1970, apenas três anos antes deste The Long Goodbye.
Philip Marlowe, o detetive particular, private investigator, private eye californiano criado por Raymond Chandler (1888-1959), era, de fato, um sujeito que fazia da ironia, da gozação, da non-chalance seu meio de vida – ou, se quisermos, seu escudo, sua armadura de defesa contra um mundo cheio de gente torpe, corrupta, vil ou simplesmente desprezível.
Mas, em The Long Goodbye, Altman e Gould exageraram, creio eu, no desenho de Marlowe como um eterno gozador de tudo, inclusive de si mesmo. Talvez porque tivessem se divertido muito ao fazer M.A.S.H., aquela sátira feroz ao militarismo, na época em que os Estados Unidos estavam atolados até o pescoço no pântano da Guerra do Vietnã, e achassem que seria gostoso repetir o exercício. Talvez até, em parte, porque Elliott Gould é daquele tipo de ator que sempre representa um único papel, bastante parecido consigo mesmo, seja qual for o personagem que está interpretando – um médico doidão na guerra da Coréia ou um detetive particular irônico, gozador, que atuou nos anos 40 e 50, mas aqui foi transportado numa cápsula do tempo para a Los Angeles pós-avalanche da contracultura, nos anos 70.
Uma loooonga sequência sobre a comida do gato
A trama de The Long Goodbye é bastante intrincada – as tramas criadas por Raymond Chandler são sempre bastante intrincadas, tão intrincadas que muitas vezes o espectador se perde. Eu, pelo menos, confesso que me perco. Digo: péra lá, mas como é que é mesmo? Afinal, qual é mesmo o cerne mesmo da história? Marlowe está investigando o que mesmo?
Mas Altman e seu roteirista Leigh Brackett, que adaptou o livro de Raymond Chandler, não estão nada preocupados em simplificar as coisas. Um tanto como Chacrinha, eles preferem complicar, e então recheiam a trama bastante intrincada com longas sequências que não têm nada a ver com ela – são apenas rodeios para mostrar como Philip Marlowe, esse sujeito tão parecido com o John McIntyre de M.A.S.H., tão parecido com Elliott Gould, se comporta na vida, no seu dia-a-dia.
Assim, por exemplo, há um loooongo intróito antes de a trama de fato começar. O gato acorda Philip Marlowe de madrugada. Marlowe acorda e imediatamente acende um cigarro. (Ele consegue fumar mais que o personagem de Michel Piccoli em As Coisas da Vida, que Claude Sautet lançou em 1970, o mesmo ano de M.A.S.H. Fuma em praticamente todas as tomadas do filme.) Acende um cigarro e começa a falar consigo mesmo e com o gato, em voz alta. Quer dizer, não muito alta, porque em geral o Philip Marlowe de Elliott Gould fala em voz baixa, quase como se estivesse rezando um terço, como antigamente as velhinhas beatas rezavam terço falando baixinho.
O Marlowe de Gould e Altman fala consigo mesmo sem parar um segundo sequer, como velhinhas beatas rezando terço, ao longo do filme inteiro. Fuma e fala sozinho na imensa maior parte dos 112 minutos de filme.
Procura comida para o gato, e não acha. Prepara uma gororoba para o gato. O gato, enjoado que nem ele só, se recusa a comer e continua miando de fome. Marlowe resolve então ir a um supermercado, às 3 horas da manhã. Mora num prédio de apartamentos pendurado numa colina íngreme de Los Angeles, ao qual se chega através de um elevador privativo. No apartamento ao lado mora uma meia dúzia ou mais de moças um tanto hippies, que estão sempre ou dançando ou praticando ioga, em geral sem roupa ou com pouquíssima roupa. Elas o cumprimentam quando ele passa – seis ou mais vozes dizem “Hello, Mr. Marlowe”. Uma delas pede para ele comprar alguma coisa no supermercado, para que possa fazer um bolo, e ele diz O.K., sem olhar para eles.
(Marlowe passará diversas vezes pelas vizinhas peladas ou quase sem sequer olhar para elas. O Marlowe de Altman e Gould, ao contrário do de Chandler, parece não ligar muito para mulheres.)
No supermercado, Marlowe travará este fascinante diálogo com um funcionário, um garotinho negro com cara de esperto:
Marlowe: – “Desculpe, não vejo aqui a comida de gato Courry Brand.”
Funcionário: – “O quê?”
Marlowe: “Comida de gato Courry Brand.”
Funcionário: – “Como se escreve isso?”
Marlowe: – “Courry Brand, C-O-U-R-R…”
Funcionário: – “Ah, essa aí acabou. Por que você não pega essa aí? Essa merda é toda igual.”
Marlowe: – “Acho que você não tem um gato em casa.”
Funcionário: “Por que eu precisaria de um gato? Eu tenho uma garota.”
Marlowe (agora falando para si mesmo): – “Há, há. Ele tem uma garota, eu tenho um gato.”
Mais tarde, Marlowe será preso, e na prisão municipal, reencontrará o funcionário do supermercado, e perguntará como vai a garota dele.
Mas o lance do gato ainda não acabou. Então Marlowe volta para casa, pega o elevador para subir até seu prédio pendurado no alto da colina, passa perto do apartamento das moças peladas ou quase, elas perguntam se ele trouxe a encomenda, ele diz que trouxe, entrega. Aí chega em casa, tranca o gato fora da cozinha, pega a comida de gato da outra marca que teve que comprar, joga dentro de uma lata vazia da Courry Brand que tinha sobrado na casa, e aí chama o gato. Diz para o gato que vai servir para ele a deliciosa comida de gato Courry Brand, tira uma porção da lata, bota num pires, serve para o gato – e o gato, enjoado que nem ele só, percebe que aquela não é a comida de gato Courry Brand e sai miando de fome.
Antes de abrir o portão, o porteiro faz uma imitação de Barbara Stanwyck
Me alonguei bastante na história do gato, mas é que o espírito do filme é exatamente este: entremeadas à trama intrincada, complicada, complexa, hard boiled, em que o detetetive Philip Marlowe apanha muito e é ameaçado de morte e enrolado pelas pessoas que vai encontrando, há diversas sequências assim, para realçar o jeitão Marlowe-Gould de se comportar, o jeitão Robert Altman de contar uma história de Raymond Chandler.
O Marlowe de Gould parece um malandrão carioca dos velhos tempos, quando ainda havia malandrões cariocas antes da época das quadrilhas do tráfico armadas de submetralhadoras. De uma certa forma, o Marlowe de Gould faz lembrar um pouco os personagens de Ankito, Zé Trindade e Grande Otelo nas velhas e maravilhosas chanchadas da Atlântida.
Como a ação se passa em Los Angeles, e como é um filme de Altman, há piadas com o cinema, com gente de cinema.
Temos então o porteiro do condomínio chique de Malibu. O porteiro adora imitar astros e estrelas de cinema. Quando Terry Lenox (Jim Bouton) sai do condomínio, em sequência paralela àquela longa de Marlowe com o gato, bem no início da narrativa, o porteiro, antes de abrir o portão para que o carro passe, exibe para o condômino sua imitação de Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue/Double Indemnity (1944): – “Eu não entendo. Não entendo de jeito nenhum. Nunca entendi, Walter. Eu simplesmente não entendo por que eu não entendo de jeito nenhum. Eu não…”
Terry Lennox diz alguma coisa tipo você está indo bem, e aí finalmente é liberado para sair do condomínio.
Um amigo pede a Marlowe que o leve até Tijuana, no México
Terry Lennox chega ao apartamento de Philip Marlowe depois que este acabou de tentar, sem sucwesso, alimentar o gato com uma comida de gato que não era a preferida do gato. Os dois são amigos, se conhecem há muito tempo. E então, em nome da amizade, Terry pede a Marlowe um favorzão: que o leve de carro, já, imediatamente, naquela hora da madrugada, para Tijuana, a primeira cidade do outro lado da fronteira mexicana
Marlowe tenta argumentar, mas acaba cedendo ao pedido do amigo. E o leva em seu carro até o outro lado da fronteira.
Chega em casa de volta já de dia, claro. Não dormiu ainda, e chegam dois policiais para interrogá-lo. Já viram o carro de Terry Lennox estacionado perto do carro do próprio Marlowe, e querem saber quando este viu aquele, e para onde o levou. Terry Lennox – informam os policiais – havia acabado de matar sua mulher. E Marlowe tinha que revelar o que sabia sobre o paradeiro dele.
Marlowe se recusa a entregar o amigo, e é levado preso. Fica preso por três dias. É solto porque a polícia de uma pequena cidade do México havia comunicado à polícia de Los Angeles que Terry Lennox havia se matado. Não havia mais necessidade de manter o possível cúmplice do assassino preso, já que o caso estava encerrado.
Assim que volta para casa, Marlowe recebe o telefonema de uma mulher, Eileen Wade (Nina van Pallandt, na foto abaixo), que deseja contratar os serviços do detetive porque seu marido, o famoso escritor Roger Wade (o papel do grande, em todos os sentidos, Sterling Hayden), havia desaparecido.
Nos anos 70, Los Angeles já era, evidentemente, uma metrópole absolutamente gigantesca, mas, por uma coincidência fascinante, o casal Wade mora exatamente naquele mesmo condomínio de ricaços em Malibu, junto do Oceano Pacífico, em que moram Terry Lennox e sua mulher. .
A coincidência é tanta que o espectador tem todo o direito de achar que aí tem coisa, que pode haver uma ligação entre os dois casais, ou, mais exatamente, que o marido de uma estivesse tendo um caso com a mulher do outro.
Já que estava exagerando nos maneirismos, Altman exagera também na violência
Mas haverá muita água para passar debaixo da ponte, muita pista falsa, muitas encruzilhadas, muitas idas e vindas, muita trama intrincada pela frente.
Vai surgir um mafiosão muito cruel e muito doidão, chamado Marty Augustine. Esse bandidão é interpretado por Mark Rydell, que eu conhecia como diretor de diversos filmes de alguma importância: Num Lago Dourado/On Golden Pond (1981), A Rosa (1979), Para Eles Com Muito Amor (1991), O Crime do Século (1996).
Já que estava mesmo exagerando nos maneirismos de Philip Marlowe, na falação dele consigo mesmo, e em muitos outros detalhes, Robert Altman resolveu exagerar também na violência do bandidão. Esse Marty Augustine fará com uma amante, Jo Ann (Jo Ann Brody), algo que consegue ser mais brutal, mais sádico, mais cruel do que o copo de café fervente que o personagem de Lee Marvin joga sobre o de Gloria Grahame, em Os Corruptos/The Big Heat (1953), de Fritz Lang, do que a paraplégica lançada escada abaixo em sua cadeira de rodas pelo personagem de Richard Widmark em O Beijo da Morte/Kiss of Death (1947), de Henry Hathaway, do que a amante queimada no rosto pelo mafiosão interpretado por Raymond Burr em Entre Dois Fogos/Raw Deal (1948), de Anthony Mann.
Para contrabalançar a escandalosa seqüência de violência, há muita brincadeirinha, aquele humor feito de ironia.
Lá vai Marlowe em direção ao condomínio de ricaços em Malibu, onde morava seu amigo Terry Lennox e onde mora sua agora cliente Eileen Wade. Atrás dele vem Harry (David Arkin), um tonto, zonzo de um capanga do malvadíssimo Marty Augustine. Marlowe diz para o porteiro que daí a pouco está chegando um conhecido, num carro assim assado – e ele adora Walter Brennan.
E em seguida chega o capanga Harry. Em vez de abrir o portão para ele passar, o porteiro faz uma longa imitação de Walter Brennan, já bem velhinho, mancando de uma perna, em Onde Começa o Inferno/Rio Bravo (1959), de Howard Hawks.
Altman conta que a estratégia de lançamento do filme foi errada
Robert Altman conta que houve erros no lançamento de The Long Goodbye, erros consecutivos e que se alimentavam um ao outro. Um erro: o filme não foi lançado primeiramente em Nova York. Maior metrópole do país, Nova York é cosmopolita, progressista, avançada, inteligente; Altman não diz isso com todas as letras, mas dá claramente a entender. O filme estreou primeiro em Los Angeles, Chicago, outros grandes centros e capitais pelo país afora – e não foi muito bem recebido.
Outro erro, segundo Altman: os cartazes não faziam jus ao filme, não indicavam o que era o filme. Os primeiros cartazes, diz Altman, mostravam Elliott Gould bonitão, segurando um revólver; uma loura linda; e um gato.
Aí então – conta Altman – ele encomendou um novo cartaz a um pessoal moderno, up to date, e desenharam um cartaz aos moldes da revista Mad, que, na época, era um tanto chegada à contracultura, aos contestadores do sistema. O filme estreou em Nova York com aquele tipo de cartaz, e foi um sucesso danado.
É absolutamente fascinante ouvir Robert Altman, o cineasta anti-Hollywood, anti-estúdio por excelência, ensinando como se deve fazer o marketing de um filme, como se deve vender um filme para fazer com que ele tenha sucesso na bilheteria. É mais ou menos como imaginar o Papa Francisco ensinando como formar uma multinacional que dê rios de dinheiro a seus acionistas.
A lição de Altman sobre como os produtores erraram ao lançar The Long Goodbye está num precioso documentário – Rip Van Marlowe – de pouco menos de meia hora, formado por uma entrevista do realizador e uma entrevista de Elliott Gould entremeadas, é claro, por algumas tomadas do filme. O documentário, que está na bela caixa de 2 DVDs A Arte de Robert Altman, lançada em 2015 no Brasil pela Versátil, foi feito por volta de 2001 – Gould cita que pouco antes do momento da entrevista estava filmando Ocean’s Eleven, a refilmagem do filme com Frank Sinatra e todo o Rat Pack de 1960, os dois no Brasil chamados de Onze Homens e um Segredo.
Altman parecia extremamente bem, uma belíssima figura, aos cerca de 75, 76 anos (morreria em 2006, aos 81 anos).
O grande realizador diz o seguinte: “Rip Van Marlowe toma o lugar de alguém que dorme por 20 anos, e, quando acorda, Elliott vaga pela filme. Essa era a nossa idéia, ele vagando nessa paisagem, neste filme. Tentando invocar a moral de tempos passados no início dos anos 70.”
Altman está se referindo, muito provavelmente, a “Rip Van Winkle”, um conto de Washington Irving publicado em 1819, sobre um personagem que viveu um pouco antes e também depois da guerra pela independência americana.
Um pouco mais tarde, Altman diz que aquele início dos anos 1970 foi uma época muito diferenciada da história dos Estados Unidos – havia os hippies, coisa e tal. “Tudo brilhava em uma neblina de fumaça de maconha. Decidimos fazer isso com todas essas referências a 1973 como se tudo fosse novo para Marlowe.”
Como se, assim como Rip Van Winkle, ele tivesse dormido durante 20 anos e acordado em um país diferente daquele que conhecia.
O que me leva à conclusão de que uma das coisas mais chatas do mundo, depois de ouvir alguém contar em detalhes o que sonhou na noite anterior, é ouvir um cineasta explicar o que pretendeu dizer com seu filme.
Se ele precisa explicar, é porque não conseguiu dizer o que queria.
Um final que não combina com o caráter de Marlowe – e é moralmente errado
Tenho profunda admiração por Robert Altman, mas fiquei um tanto irritado ao rever agora este The Long Goodbye. Achei maneirista demais, irritantemente maneirista. Transformaram Philip Marlowe em um babaca que, muito mais que irônico, é um cínico, um bobalhão que não acredita em nada, não dá importância a nada, não tem escala de valores alguma.
Não li o livro de Raymond Chandler, e não sei se o fecho do filme é o mesmo do livro, mas não engoli o final. Não apenas porque é contra a minha escala de valores, mas também porque não combina bem com tudo o que esse Philip Marlowe recriado por Altman e Gould faz ao longo de todo o resto do filme. Não tem sentido, não é lógica aquela reação final – apaixonada, raivosa, figadal, passional – de um sujeito que ao longo de todo o tempo fazia da ironia, da gozação, da non-chalance seu jeito de viver.
E é interessante: no documentário Rip van Marlowe Altman diz que só topou fazer o filme se no contrato houvesse uma cláusula dizendo que o final não poderia ser modificado de forma alguma.
Para Altman, o final tinha que ser aquele mesmo. Só podia ser aquele mesmo.
A mim, parece um final moralmente errado, ruim – e que não combina com todo o resto do filme.
Com todo o respeito que o grande Altman merece, a verdade me parece que é a seguinte: as cidades da América Profunda estavam certas quando não fizeram filas gigantescas para ver este filme.
Filminho de merda.
Ah, virou cult, é?
O fato de ter virado cult não impede que eu diga minha opinião: eta filminho chato, bobo, datado – e moralmente errado.
Anotação em novembro de 2015.
O Perigoso Adeus/The Long Goodbye
De Robert Altman, EUA, 1973
Com Elliott Gould (Philip Marlowe),
e Nina van Pallandt (Eileen Wade), Sterling Hayden (Roger Wade), Mark Rydell (Marty Augustine). Henry Gibson (Dr. Verringer), David Arkin (Harry), Jim Bouton (Terry Lennox), Warren Berlinger (Morgan), Jo Ann Brody (Jo Ann Eggenweiler), Stephen Coit (detetive Farmer), Jack Knight (Mabel), Pepe Callahan (Pepe)
Roteiro Leigh Brackett
Baseado na novela de Raymond Chandler
Fotografia Vilmos Zsigmond
Música John Williams
Montagem Lou Lombardo
Produção E-K-Corporation, Lion’s Gate Films. DVD Versátil.
Cor, 112 min
R, *
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