Garry Marshall morreu menos de três meses após a estréia deste Mother’s Day, no Brasil O Maior Amor do Mundo. O filme, o 30º título dirigido por ele, incluindo aí episódios de séries de TV, estreou nos Estados Unidos em 29 de abril de 2016. O diretor morreu no dia 19 de julho.
Seguramente deu tempo para Marshall ver que seu último filme não foi um estouro nas bilheterias, mas também não fez feio: teve um orçamento de US$ 25 milhões, bem modesto para os padrões do cinemão comercial americano, e rendeu, só nos Estados Unidos, US$ 32,49 milhões.
Não era um diretor de fazer um filme por ano, tipo Woody Allen. De jeito nenhum. Desde 1990 – o ano de Pretty Woman, aquele tremendo sucesso popular, US$ 178 milhões de renda nas bilheterias, o filme que transformou Julia Roberts na maior estrela do cinema mundial – até 2016, o ano de Mother’s Day e de sua morte, aos 81 anos de idade, Garry Marshall fez apenas 12 filmes.
E aí é que está: mesmo trabalhando no cinemão comercial de Hollywood, em geral com astros de salário milionário, fazendo filmes para os grandes estúdios, naquela linha de montagem absolutamente impessoal, Garry Marshall, como Woody Allen, como uns poucos outros cineastas, deixava uma marca personalíssima em cada uma de suas obras.
Dá para perceber um Marshall touch em seus filmes – em geral comedinhas românticas em que tudo, tudo, mas tudo sempre acaba bem, não importam quantos problemas graves tenham surgido pelo meio do caminho.
Os projetos desse sujeito que foi ator, roteirista, produtor e diretor em uma carreira de mais de meio século tinham tanto sua marca registrada que os três últimos parecem variações em torno de um mesmo tema. Idas e Vindas do Amor/Valentine’s Day (2010) é, como o título original indica, um mosaico sobre diversas pessoas às vésperas do Dia dos Namorados e no próprio. Noite de Ano Novo/New Year’s Eve (2011) é um mosaico sobre diversas pessoas às vésperas e no próprio dia do que os títulos, o original e o brasileiro, escancaram. E este Mother’s Day é um mosaico sobre diversas pessoas às vésperas e no próprio dia do que o título original fala.
O camarada era tão fiel às suas idéias que não descansou até conseguir reunir de novo, nove anos depois do estrondo de Pretty Woman, os dois protagonistas do blockbuster, Richard Gere e Julia Roberts. Os dois estrelaram então Noiva em Fuga/Runaway Bride (1999). Quando vi o filme, seguramente num momento de mau humor, anotei para mim mesmo que “tudo isso é absolutamente artificial como um hambúrguer do McDonald’s. É inteiramente bobo, absolutamente artificial e bobo”.
As pessoas mundo afora não estavam tão mal humoradas quanto eu no momento em que vi Runaway Bride, em 2000, e então o filme, que custou US$ 70 milhões, teve uma bilheteria de US$ 152 milhões. Foi o segundo filme de maior renda entre os que Garry Marshall realizou.
Os filmes de Gary Marshal são o exemplo bem acabado do que chamam de “filme americano”
“Absolutamente artificial como um hambúrguer do McDonald’s. Inteiramente bobo, absolutamente artificial e bobo.”
Sim, sim, sim: o tipo de filme que Garry Marshall fazia sempre atraiu mau humor, indignação, xingamentos ferozes.
De uma certa maneira – fiquei pensando agora, logo depois de ver este Mother’s Day, 16 anos depois de ter xingado Runaway Bride –, os filmes de Garry Marshall são o protótipo, o mais bem acabado exemplo do que, ao redor do mundo inteiro, as audiências de narizinho empinado que dizem gostar de “filmes de arte” chamam, com profundo desdém, indisfarçável nojo, de “cinema americano”, “filme americano”.
Não existe essa entidade que os cinéfilos que não perdem uma sessão da Mostra de Cinema de São Paulo, ou das mostras semelhantes mundo afora, chamam, narizinho arrebitado de desdém e nojo, de “cinema americano”. Isso é óbvio. Não se pode botar num único balaio de gato musical da Metro e Orson Welles, disaster movie e Arthur Penn, besteróis vários tipo American Pie e Martin Scorsese, superproduções de Cecil B. de Mille e os indies de John Cassavetes, os quase nazistas Desejo de Matar ou Dirty Harry e os humanistérrimos filmes de Frank Capra e John Ford, para falar só de uns poucos tipos de cinema que são feitos nos Estados Unidos.
Mas o fato é que os narizinhos arrebitados falam mal do “cinema americano”, do “filme americano”.
A diretora monegasca Danièle Thompson fez uma das melhores definições, na minha opinião, do que é o “cinema americano”, o “filme americano”, segundo essa visão do povo de narizinho arrebitado.
É uma definição brincalhona, bem humorada, gostosa – de um jeito de ver a vida oposta à do povo de narizinho arrebitado. É uma brincadeira, uma piada, uma boutade de quem na verdade ama profundamente os vários tipos de cinemas que se fazem naquele país.
Volta e meia cito novamente a brincadeira que Danièle Thompson faz na sua gostosa comédia romântica Fuso Horário do Amor/Décalage Horaire (2002). É que vale a pena:
A personagem interpretada por Juliette Binoche – uma das atrizes francesas que já trafegaram mais à vontade pelos diversos tipos de cinema americano – tinha sido proibida por pai e mãe de ver filmes americanos. E então ela conta para o espectador:
“Meu pai dizia que eram estúpidos, e minha mãe dizia que eles davam uma idéia errada na vida. Tudo bem: os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, os sem-documento encontram os documentos, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários. Tudo bem. Andy Warhol disse… Puxa, outro americano. Mas ele disse que todos deveriam ter direito a 15 minutos de fama na vida. Eu sempre achei que merecia um dia em que minha vida fosse igual a um filme americano.”
Quando a talentosa Danièle e seu filho Christopher Thompson escreveram essa fala, quando criaram o personagem da Binochinha em Décalage Horaire – eu tenho a absoluta certeza –, eles estavam pensando nos filmes de Garry Marshall.
Os filmes de Garry Marshall são exatamente assim: neles – vide Pretty Woman – as putas se casam com milionários.
Que maravilha que haja filmes em que os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, os sem-documento encontram os documentos, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários.
Que maravilha que o cinema não precise necessariamente nos ficar fazendo lembrar, o tempo todo, de que, como dizia Federico Garcia Lorca, “la vida no es noble, ni buena, ni sagrada”.
Irmãs tranquilas, resolvidas, pai e mãe reacionários, preconceituosos, racistas
Não há puta nem milionário em Mother’s Day – mas há um monte de gente que não está muito bem. E, assim que vamos conhecendo aquele monte de gente e seus problemas, alguns pequenos, outros sérios – os últimos filmes de Garry Marshall foram todos assim, estrutura multiplot, com muitos personagens em momento conflituoso –, podemos já ter certeza: quando a narrativa terminar, todos os problemas terão sido resolvidos, os pequetitos e os grandões.
Nos próprios créditos finais (como tantos e tantos filmes recentes, este aqui simplesmente não tem créditos iniciais), na hora do “cast of characters”, a relação dos atores que interpretam cada papel, o filme fala de quatro universos, quatro grupos de personagens.
* Há o universo das duas irmãs, Jesse e Gabi (respectivamente Kate Hudson e Sarah Chalke). Moram na mesma rua, uma de frente para a outra, em casas confortáveis, em Atlanta, a capital da Geórgia. (Ah, sim, toda a ação do filme se passa em Atlanta, há um monte de belas tomadas de Atlanta, e o Estado da Geórgia deu apoio à produção do filme.)
O drama das duas irmãs é que elas não contam a verdade sobre suas vidas aos pais, que vivem no Texas – Flo (Margo Martindale) e Earl (Robert Pine). Flo e Earl vivem num trailer, têm uma vida meio errante – mas são profundamente, profundamente caretas, retrógados e racistas. Jesse está casada, e bem casada, com um indiano, Russell (Aasif Mandvi), e teve com ele um filhinho lindo, Tanner (Ayden Bivek) – mas seus pais ignoram tudo isso.
Gabi está casada, e bem casada, com outra mulher, Max (Cameron Esposito, à esquerda, na foto acima), mãe de um garotão. Charlie (Owen Vaccaro). Os caretas, retrógados, racistas pai e mãe é claro que ignoram isso.
Jennifer Aniston faz a divorciada que ainda espera a volta do marido
* Outro universo gira em torno de Sandy (o papel de Jennifer Aniston). Sandy é um talento na área de design de interiores, mas anda afastada do mercado de trabalho. Cuida dos dois filhos, Mickey (Caleb Brown) e Peter (Brandon Spink), que estão aí com uns 9, 10 anos de idade. Está divorciada há alguns anos de Henry (Timothy Olyphant, na foto acima), mas, apesar de ser tão bela, está solteiríssima. E muito pior: quando, faltando poucos dias para o Dia das Mães, Henry diz a ela que precisa ter uma conversa, ela acredita que ele vá pedir para voltar. Isso quando, do meu lado, Mary, só de dar uma olhada rápida na coisa, já adiantava: ele vai é anunciar que vai se casar de novo.
Mary é esperta – mas o fato é que Mother’s Day é um filme sempre, sempre, sempre previsível.
Não dá outra: daí a pouco Henry e Sandy se encontram de novo – e ele anuncia que se casou com Tina (Shay Mitchell, também na foto acima), a gatinha super jovem por quem havia se apaixonado algum tempo atrás.
Sandy vai se sentir morta de ciúmes de Tina – não tanto por causa do marido, mas por causa dos filhos, que gostam da nova mulher do pai.
Julia Roberts faz uma grande estrela da televisão estadual
* Um terceiro universo gira em torno de Bradley (Jason Sudeikis), um sujeito aí dos 40 e tantos que perdeu a mulher faz uns dois anos. A mulher era uma tenente do Exército americano, e aparece em um filme que o viúvo vê morto de dor e saudade, na pele de Jennifer Garner.
Sem a tenente Dana Barton, Bradley – ele também um ex-militar, agora dono de uma academia de ginástica – tem que terminar de criar sozinho as duas filhas, Vicky (Ella Anderson), aí com uns 17 anos, e Rachel (Jessi Case), de uns 13.
As coisas se encaminham de tal maneira que a pobre Sandy, mãe divorciada, enfrentando a competição da mulher jovem do ex-marido pelo afeto dos dois filhos, vai se encontrar com o pobre Bradley, o viúvo triste com duas filhas para criar. Tudo jogo de cartas marcadas, tudo absolutamente previsível.
* Há um quarto universo, centrado no casal Kristin (Britt Robertson) e Zack (Jack Whitehall). Ele veio da Inglaterra, ela é de lá mesmo; estão juntos há alguns anos, já tiveram uma filhinha linda – mas Kristin não quer saber de casamento, apesar de toda a suave e apaixonada insistência de Zack.
* E há ainda um quinto universo, que de alguma ou outra forma tem contato com todos os anteriores, cujo núcleo é Miranda, uma espécie assim de Xuxa, ou Angélica, ou whatever – uma figura super hiper importante na televisão da Georgia. Hector Elizondo faz o papel de Lance Wallace, o agente da superstar televisiva. Miranda é interpretada por Julia Roberts.
Fiel às suas idéias, o diretor usa sempre os mesmos atores
E aqui voltamos àquele ponto importante: Garry Marshall é um sujeito que, no meio da grande indústria, conseguia manter sua assinatura pessoal.
Dá para imaginar um diretor de unidade de uma Volkswagen, uma Ford, uma Chevrolet, produzindo carros que levam sua assinatura, específica, diferente de todos os demais carros produzidos pela indústria?
O diretor é fiel aos atores que trabalham com ele. Por exemplo: Hector Elizondo tem participação – às vezes importantíssima, às vezes mínima – em cada um dos filmes do realizador.
Julia Roberts estava em início de carreira quando foi escolhida para o papel central de Pretty Woman. Voltaria a trabalhar com o diretor em Noiva em Fuga (1999), Idas e Vindas do Amor (2010) e neste Mother’s Day.
Ah, sim: é de Peggy Marshall a voz que abre a narrativa, falando das durezas de ser mãe. Peggy, ela também realizadora, é irmã de Garry; dirigiu, com mão firme, alguns bons filmes, belos exemplos de como podem ser deliciosos os “filmes americanos”, como Quero Ser Grande (1988), Tempo de Despertar (1990), Um Anjo em Minha Vida (1996) e, sobretudo, Uma Equipe Muito Especial/A League of Their Own (1992).
Ah, bem que a vida poderia ser como nos “filmes americanos”
Não há tristeza que sobreviva até o fim em um filme de Garry Marshall.
Ciumeira brava de Sandy, a divorciada cujo marido se casou de novo com uma gatinha muuuito jovem? O problema muito mais sério ainda de um casal de pais caretérrimos e racistas que de repente fica sabendo que uma filha está casada com um indiano e a outra está casada com outra mulher?
Tudo bem: nos filmes americanos, os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, os sem-documento encontram os documentos, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários.
A vida bem que poderia ser como nos “filmes americanos”.
Anotação em agosto de 2016
O Maior Amor do Mundo/Mother’s Day
De Garry Marshall, EUA, 2016
Com Jennifer Aniston (Sandy), Timothy Olyphant (Henry, o ex de Sandy), Shay Mitchell (Tina, a nova do ex), Caleb Brown (Mikey), Brandon Spink (Peter),
Julia Roberts (Miranda), Hector Elizondo (Lance Wallace, a agente de Miranda), Adreana Gonzalez (assessora de Miranda),
Kate Hudson (Jesse), Sarah Chalke (Gabi, a irmã de Jesse), Margo Martindale (Flo, a mãe de Jesse e Gabi), Robert Pine (Earl, o pai), Aasif Mandvi (Russell, o marido de Jesse), Cameron Esposito (Max, a mulher de Gabi), Owen Vaccaro (Charlie, o filho de Max e Gabi), Ayden Bivek (Tanner, o filho de Jesse e Russell),
Jason Sudeikis (Bradley, o viúvo), Ella Anderson (Vicky, a filha mais velha), Jessi Case (Rachel, a filha mais jovem), Loni Love (Kimberly),
Lucy Walsh (Jody), Beth Kennedy (Gwenda), Brittany Belt (Beth Anne), Britt Robertson (Kristin), Jack Whitehall (Zack), Gianna Simone (Val), Drew Matthews (Beanzie), Gary Friedkin (Shorty), Jon Lovitz (o dono do clube),
e, em participações especiais, Jennifer Garner (tenente Dana Barton, a mãe de Vicky e Rachel), e Penny Marshall (a narradora da fala inicial)
Roteiro Anya Kochoff Romano e Matthew Walker & Tom Hines
Baseado em história de Lily Hollander e Matthew Walker & Tom Hines & Garry Marshall
Fotografia Charls Minsky
Música John Debney
Montagem Bruce Green e Robert Malina
Casting Gail Goldberg e Barbara J. McCarthy
Produção Open Road Films, Rice Films, Gulfstream Pictures.
Cor, 118 min.
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