Uma Aventura no Deserto / Desert Blue

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Nota: ★★★☆

Duas palavras ficaram passando pela minha cabeça quando, já bem de madrugada, terminei de ver este Desert Blue, no Brasil Uma Aventura no Deserto, um filme bem pouco conhecido, creio, feito em 1998 por um sujeito chamado Morgan J. Freeman: simpático e Americana.

Morgan J. Freeman – nada a ver com o grande, monstruoso, belo Morgan Freeman.

É um filme que não tem lá muita importância, e eu sabia disso quando comecei a ver. Tinha gravado do cabo só por causa do elenco – estavam lá, em 1998, as então bem jovens Kate Hudson e Christina Ricci, mais Casey Affleck e Peter Sarsgaard, atores que teriam bastante destaque a partir daí. Fiquei curioso, gosto de ver filmes pouco conhecidos, pouco falados.

Não é, sem dúvida, um filme importante. Mas, ao final, concluí isso: é um pequeno filmezinho danado de simpático.

E um exemplo puro, perfeito, típico, acabado, de amor às Americana.

Gosto da palavra. Ela é citada com todas as letras no filme. Fui checar o sentido exato, e agora já nem preciso mais ir à cata do meu gigantesco Webster’s de 3 alentados volumes, basta googlar, e está lá no Merrian-Webster:

Americana, substantivo plural – e necessariamente começando com maiúscula. “Materiais concernentes a ou característicos da América, sua civilização, ou sua cultura; de maneira ampla: coisas típicas da América. A cultura americana.”

A própria língua, com os termos criados e usados na que foi a maior colônia inglesa de todas, reflete o ego exacerbado do povo: como se sabe, para eles America é o país deles, apenas, dze United States of America, God bless de US of A, como disse (com ironia, é claro) Paul Simon.

Mas acho que comecei a divagar.

Uma pequenina cidade que tem como símbolo a maior casquinha de sorvete do mundo

A trama de Desert Blue – criada pelo diretor Morgan J. Freeman, que é também o autor do roteiro – é daquelas que falam de um grupo grande de personagens. Vários deles vão sendo apresentados ao espectador nas sequências iniciais – e são tantos que a gente pode até se confundir.

zzdesertovaleestaEm vez de relatar tudo na ordem exata em que as sequências vão aparecendo – que é a forma com que eu em geral descrevo o início de um filme –, vou tentar simplificar.

O lugar em que se passa a ação é uma cidadezinha pequenérrima perdida no meio de um deserto, um daqueles desertos entre a Califórnia e o vizinho Estado de Nevada. A cidade – fictícia, é claro – se chama Baxter, por motivos que ficarão óbvios. Havia tido muita gente um século atrás, durante a corrida do ouro, mas já fazia décadas que a imensa maior parte das pessoas a havia abandonado.

Pela cidade passam uma estrada ligando cidades da Califórnia a alguma outro lugar em Nevada, talvez Las Vegas, e um gigantesco  aqueduto.

Baxter, um sujeito absolutamente visionário, havia criado ali, junto da estrada que a a cidade, uma gigantesca escultura – uma casquinha de sorvete, com o sorvete por cima. Com isso, ele havia posto a cidade no mapa – e a cidade acabaria tendo o seu nome. Ela passou a ser conhecida como a cidade da maior casquinha de sorvete do mundo – e deu origem a uma onda de pequenas cidades perdidas no interiorzão bravo do país que passaram a criar coisas como o maior hambúrguer do mundo, a maior lata de Coca-Cola do mundo…

Esculturas feiosas. A rigor, horrorosas, horrendas, horríveis. Kitsch. Cafonas. OK, tudo isso aí – Americana, em sua mais perfeita acepção: Materials concerning or characteristic of America, its civilization, or its culture; broadly: things typical of America.

Não dá para desmentir o Webster.

O visionário Baxter construiu um parque aquático – mas não conseguiu obter água

Mas não era só com a maior casquinha de sorvete do mundo que Baxter pretendia divulgar a cidade que ganhou seu próprio nome. Confiando em que conseguiria um acordo com a empresa de água responsável pelo gigantesco aqueduto que atravessa a cidade, ele deu início à construção de um gigantesco parque aquático, a “Praia Baxter – um lugar para a família se divertir”, como dizia uma placa que o espectador vê bem no início da narrativa.

Construiu as bases de algo tipo Wet’n Wild, do interior paulista, ou Beach Park, do Ceará, contando com a água que viria do aqueduto. Só que a administradora do aqueduto acabou fechando negócio com um grupo industrial que instalou, ali mesmo no município de Baxter, a fábrica de um refrigante, um rival da Coca-Cola, a Empire Cola.

E a Beach Baxter virou um elefante branco sem uma gota d’água.

Tudo isso que relatei aí aconteceu antes do início da narrativa. Todas as informações sobre fatos do passado vão sendo apresentadas aos poucos, através dos diálogos dos personagens.

A ação mesmo começa numa sexta-feira, véspera de um fim de semana em que acontecerá de tudo na cidadezinha de Baxter, 87 habitantes, conforme informa uma plaquinha na estrada.

Chegarão a Baxter, a partir daquela sexta, diversas pessoas de fora. Os primeiros forasteiros que vemos chegar – e que terão papéis bastante importantes na história – são uma dupla de pai e filha, Lance e Skye Davidson (John Heard e Kate Hudson). Ele é uma figuraça, um sujeito de bem com a vida, um otimista, que se apresenta como professor de estudos culturais, que dá aulas de cultura pop e atrações de beira da estrada, como a casquinha de sorvete e a praia criadas pelo visionário Baxter – ou seja, Americana. Lance Davidson é um professor de Americana! Mas não um acadêmico chato, emproado. Não, não: um sujeito apaixonado por aquele assunto, pelas “roadside atractions”, pelos “materials concerning or characteristic of America”.

A filha é uma chata de galocha. Skye Davidson é uma estrelinha em ascensão na TV, tem papel importante numa série, julga-se a coisa mais importante da face da Terra, e olha tudo em volta, as coisas e as pessoas, aquela caipirada danada, com profundo desprezo. E é uma maravilha ver como a jovem e lindérrima filha de Goldie Hawn se ajustou como uma luva ao papel. Kate Hudson estava em 1998, ano de lançamento do filme, na flor dos 19 aninhos.

(Christina Ricci estava com 18; Casey, o irmão mais jovem de Ben Affleck, tinha 23.)

DESERT BLUE, Christina Ricci, 1998, (c)Samuel Goldwyn Films

Christina Ricci interpreta uma adolescente doidinha de pedra

Os primeiros personagens que vemos são três garotos da cidade. Blue Baxter (o papel de Brendan Sexton III) é o filho mais novo do visionário Baxter que deu o nome à cidade. É um garoto sensível, que parece frágil; dedica-se a continuar o sonho do pai – prepara os brinquedos, as canoas, tudo, para quando chegar a água, que tenta negociar ainda com a empresa do aqueduto.

Seu maior amigo é Cale (Ethan Suplee), um garotão imenso, gordérrimo, que sonha em ser auxiliar de xerife, no lugar do pretensioso Keeler (Lee Holmes), que por sua vez quer ser o xerife da cidade ao lado.

O terceiro da turma é Pete Kepler (o papel de Casey Affleck), um apaixonado por aqueles pequenos carros que aqui chamamos de buggies, e ele chama de all-terrain-vehicle, veículo para todo tipo de terreno.

Pete namora Ely, uma adolescente bem doidinha – um papel perfeito para Christina Ricci. Doidinha de pedra, Ely é filha do xerife da cidade, e numa prova de que nem sempre filha de peixe peixinho é (ou seria o contrário?), se revela uma insana apaixonada por explosivos.

O gordão Cale também tem sua namorada, Haley (Isidra Veja), a filha do dono do armazém do lugar.

Chegam à pequenina cidade grandes equipes do FBI e da agência do meio-ambiente

Um gigantesco caminhão carregado do xarope de fórmula secreta que é a base da Empire Cola está chegando à cidade na mesma sexta-feira em que a ação começa – mas aí ele tomba, o líquido de fórmula secreta se espalha pela estrada formando algo parecido com neve, ou com a espuma que a sujeira do Rio Tietê provoca após passar pelo município de São Paulo.

O motorista do caminhão não ficou ferido no acidente – mas passa mal, fica muito mal, e acaba morrendo.

Pronto: pânico total, num país em que o pânico também faz parte das Americana, materials concerning or characteristic of America. Chegam grandes equipes federais, lideradas pelo agente Bellows (Michael Ironside), do FBI, e pela agente Summers (Aunjanue Ellis), do Ibama deles, a EPA, Environmental Protection Agency. Examinam o local do acidente, estabelecem barreiras, isolam totalmente o local para evitar contágio de doença que pode ser grave, fatal, letal, bombástica – ninguém entra, ninguém sai de Baxter, até que seja determinado exatamente que substâncias compõem o xarope que faz a Cola, e qual é o seu perigo real e imediato.

Para o professor de cultura pop, tudo bem ficar ali ao longo de todo o fim de semana.

Para a filha dele, a estrelinha de TV em ascensão, que no dia seguinte faria um importantíssimo teste diante de um diretor experiente, importantíssimo, é o absolutamente pior de todos os mundos. Não ter sinal de celular (ninguém em Baxter tinha ainda celular, e não havia ERBs na região), não ter TV a cabo, não poder estar em Los Angeles para o teste, e ter que conviver com aqueles caipiras babacas idiotas – ah, era tudo demais para a tão moderninha e metropolitana Skye.

Com uma rapidez estonteante, Skye passa de chata a super legal

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Talvez o ponto mais frágil de todo este filminho simpático, gostoso, seja a rapidez com que Skye passa de figurinha chata de galocha, insuportável, para alguém super legal, manera, cool, assim que conversa um pouco com o sensível Blue.

Os dois se chocam com a coisa dos nomes: Skye e Blue. Blue e Skye. Céu e Azul se encontraram no meio do deserto do Nevada uns 80 anos após o imigrante russo Irving Berlin ter composto “Blue Skies”, um dos maiores clássicos da Grande Música Americana. E me ocorre aqui a dúvida: será que o pai de Skye, o professor Lance Davidson, consideraria que a Grande Música Americana é parte da Americana?

Brincadeira. Deixa pra lá, vamos em frente.

Na verdade, não quero mais ir muito à frente.

Isso que relatei aí, em tantas linhas, é mostrado nos primeiros 20, talvez 30 minutos do filme.

O espectador fica sabendo que o pai do garoto Blue, o empreendedor visionário Baxter, havia morrido uns seis meses antes de a ação começar: um incêndio destruiu o hotel da cidade, e ele morreu queimado, enquanto dormia.

O administrador do hotel, que toca também a vendinha colocada junto da maior casquinha de sorvete do mundo, Billy (o papel de Peter Sarsgaard), está à espera do pagamento do seguro, mas a companhia de seguro está demorando a pagar. Diz que precisa fazer novos exames do local. De repente seus peritos virão com a suspeita de que talvez o incêndio tenha sido provocado.

A trama bolada pelo diretor Morgan J. Freeman ainda terá surpresas. E tudo se encaixará perfeitamente. Claro que não é o caso de antecipar aqui o que virá.

O autor da história e diretor faz poucos filmes, longe do cinemão comercial

Nascido em 1969, em Long Beach, California, Morgan J. Freeman estreou com um tremendo sucesso de crítica: Hurricane Street, seu primeiro longa, de 1997, foi o primeiro a ganhar três prêmios no Sundance, o festival de Cannes dos filmes independentes – o prêmio da audiência e os de melhor diretor e melhor fotografia. Este aqui foi seu segundo longa-metragem.

É um realizador que faz poucos filmes, e, ao que parece, prefere ficar à margem do cinemão comercial, mantendo-se como diretor de filmes independentes, de orçamento pequeno, que permitem maior liberdade de criação.

Leonard Maltin prestou atenção ao filme. Deu 3 estrelas, fez uma boa sinopse, e concluiu: “Personagens bem desenhados e um agudo sentido de tempo e espaço ajudam a fazer deste filme um vencedor.”

É mesmo fascinante como este pequeno filme é de fato bem feito, interessante – e simpático.

Fui gostando ainda mais dele à medida em que escrevia aqui. Enquanto escrevia, me ocorreu que, em matéria de expor paixão pelas Americana, este pequeno filme é irmão de uma obra também pequena dentro da filmografia de Clint Eastwood, ele também um dos sujeitos mais absolutamente apaixonados pelas Americana: Bronco Billy (1980), uma comedinha road movie que é uma declaração de absoluta paixão pelo Velho Oeste e pelas tradições que criaram the US of A.

Me ocorreu também que esses dois pequenos filmes, um desse diretor pouco conhecido, pouco badalado, de nome tão parecido com o ator magistral, outro do sujeito que se provou um dos melhores cineastas da História, fazem lembrar também um outro, um que não é pequeno, não, que ao contrário é imenso – Bye, Bye, Brasil (1980), de Carlos Diegues.

Ao contrário dos americanos, que têm a palavra Americana, não temos um termo para definir as brasilidades, as brasilíadas, as brasileirices. Mas temos o filme que fala deles todos, os “materiais concernentes a ou característicos do Brasil, sua civilização, ou sua cultura; de maneira ampla: coisas típicas do Brasil. A cultura brasileira.”

Preciso rever Bye, Bye Brasil para botá-lo no site.

Anotação em julho de 2016

Uma Aventura no Deserto/Desert Blue

De Morgan J. Freeman, EUA, 1998

Com Brendan Sexton III (Blue Baxter), Lucinda Jenney (Caroline Baxter), Kate Hudson (Skye Davidson), John Heard (professor Lance Davidson), Christina Ricci (Ely), Casey Affleck (Pete Kepler), Ethan Suplee (Cale), Isidra Veja (Haley), Peter Sarsgaard (Billy), Sara Gilbert (Sandy), Michael Ironside (agente Bellows), Aunjanue Ellis (agente Summers), Daniel von Bargen (xerife Jackson), Lee Holmes (Keeler, assistente do xerife), Rene Rivera  (Dr. Gordon)

Argumento e roteiro Morgan J. Freeman

Fotografia Enrique Chediak

Música Vytas Nagisetty

Montagem Sabine Hoffmann

Casting Susan Shopmaker

Produção Ignite Entertainment, HSX Films.

Cor, 90 min

***

 

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