Duas Garotas Românticas / Les Demoiselles de Rochefort

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4.0 out of 5.0 stars

Se fosse para enumerar os dez melhores musicais da História, eu pediria um tempo para pensar. E minha lista seria, é claro, motivo de todo tipo de crítica: não há lista que agrade a todos, toda lista é necessariamente falha, ou questionável, ou as duas coisas.

Mas, se a pergunta fosse sobre os cinco musicais de que eu mais gosto, seria muito mais simples. Les Demoiselles de Rochefort estaria lá, junto com seu primo quase irmão, Les Parapluies de Cherbourg.

Les Demoiselles de Rochefort é um dos mais belos, mais encantadores, mais alegres, mais extraordinariamente bem realizados filmusicais que já vi ou de que ouvir falar.

Quando Roger Ebert – que Deus o tenha num lugar confortável onde ele possa continuar vendo muitos filmes – escreveu que ver bons filmes nos fazem pessoas melhores, seguramente estava pensando em obras como Les Demoiselles de Rochefort.

Este aqui é um daqueles filmes muito especiais que deixam você, sem perceber, alguns milímetros acima do solo. E, quando você pousa de novo com os pés no mundo real, está melhor do que estava antes de começar a ver aquilo: está mais feliz, e portanto mais paciente com tanta coisa ruim que cerca você, mais compreensivo com as pequenas e as grandes bobagens que as pessoas fazem a cada momento a seu redor.

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Confesso que tive um certo medo de rever o filme. Bobagem!

Fazia bastante tempo que não revia o filme, e confesso, bastante envergonhado, que tive até um pouquinho de medo: xi, será que não vou me decepcionar, ao rever agora?

Às vezes isso acontece: a gente tem um carinho absolutamente especial por um filme que viu quando muito jovem e, ao rever, percebe que, ahnn, não é tão genial assim… Ou, muitíssimo pior, percebe que, ahnn, na verdade, ficou datado, tem coisas bem fracas – se for pensar bem, é ruim.

Revejo as anotações. Anotei que vi o filme em 1969, e revi, já com Mary, é claro, em 2004. Não posso garantir que tenham sido apenas essas duas vezes. Minhas anotações são boas, confiáveis, mas têm falhas: houve períodos conturbados em que deixei de anotar direitinho os filmes que via. Então não dá para dizer com segurança que esta vez agora foi apenas a terceira em que vi o filme. Me parece que já vi outras vezes, mas sempre num passado mais distante.

Dá parta confiar que a penúltima vez tinha sido em 2004, 11 anos atrás, portanto.

E que bobagem esse medo de me decepcionar agora. Revi o filme o tempo todo em absoluto estado de graça.

zzroche2 - certoUm cineasta apaixonado pelo cinema, por Agnès Varda e pelos encontros

Acho que não estaria errado se dissesse que Jacques Demy (1931-1990) foi um cineasta apaixonado pelo cinema, por Agnès Varda, sua mulher, pelo amor e pelos encontros e desencontros da vida, as peças que o destino prega nas pessoas. Não necessariamente nessa ordem, é claro.

Seus filmes falam basicamente sobre os encontros e desencontros, as peças que o destino nos prega.

OK, alguém poderia argumentar que encontros e desencontros são os temas básicos de absolutamente todas as histórias – da literatura, da dramaturgia, do cinema. Verdade. Mas tenho a absoluta certeza de que há um grupo de realizadores que tratou desse tema mais que todos os outros: Jacques Demy, Claude Lelouch e Krzysztof Kieslowski.

Na vida é um tanto assim, e nos filmes todos é um tanto assim, mas, nos desses três aí, as pessoas se encontram e se desencontram constantemente; passam pela mesma rua, cruzam-se sem se verem, para só se conhecerem bem depois.

Demy estabeleceu isso como verdade – e depois Lelouch e Kieslowski seguiram nesse caminho, e mais tarde muitas das comedinhas românticas usaram a mesma coisa. Medianeras, o fantástico filme do argentino Gustavo Taretto de 2011, por exemplo, usa e abusa desse tipo de coisa. Mas foi Demy que fez disso seu estilo pessoal: as pessoas se encontram e se desencontram constantemente; passam pela mesma rua, cruzam-se sem se verem, para só se conhecerem bem depois. Ou se reencontrarem.

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Um marco: o primeiro filme em que todos os diálogos são cantados

Esse tema dos encontros e desencontros estava no seu primeiro longa, Lola, de 1961, em que um sujeito que está de mal com a vida, um tal Roland Casssard, por acaso tromba com uma mulher – a Lola do título, que vem na pele maravilhosa de Anouk Aimée – que ele havia conhecido quando os dois eram bem jovens. Lola é uma ronda à la Max Ophüls, um quadrilha à la Drummond: fulano que amava fulana que estava com fulano, que saía com sicrana, que dava para um outro.

O terceiro filme de Demy foi Les Parapluies de Cherbourg, lançado em 1964. É um fiapo de história – assim como era um fiapo de história Um Homem, uma Mulher, de 1966, o filme também com Anouk Aimée que transformaria Claude Lelouch num dos raríssimos diretores a ganhar pelo mesmo filme a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.

A trama de Les Parapluies é assim: mocinho e mocinha se amam demais da conta; mocinho é convocado para servir o exército na guerra da Argélia; quando volta, a mocinha – que havia ficado grávida dele – estava casada. Com Roland Cassard, o personagem que havia vindo do filme anterior. Então, ao voltar, mocinho também se casa, com uma moça gentil, suave. Os dois amantes se reencontram numa véspera de Natal – e ali, onde outrora ribombaram hinos, não há mais nada.

zzroche4A trama de Les Parapluies, embora fiapinho, é linda, emocionante. Marcou meu coraçãozinho adolescente como se fosse um daqueles marcadores de gado que a gente vê nos westerns. O grande amor acaba – Jacquot Demy demonstrou, ou então eu erroneamente achei que ele demonstrava. Lamentavelmente, o que a gente achava que era a maior coisa do mundo, que fazia a terra tremer, simplesmente acaba, some, desaparece, vira poeira na memória.

Pequetito enquanto trama, história, reunião de eventos, Parapluies foi no entanto um marco: foi o primeiro filme jamais feito só com música, em que todos os diálogos são cantados. Não há em Parapluies uma única frase que não seja cantada. Quando a personagem de Catherine Deneuve, agora já uma senhora burguesa, esposa de Roland Cassard, pára na véspera de Natal num posto Esso que por mero acaso é do seu ex-grande amor Guy, ela se dirige à filha e pede para ela não buzinar – cantando!

(Se minha memória não me trai, ela diz, quer dizer, ela canta: “Le klaxon n’est pas un jeu”.)

E aí os dois ex-amantes se vêem pela primeira vez desde a despedida na estação ferroviária, de onde ele partiu para a guerra da Argélia, e eles conversam pela primeira vez desde que o grande amor acabou – cantando.

Este aqui é talvez o único filme em que todo mundo dança quase o tempo todo

Quando foi fazer seu segundo musical com o camarada e cúmplice Michel Legrand, em 1967, três anos depois de Parapluies, Jacques Demy foi menos radical: há diálogos não cantados em Les Demoiselles de Rochefort.

Quase tudo, no entanto, é rimado. Mesmo os diálogos não cantados são rimados. E são rimas ricas, interessantes, fascinantes, as que Jacquot Demy criou, para os diálogos sem música, e também para as letras das canções que são ouvidas em, digamos, 80% dos gloriosos 120 minutos do filme, que passam rapidissimamente, como se fosse um curta-metragem.

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Então Les Demoiselles não é totalmente, inteiramente cantado.

Em compensação, dança-se quase todo o tempo.

Um personagem está caminhando pela rua – ele meio caminha, meio que dança. Começa a só dançar – e as pessoas que vão passando por ele nas ruas, os transeuntes, todo mundo, todos os habitantes de Rochefort começam a dançar também!

Nunca, em nenhum musical, da Metro ou de qualquer outro grande estúdio de Hollywood, aconteceu de todas as pessoas dançarem no meio das ruas quase o tempo todo.

Transeunte, passante, neguinho que anda pela rua, todo mundo, absolutamente todo mundo dançar, só em Les Demoiselles de Rochefort!

E mesmo os gestos normais do dia a dia são como que coreografados. Lá pelas tantas, Madame Garnier (o papel da esplendorosa Danielle Darrieux) passa a mão pelo balcão de seu bar na praça central da cidade, como se estivesse fazendo uma afirmação peremptória, dando a palavra final – o gesto é quase uma dança, e a música de Michel Legrand realça isso com um grande acorde de final de canção.

Oito personagems principais, todos prontos para o grande amor

E, no libreto, na trama, Demy foi ainda mais radical do que havia sido nos dois filmes anteriores citados aqui.

Nesta fantasia musical de Demy, o grande amor – bem ao contrário do que acontece em Les Parapluies – prevalece.

Em Les Parapluies, o grande amor não dura mais que uns cinco anos. Se esfarela, fica cocô do cavalo do bandido – e, quando o casal que teve o grande amor se reencontra, não há sinos tocando, não há terra tremendo, não há absolutamente nada trincando as fibras do coração.

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Pois em Les Demoiselles o grande amor está aí, pronto para ser descoberto. É apenas uma questão de tempo. Jacques Demy, o autor, o roteirista, brinca com seus personagens, seus marionetes: olha só, vocês vão se encontrar, seus grandes amantes, só não chegou a hora ainda. Vocês vão se encontrar na vida – se não for antes, será no balé final do filme.

São, no total, 15 personagens com alguma fala – ou canto –, oito deles mais importantes na trama.

Os primeiros que vemos, na abertura do filme, são Etienne (George Chakiris, Oscar de melhor ator coadjuvante por West Side Story, de 1961) e Bill (Grover Dale). Os dois trabalham numa revendedora de motocicletas, e estão chegando a Rochefort para participar da feira comercial e de diversões que será armada na praça principal da cidade naquele fim de semana de verão.

Diversas equipes de artistas e artesãos estão chegando naquele momento à cidade. É sexta-feira pela manhã, conforme nos informa um letreiro, logo ao fim dos créditos iniciais.

Etienne e Bill têm suas parceiras, Judith e Esther (Pamela Hart e Leslie North, respectivamente), e os quarto dançam na praça principal enquanto começam a montar a estrutura do palco em que vão se apresentar – ao mesmo tempo em que outros grupos de artistas fazem o mesmo.

O único filme em que Catherine e Françoise trabalharam juntas como protagonistas

Nessa abertura, Jacques Demy e seu diretor de fotografia Ghislain Cloquet (um dos maiores nomes da fotografia do cinema europeu nos anos 60) presenteiam o espectador com alguns admiráveis planos-seqüências – aqueles planos longos, demorados, que vão acompanhando os atores sem corte algum. Filmar plano-sequência exige muito ensaio, muita precisão, em especial se o plano vai focalizar um número grande de pessoas, e esse é exatamente o caso ali desse início de filme, com dezenas de figurantes andando na praça.

Um plano-sequência, em especial, deixa o cinéfilo mesmerizado: a câmara pega toda a movimentação da praça, as dezenas de pessoas atarefadas montando seus palcos, suas barracas, gente dançando, gente cantando. E aí ela vai fazendo um zoom em direção a uma grande edificação de uns três andares diante da praça, e o zoom vai chegando mais e mais perto de uma janela do segundo andar, e aí a câmara entra na ampla sala que dá para a praça, e vemos les demoiselles de Rochefort, as duas garotas românticas do título brasileiro, as gêmeas Delphine e Solange Garnier, interpretadas pelas irmãs Catherine Deneuve e Françoise Dorléac.

Foi a terceira vez em que as duas irmãs contracenaram – e a única em que foram as protagonistas da história.

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Alguns poucos cineastas tiveram a sorte grande, a mega-sena de dirigir tanto Catherine Deneuve (nascida Catherine Fabienne Dorléac, em 1943) quanto Françoise Dorléac (nascida, com o mesmo nome que usou na vida artística, em 1942, a primogênita das quatro filhas de Maurice Dorléac e Renée Deneuve).

François Truffaut dirigiu Françoise em Um Só Pecado/La Peau Douce (1964), e Catherine em A Sereia do Mississipi (1969) e O Último Metrô (1980).

Roman Polanski dirigiu Françoise em Armadilha do Destino/Cul-de-sac (1966) e Catherine em Repulsa ao Sexo/Repulsion (1965).

Em um mesmo ano, 1964, Philippe de Broca dirigiu Françoise em O Homem do Rio e Catherine em O Irresistível Gozador/Un Monsieur de Compagnie.

Édouard Molinaro dirigiu as duas em A Caça ao Homem/La Chasse à l’Homme (1964). E elas estiveram juntas também, bem em início de carreira, em Les Portes Claquent (1960), de Michel Fermaud e Jacques Poitrenaud, um filme não lançado comercialmente no Brasil.

Jacques Demy dirigiu Catherine em Les Parapluies de Cherbourg (1964), e mais tarde em Pele de Asno (1970) e Um Homem em Estado Interessante (1973). E foi o único a dirigir Françoise e Catherine juntas e em cores, em muitas cores, nos papéis principais, neste filme aqui.

A mãe das duas moças ainda é jovem e é belíssima

Delphine-Catherine é bailarina e professora de balé. Solange-Françoise é compositora e pianista.

Quando a câmara de Ghislain Cloquet vem vindo desde a praça e invade a sala do apartamento das gêmeas, elas estão terminando de dar uma aula de balé para um grupo de crianças.

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As duas são filhas de Yvone Garnier (o papel da já citada Danielle Darrieux, à esquerda na foto), dona de um bar-lanchonete localizado bem na praça central da cidade, onde haverá todo o agito da feira de diversões no fim de semana.

No café conheceremos três dos coadjuvantes da história. Há Josette (Geneviève Thénier), a simpática garçonete; Pépé (René Pascal), o pai de Yvonne; e Subtil Dutrouz, um senhor de mais idade, velho conhecido de Pépé e freguês do bar.

Yvonne, senhora belíssima, teve as gêmeas quando era muito, muito jovem – e Etienne e Bill, que frequentarão o bar com assiduidade durante aqueles dias, dirão que ela parece mais irmã das gêmeas do que mãe.

Muitos anos depois das gêmeas, Yvonne teve um filho temporão, Boubou (Patrick Jeantet), que está então com uns oito, nove anos.

E há um cliente do bar que terá importância na história, um rapagão chamado Maxence, um pintor, tipo romântico, avoado, meio poeta, que está em Rochefort servindo na Marinha, prestes a concluir o serviço militar obrigatório. Maxence, interpretado por um belo Jacques Perrin jovenzinho e louro, fala sempre, para quem quiser ouvir, que tem o sonho de encontrar a mulher de sua vida. Ele até já a pintou – e o quadro está em exposição na galeria de arte pertencente a Guillaume Lancien (René Pascal), um sujeito chato, emproado, que namorava Delphine, a bailarina.

Nessa sexta-feira, no entanto, Delphine visita a galeria e rompe o namoro. Não estava mesmo interessada naquele chato daquele Guillaume.

Mas ela vê, na parede da galeria, o quadro pintado por Maxence que… é a sua cara, escrachada! Delphine pergunta quem fez aquele quadro, Guillaume mente que o pintor viajou para longe.

Quando Andy-Gene Kelly conhece Solange, os sinos tocam, a terra treme

Faltam ainda dois personagens, e os dois são importantes.

Simon – o papel de um Michel Piccoli que ainda tinha cabelo! – é ligado a música. Estudou no Conservatório em Paris; continua amante de música, mas não toca profissionalmente – tornou-se dono de uma loja de instrumentos musicais e partituras. Poucos meses antes de a ação começar, tinha deixado Paris e se instalado ali em Rochefort.

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Solange, a compositora, pianista, é freguesa da loja de Simon, compra lá papel pautado para escrever o que compõe. Até parece que Simon arrasta uma asinha por ela – embora, na verdade, Simon esteja ainda apaixonado por uma mulher que conheceu no passado, uns dez anos atrás. A mulher havia conhecido um milionário e se mudado com ele para Acapulco, mas não saía da cabeça do simpático Simon, cujo sobrenome é Dame – algo que o perturba bastante.

Naquela sexta-feira, Solange vai até a loja de Simon e conta para ele que está pensando em se mudar para Paris. Simon conta que poderá interceder por ela junto ao famoso músico americano Andy Miller, que havia sido seu colega no Conservatório, e desde então ficara muito famoso. Por uma grande coincidência, Andy tinha chegado recentemente dos Estados Unidos a Paris.

Andy é o último personagem que faltava ser apresentado.

De Paris ele resolve viajar até Rochefort, para reencontrar o velho amigo Simon. Chega num conversível branco, ele mesmo vestido de branco – na pele de ninguém menos que Gene Kelly.

São demais os perigos desta vida, a vida vem em ondas como o mar, e a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida, como escreveu Vinicius, e então, numa cena mágica, Solange, que tinha ido pegar seu irmãozinho Boubou na escola, vai catar no chão da rua os cadernos e lápis que o garoto estouvado tinha deixado cair, e Andy estava passando por ali naquele exato instante, e se abaixa para ajudar a bela moça a recolher o material.

Olham-se, e os sinos das catedrais tocam, e a terra treme – mas Demy é Demy, e então Andy comenta que a combinação de Solange está aparecendo, e ela vai embora com Boubou. E Andy olha para o chão e percebe que aquele anjo ruivo havia deixado cair uma partitura – a partitura em que ela havia anotado o terceiro movimento do concerto que vinha compondo.

..., Gene Kelly, ...

Andy sai dançando pelas ruas de Rochefort, e todo mundo que está nas ruas, todo mundo, também dança. Como não dançar, se estamos em filme de Jacques Demy com música de Michel Legrand, e no centro da tela está Gene Kelly?

Para os dois visitantes, seus agora assíduos fregueses, Etienne e Bill, a bela Yvonne-Danièle Darrieux contará que, uns dez anos antes, teve um grande amor, mas, por uma besteira, uma bobagem – o sobrenome dele, ridículo, patético –, fugiu da vida dele, desapareceu. E fez chegar a ele, através de um amigo, a informação, obviamente falsa, de que havia se mudado para o México. Tudo isso porque ela não suportava a idéia de se chamar Madame Dame!

A trama é uma maravilha. E a forma com que é encenada é sublime

Delphine, a bailarina, e Maxence, o pintor. Andy, o músico, e Solange, a compositora. Yvonne e Simon Dame.

Três duplas de pessoas feitas uma para a outra.

En passant, Jacques Demy ainda inclui na sua história de encontros e desencontros e reencontros um elemento que agrada às platéias francesas, na verdade às platéias do mundo inteiro: algo que eles chamam de fait divers, expressão que engloba crimes, acidentes. Está agindo, ali em Rochefort, naqueles dias, um assassino!

A história, o libreto, a trama é uma maravilha. Mas a forma com que ela é encenada, interpretada, cantada, dançada, musicada… Ah, é algo sublime.

Les Parapluies havia vencido a Palma de Ouro em Cannes, e tido 5 indicações ao Oscar, em dois anos diferentes. Em 1965, teve indicação ao prêmio de melhor filme estrangeiro. Mas participaria da premiação novamente em 1966, concorrendo aos Oscars de roteiro original, melhor canção (para o tema principal, em inglês “I will wait for you”), melhor trilha sonora original e melhor trilha adaptada.

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Talvez isso explique por que Les Demoiselles, que veio depois, não tenha tido tantos prêmios. É muito pouco comum que o Oscar repita premiações ao mesmo realizador. O fato é que esta pérola aqui mereceu apenas uma indicação ao Oscar, na categoria melhor trilha sonora. O filme não participou da mostra competitiva de nenhum dos três principais festivais, Cannes, Veneza e Berlim.

O que não é demérito algum.

“Querem ouvir Stravinsky? Mozart? Jazz? Ou Michel Legrand?”

Algumas informações esparsas – trivia, como diria o IMDb:

* Há momentos em que Jacques Demy se permite fazer piadas internas, brincadeiras com os companheiros. Uma hora lá alguém se dirige aos amigos Etienne e Bill e pergunta: – “Ah, vocês são o Jules e o Jim?” Mais adiante, Etienne e Bill estão visitando as gêmeas no apartamento delas, e Solange pergunta o que eles querem ouvir: – “Querem Stravinsky? Mozart? Jazz? Ou Michel Legrand?”

* Há uma clara citação de West Side Story, o musical que havia feito a cabeça de todo mundo que gosta de musical – além da presença no elenco de Georges Chakiris. É no final da noite de sexta-feira, quando todos os principais personagens aparecem numa sequência que reúne tomadas de diferentes locais, todos cantando, cada um cantando um tema e falando sobre um assunto específico, mas quase como se fosse em uníssono. É uma homenagem aberta à sequência do início da noite em que todos os principais personagens de West Side Story cantam ao mesmo tempo, quando a noite decisiva – “Tonight”! – está chegando.

* Agnès Varda supervisionou pessoalmente a restauração do filme, feita em 1996. É a versão que foi lançada no Brasil em DVD.

* La Varda tem uma participação especialíssima, uma brincadeirinha à la Alfred Hitchcock. A primeira vez em que vemos Simon Dame, em sua loja de instrumentos musicais, ele está recebendo um grupo de freiras, que foi comprar a partitura se não me engano da Ave Maria de Schubert. Agnès Varda faz uma das freirinhas.

* Apenas Danielle Darrieux canta com sua própria voz – todos os demais atores foram dublados. Catherine Deneuve já havia sido dublada em Les Parapluies, e foi de novo aqui – embora saiba cantar, como provou, com louvor, bem mais tarde, em 8 Mulheres (2002), de François Ozon.

* Haviam se passado apenas três meses do lançamento do filme quando Françoise Dorléac morreu, em um acidente em seu carro esporte em Nice, na Côte d’Azur.

zzroche99 - certo

* Em 1992, dois anos após a morte de Jacques Demy, Agnès Varda filmou um documentário chamado Les Demoiselles ont eu 25 ans, as senhoritas fizeram 25 anos, rodado na cidade de Rochefort, que homenageou postumamente o cineasta e a atriz com uma Avenida Jacques Demy e uma Praça Françoise Dorléac.

* Depois de Demy ter conseguido cinco indicações ao Oscar com Les Parapluies e mais outra indicação por Les Demoiselles, um filme com Gene Kelly, George Chakiris e outros atores americanos, não poderia dar outra: Hollywood o chamou para filmar lá. Ele fez nos Estados Unidos Model Shop, uma espécie de continuação de Lola, com Anouk Aimée no mesmo papel. O filme não foi um grande sucesso, e o cineasta voltou para a França. A influência do que ele viu na sua temporada americana, na época em que o flower power estava explodindo, pode ser vista em Pele de Asno, seu filme de 1970, um delicioso conto de fadas mais uma vez com Catherine Deneuve, todo impregnado da contracultura dos hippies.

zzroche perrin - certo

“Um esconde-esconde sentimental faz cantar e dançar os intérpretes”

O Guide de Films de Jean Tulard, obra monstruosa, de mais de 3.300 páginas em três grossos volumes, 15 mil filmes comentados, não classifica todas as obras com estrelas. A rigor, só uma minoria merece cotações, e Tulard e seus colaboradores são exigentérrimos. Já passei por poucos filmes que merecem 3 estrelas. Os de 4 são raríssimos. Les Demoiselles de Rochefort está lá com 4 estrelas:

“Para este filme, Jacques Demy repintou Rodchefort de verde, amarelo, rosa, e azul…”

Sim, é verdade. O diretor de arte do filme, Bernard Evein, achou necessário repintar 40 mil metros quadrados das fachadas da cidade, para aparecer bem na foto, digo, no filme.

“Para este filme, Jacques Demy repintou Rochefort de verde, amarelo, rosa, e azul, e seu filme, ele também, ilumina as cores da vida, enquanto um esconde-esconde sentimental faz cantar e dançar seus intérpretes. É uma comédia musical vivamente animada que provoca um prazer e uma euforia constantes. A música é calorosa, os atores são belos e simpáticos. Estamos em pleno conto de fadas – e é maravilhoso.”

zzroche fim - certo

Anotação em outubro de 2015

Duas Garotas Românticas/Les Demoiselles de Rochefort

De Jacques Demy, França, 1967

Com Catherine Deneuve (Delphine Garnier), Françoise Dorléac (Solange Garnier), Jacques Perrin (Maxence), Danielle Darrieux (Yvonne Garnier), Michel Piccoli (Simon Dame), Gene Kelly (Andy Miller), George Chakiris (Etienne), Grover Dale (Bill), Geneviève Thénier (Josette), Henri Crémieux (Subtil Dutrouz), Jacques Riberolles (Guillaume Lancien), Pamela Hart (Judith), Leslie North (Esther), Patrick Jeantet (Boubou Garnier), René Pascal (Pépé)

Argumento e roteiro Jacques Demy

Fotografia Ghislain Cloquet

Música Michel Legrand, letras Jacques Demy

Montagem Jean Hamon

Figurinos Marie-Claude Fouquet e Jacqueline Moreau

Cor, 120 min

Produção Mag Bodard e Gilbert De Goldsmith

R, ****

Título nos EUA: The Young Girls of Rochefort.

26 Comentários para “Duas Garotas Românticas / Les Demoiselles de Rochefort”

  1. Você não exagerou no poder de síntese desta vez, não, Senhorita?
    Escrevo 400 linhas e você comenta com duas palavras?
    Hê hê…
    Adorei.
    Um abraço.
    Sérgio

  2. Como assim, a única foto do meu muso Gene Kelly é um print com uma resolução ruim? (Não tenho muitas fotos dele nesse filme, mas as que tenho são melhores que essa. Topa trocar? =D).

    Nunca consegui ver esse filme inteiro, confesso. Até porque não sou fã de musicais, e acho a história fraquinha. Então só vejo as partes com Gene, ainda assim, nauseada por causa da dublagem. Pelo pouco que consegui obter de informação, o que era pra ser uma homenagem aos musicais de Hollywood, acabou sendo um fracasso. Nem *dançarinos de verdade eles se preocuparam em colocar no filme (como é que tiveram coragem de colocar amadores para dançarem ao lado de Gene Fucking Kelly???).

    Acho que Gene percebeu que o filme seria uma droga (ele disse que não gostou do resultado), e nem se preocupou em criar uma coreografia para sua dança principal, na loja de instrumentos musicais. O número dele ali é cópia da coreografia de cortejamento que ele fez para dançar com Leslie Caron, em uma das sequências de “An American in Paris”; a diferença é que ele a simplificou, e os ângulos escolhidos por Demy são muito ruins (as outras sequências de dança têm ângulos péssimos também). Sem falar que “Love is Here to Stay” é um milhão de vezes mais bonita que a música que toca em TYGOR, ainda por cima cantada pelo próprio Kelly, com aquela voz rouca dele.

    Conversando sobre isso com uma amiga que também gosta do Gene e de filmes antigos, ela disse que ele deve ter pensado: “Não vou ser “um americano em Paris”? Deixa eu repetir ‘saporra’ aqui.” Hahaha. É justamente essa a impressão que tenho toda vez que vejo a sequência. Ainda assim, ele arrasa dançando, dando giros e (fazendo questão de dar) saltos; mostrando ótima forma aos 55 anos. As partes mais difíceis ficaram com ele, que até gira carregando a mulher nos braços. Françoise Dorléac sabia muito mal dançar o básico, se é que sabia.

    Gene tinha muito carisma com crianças, e aparece dançando entre elas, mais uma vez; e nisso também lembra “An American in Paris”, embora ele tenha feito o mesmo em “Living in a Big Way”, um filme seu pouco conhecido fora do círculo dos que não são die-hard fans.

    Também não perdôo o responsável pelo figurino, que o fez vestir camisas cor-de-rosa e lilás horrorosas (e curtas, limitando os movimentos; ele ficou claramente incomodado com o comprimento, e puxa a camisa várias vezes enquanto dança, tadinho). E quem será que foi o gênio, que num filme tão cheio de cores, colocou Gene e Françoise Dorléac para dançarem num cenário branco, vestindo cores pastéis? Nem é preciso falar que ficou monocromático.

    *Gene Kelly disse: “Todos eles erraram ao supor que seria fácil aprender a dançar somente para o filme, porque dançar parece muito fácil. Mas não é”. [tradução minha]

    [Dei um copy and paste no comentário que eu havia feito lá no 50ADT. Só mexi um pouco, mas ficou grande do mesmo jeito. he]

  3. Estou louquinha para assistir este filme.
    Lendo a síntese que você fez, cheguei a ver o filme, mas me faltaram as musicas.Será que conseguirei vê~lo na Netflix?

  4. Eu sou como aqueles comerciais chatos de TV, que vendem produtos: “Pensa que acabou? Não, tem mais!”
    Depois de ter escrito o comentário anterior lá no 50ADT, e de você ter me mandado seu texto, tentei ver o filme inteiro, e não somente as partes com Gene. Fui até a metade, dando fast forward nas músicas (pessimamente) cantadas. Acabei não retomando. Que filme chato, Senhor! Que me perdoem vocês que são fãs. Acho que é preciso ter vivido nessa década para gostar dele, sei lá. Ou é preciso gostar muito de musicais de qualquer tipo, não só dos unânimes e timeless, como “Singin’ in the Rain”. Até comentei com a Cora Rónai sobre isso, mais especificamente sobre “Os Guarda-Chuvas do Amor”.

    Depois de ter lido seu texto, percebi que não foi só a voz do Gene que foi dublada, mas ainda considero uma heresia e um horror terem dublado a voz linda e rouca dele (o dublador tem uma voz medonha!). E para quem não sabe, GK falava francês fluentemente e sabia cantar.

    Ao menos não estou sozinha na minha opinião sobre TYGOR. Dois outros fãs de Kelly escreveram: “Awful movie, great to see Gene dance at age 55 and looking great, hated the dubbed scenes…” E esse foi super otimista: “What can I say? It was a Gene Kelly movie and that alone made me watch it. What more do you need?”
    É, what more do you need? Por isso só vejo as cenas com ele.

    Em um dos livros sobre Gene, seu biógrafo oficial, Clive Hirschhorn, diz que o coreógrafo de TYGOR, um jovem irlandês chamado Norman Maen, ainda não tinha aprendido a coreografar para as câmeras, e que por isso, as danças foram “desastradamente cortadas, sem senso de ritmo ou movimento.” Ele fala ainda que Françoise Dorléac e Catherine Deneuve foram incapazes de dar vida aos números (e o fato de que elas mal sabiam dançar ou cantar também não ajudou, segundo ele).

    Mas uma coisa boa, ao menos para os fãs de Kelly, é que Hirschhorn conta que Jacques Demy usou os figurinos de marinheiro como um motivo estético referente a “On The Town”, um dos grandes sucessos da MGM e da carreira de Kelly, e o primeiro musical a filmar em locações externas.
    Por fim, ele diz: “And although as a film it is a very sad occasion indeed, it is at least proof of the continuing legend Gene created for himself in the fifties.”
    E, ao contrário de mim, Clive viu um lado bom na história:
    “O que quer que digam sobre TYGOR, e há muito para se dizer (a maior parte desagradável) ao menos foi uma ideia original.”

    Só uma última curiosidade sobre Kelly e esse filme francês: ele contou que aceitou *participar pq disseram que teria muito mais números do que o anterior de Demy, pq fazia um tempo que ele não fazia musical e pq ficaria apenas 6 semanas longe de casa. Sobre esse último motivo, ele disse que quando voltou para os EUA, parecia que seus filhos tinham envelhecido vinte anos. E desde então ele decidiu não fazer mais nenhum trabalho em que precisasse ficar longe deles. Acho que muita gente não sabe, mas Gene foi a primeira opção do estúdio para dirigir “Cabaret”, só que como precisaria ficar um ano fora do país, e portanto, longe das crianças (no meio de uma situação muitíssimo triste de doença terminal de sua mulher), acabou recusando o trabalho, mesmo com muita insistência do produtor. E foi Gene Kelly quem indicou Bob Fosse.
    (* Clive Hirschhorn fala que foi o caso de amor de Gene com a França, e sua admiração por Demy, que mais pesaram para que ele aceitasse o papel).

    PS: Só consigo chamar esse filme pelo título em inglês “The Young Girls of Rochefort”, por isso escrevo TYGOR (às vezes esqueço de colocar o “T”, de tão grande que é). Não gosto de francês, e nem sabia o nome em português, até ler seu texto.

    PS2: Se a Senhorita escreve só duas palavras e um emoticon, eu escrevo por ela, por mim e pelos outros leitores (o comentário dela me lembrou como o roteiro é ridículo). Não sei escrever pouco quando se trata do meu divo Gene Kelly. Ou melhor seria dizer que não sei escrever pouco? De todo modo, não foram informações vãs para quem gosta realmente de cinema, creio eu, ainda que minha opinião (e as das pessoas que coloquei) sejam divergentes das suas.

    PS mais importante: Eu tinha começado a escrever meu comentário anterior ontem, quando só havia o print ruim do Gene ilustrando o post. Mas minha proposta da foto ainda está de pé.

    And last but not least: Krzysztof Kieślowski é amor. Pena ter morrido tão cedo. Fumante inveterado.

  5. Hêhê… Comentários!
    Dona Lúcia, acho difícil encontrar o filme na Netflix. Mas a senhora poderá ver aqui, na sua próxima vinda a São Paulo.
    Se a gente pudesse somar o gosto da Senhorita pela síntese com a verbosidade da Jussara quando escreve sobre algo relacionado a Gene Kelly, e depois dividisse por dois, acho que a gente teria dois textos de bom tamanho!
    Jussara, deixo todas essas suas críticas ao filme que eu adoro não porque eu seja um grande democrata, mas porque gosto de você, e então te perdoo!
    Um abraço às três.
    Sérgio

  6. Eu AMO esse filme, e por isso acho muito bom, mas com um elenco desses qualquer filme pode ser ruim, assisto feliz do mesmo jeito. Acho importante salientar minha alegria em assistir um filme antigo desses e pensar que Danielle e Michel estão vivos. Gente, como eu amo esses dois!

  7. Um dia, o senhor escreverá um texto sobre meu filme favorito de todos os tempos. Nesse dia, prometo um textão do tamanho do Maracanã nos comentários rsrsrsrsrsrs

  8. Qual é o seu filme favorito de todos tempos, Senhorita? Não vale não falar. Tenho uma curiosidade feminina!

  9. Mas assim não terá graça… Tem que seguir seu ciclo de filmes naturalmente, até um dia esbarrar no meu rsrsrsrs

  10. Haha… Não é “Umberto D.”, pois este é o meu segundo favorito. Não é “Cão Branco”, pois este é o meu terceiro favorito. Não tem Deus (Gregory Peck) no elenco. Não tem o homem da minha vida (Peter Falk) no elenco.
    Mas é um filme velho, claro. Um dia vocês dois se encontrarão 🙂

  11. Ainda sobre as duas garotas românticas, eu sempre achei LINDO, MARAVILHOSO, SINGELAMENTE FOFO aquele número de Gene e Françoise, exatamente por ser monocromático, uma cena singela e simples no meio de todo colorido do filme.

  12. Só vi hoje que você postou a resposta aqui. Pensei que tivesse sido apenas por e-mail (pensei errado, como diz meu pai. haha).
    Pois é, Sérgio, cada um com a sua opinião, não é mesmo? A grande Cora Rónai, que eu admiro e acompanho há mais de dez anos, me disse que viu novamente “Os Guarda-Chuvas do Amor” e continuou achando muito chato. Eu tentei ver este aqui (mais de uma vez) e não consegui. Se não fosse pelo Gene Kelly, nunca teria passado nem perto.

    Eu tendo a ver as sequências de dança com mais criticismo, e achei os números muito pobres. Para alguém que já viu todos os filmes com Gene Kelly (musicais e não musicais), e que reconhece quando uma coreografia foi feita por ele (comentário de die-hard fan à parte: o homem era extremamente inteligente — não sou fã dele apenas pelo seu corpo atlético nem pelas lindas pernas — e criativo), é notório que ele leva os números de dança sozinho, que não foi ele quem escolheu os ângulos das sequências em que participa (claro, ele não era o diretor) etc.
    Mas essa é apenas minha opinião. E óbvio, que como não gostei da história, ela é diferente da visão dos que amam o filme. Vamos todos sobreviver a isso.
    Abraços.

  13. Adorava ver este Filme, “Duas garotas apaixonadas”. Passava geralmente de madrugada.
    Não tem como assistir este Filme e/ou baixá-lo?! Gostaria muito!
    Grata.

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