O Homem Errado (1956) é um dos filmes mais sérios, pesados, densos e realistas de todos os do mestre Alfred Hitchcock – ao lado de Lifeboat, no Brasil Um Barco e Nove Destinos. É também, seguramente (isso é um pequeno detalhe, mas é interessante), o filme de Hitch com o maior número de palavras escritas na tela.
É um filmaço, uma obra-prima.
O fato de ser absolutamente sério, de ser um drama pesado, realista, me parece muito importante, porque é algo pouquíssimo comum na obra de Hitchcock. A grande maioria de seus filmes tem, como assim um segundo tom, logo abaixo da coisa de perseguir o suspense, o bom humor, a ironia, a gozação. Ele deve seguramente ter se divertido ao fazer uma comédia escrachada como O Terceiro Tiro/The Trouble With Harry (1955); tanto na fase inglesa, como A Dama Oculta/The Lady Vanishes (1938) quanto nos seus últimos filmes, Frenesi/Frenzy (1972) e Trama Macabra/Family Plot (1976) o tom cômico aparece com imenso destaque.
Há muito humor também, por exemplo, em Janela Indiscreta/Rear Window (1954), Ladrão de Casaca/To Catch a Thief (1955), Intriga Internacional/North by Northwest (1959).
E mesmo filmes de crime, mistério, drama, intriga, traição – Festim Diabólico/Rope (1948), Disque M para Matar (1954), Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958), Psicose/Psycho (1960) – são mais próximos de uma encenação de um show de horrores, uma fantasia sobre a maldade, um rock horror show, do que de uma narrativa estritamente realista.
Até as rápidas aparições do diretor no meio de uma sequência qualquer de seus filmes eram uma coisa brincalhona, lúdica, bem-humorada. Um toquezinho pastelão.
O jeito com que ele empostava o vozeirão na série de TV Alfred Hithcock Presents, ou nos trailers ou filmetes publicitários de seus filmes, a forma cavernosa de repetir sempre as palavras “corpse” e “murder” – cadáver, assassinato – com um prazer quase sensual, tudo isso era um tanto cômico. Uma brincadeira. Uma encenação.
Sério, voz normal, Hitch diz: “esta é uma história verdadeira, cada palavra dela”
Em O Homem Errado, ele faz uma aparição na tela – mas não no que os americanos chamam de cameo role, aquela participação especial brincalhona. Ele surge na tela de imediato, logo após o logotipo do estúdio, a Warner Bros. Vem caminhando em direção à tela, enquanto a câmara vai sendo puxada para trás, mantendo sempre a mesma distância da figura rotundfa que se dirige ao espectador. O plano é geral, as sombras dominam tudo; há apenas uma luz atrás de Alfred Hitchock,, e portanto vemos a silhueta do homem dos pés à cabeça – aquela silhueta facilmente reconhecível –, vemos a imensa sombra dele mesmo projetada à sua frente, mas não conseguimos divisar suas feições.
Ele se dirige ao espectador não forçando a voz da maneira usual, mas sim num tom mais brando, mais normal – e portanto mais sério, mais grave.
– “Aqui é Alfred Hitchcock falando. No passado, eu dei a vocês muitos tipos de filmes de suspense.”
Ele não usa a palavra movies, ou films, ou a expressão moving pictures – diz pictures.
“No passado, eu dei a vocês muitos tipos de filmes de suspense. Mas desta vez eu gostaria que vocês vissem um diferente. A diferença reside no fato de que esta é uma história verdadeira, cada palavra dela. E no entanto ele contém elementos que são mais estranhos do que toda a ficção que esteve nos thrillers que eu fiz antes.”
Uau! O mestre do suspense, das histórias de crime e mistério contadas com humor, vem sério, grave, dizer que esta história real que vamos ver é mais estranha que toda a ficção!
Manny, o personagem de Henry Fonda, é músico da orquestra de night club
É só depois desse intróito sério, grave, mostrado em chiaroscuro, como uma referência ao expressionismo alemão dos anos 1920, que aparecem os créditos iniciais. Uma tomada do letreiro do The Stork Club, e em seguida estamos lá dentro – um night club de gente rica em Manhattan, o coração da capital do capitalismo e do mundo ocidental. Um misto de boate e restaurante – pessoas enfatiotadas bebendo e jantando e conversando, e no meio das mesas, na pista de dança, casais enfatiotados dançando ao som da música ao vivo apresentada pela orquestra da casa.
Estamos já dentro do Stork Club, e, antes de os nomes de Henry Fonda, Vera Miles e Alfred Hitchcock aparecerem, letras grandes informam:
“As primeiras horas da manhã do dia catorze de janeiro de mil, novecentesd e cinquenta e três (assim, tudo por extenso), um dia na vida de Christopher Emmanuel Balestrero que ele jamais esquecerá.”
Os créditos vão aparecendo sobre tomadas do salão lotado do Stork Club. Depois que vemos os nomes dos roteiristas – “roteiro de Maxwell Anderson e Angus MacPhail, história de Maxwell Anderson”, surge algo bastante inesperado, raro:
“Este filme foi feito com a cooperação do Departamento de Comércio e Eventos Públicos da Cidade de Nova York. Consultores técnicos Frank D. O’Connor, procurador de Justiça, Condado de Queens, Nova York, George Groves, sargento, Departamento de Polícia de Nova York (aposentado).”
Achei estranho, ao rever o filme agora, depois de tantas e tantas décadas, que os créditos falem em “história de Maxwell Anderson”, já que Hitchcock acabara de nos dizer que é uma história real, cada palavra dela.
E não reparei, naturalmente, no nome Frank D. O’Connor. O nome voltará a aparecer neste texto.
Quando os créditos vão chegando perto do fim, o salão do Stork Club já está bem vazio. Sobram aqueles últimos boêmios, farristas, bêbados – nós, que adoramos fechar um bar. Para os garçons e os músicos do conjunto, uns chatos, uns pentelhos que os impedem de ir finalmente embora pra casa.
Christopher Emmanuel Balestrero, que todos chamam pelo apelido de Manny, é o baixista do conjunto da casa. Toca um grande e belo baixo acústico, que deixa de lado assim que o maestro indica finalmente o fim da noite.
Henry Fonda estava com 51 anos, e as entradas no alto de sua cabeça já eram grandes. Manny tem 38 anos – mas não poderia haver outro ator para interpretá-lo. Tinha que ser Henry Fonda, um dos maiores atores do cinema americano de todos os tempos, unanimidade nacional, adorado pelo público e por seus pares, um mito, um príncipe.
Funcionárias identificam Manny como o homem que assaltou a seguradora
Nos primeiros dez minutos da ação de O Homem Errado, Alfred Hitchcock mostra, de uma forma absolutamente realista, quase documental, quem é Manny, como é sua rotina, como é sua família.
Ao sair de madrugada do local de trabalho, Manny pega o metrô sob a Quinta Avenida; sua viagem até perto de casa é bem longa, e no caminho ele compra um sanduiche e um copo no mesmo bar de sempre, e um jornal no mesmo lugar de sempre e, no trem, passa o tempo com uma brincadeira que ele criou envolvendo as corridas de cavalo do Jóquei e seus resultados.
Todas as pessoas por quem ele passa, como o rapaz do bar, o saúdam com um “oi, Manny”. Todos o conhecem, todos gostam dele.
Mora no Queens, em uma casa simples mas com os confortos básicos. Ao entrar em casa, carregando um ou dois litros de leite, dá uma espiada no quarto em que os dois filhos, entre 8 e talvez 5 anos de idade, dormem.
Embora Manny se esforce para não fazer barulho algum ao entrar no quarto, Rose (o papel de Vera Miles) acorda logo. Está com dor de dentes; esteve no dentista, e os quatro dentes de siso nasceram e estão apertando os demais. Vai ser necessário tirá-los, mas o preço é salgado, US$ 300,00.
Manny recebe US$ 85,00 por semana no Stork Club. A família não enfrenta falta de nada básico, mas também não sobra dinheiro algum. Vivem no limite, não há reserva, poupança. Já fizeram alguns empréstimos. Manny diz à mulher que no dia seguinte vai passar na seguradora, levando a apólice de Rose, para ver se consegue um empréstimo de US$ 300,00.
No dia seguinte, quando chega à seguradora para se informar, uma funcionária tem a certeza de que foi ele que assaltou aquele mesmo lugar duas vezes, no passado recente. Conversa com duas colegas. Elas também passam a ter certeza de que foi Manny o autor dos assaltos recentes.
Manny é preso quando está para entrar em casa.
Nada de distanciamento: Hitchcock quer que o espectador sofra junto com Manny
A câmara de Hitchcock e do diretor de fotografia Robert Burks vai mostrando, em dezenas e dezenas de tomadas diferentes, o rosto belo e expressivo de Manny-Henry Fonda.
A câmara também faz o papel dos próprios olhos de Manny, e vai mostrando detalhinhos dos locais para onde aquele sujeito bom, dócil, trabalhador, bom marido, bom pai de família vai sendo levado pelos policiais. A cela da delegacia, a 110ª, no Queens. Cada pedacinho dela.
Nada de distanciamento brechtiano: Alfred Hitchcock faz com que o espectador se coloque no lugar de Manny, sinta todo o pavor que Manny sente diante daquela realidade que parece um pesadelo horroroso mas que não acaba.
Há o ônibus levando detidos da delegacia para um tribunal de Justiça onde o juiz toma a decisão sobre o futuro de cada uma daquelas pessoas em não mais que dois minutos – cada preso que sai da frente do juiz é um pastel a menos que ele tem que fritar.
Há o ônibus levando detidos do tribunal para um presídio em Long Island.
A câmara mostra cada pequeno detalhe. Os sapatos dos homens sentados quase em círculo dentro do ônibus. A algema.
O espectador sabe tão bem quanto o próprio Manny que aquilo é um absurdo, uma loucura, que não faz sentido – e o que o filme quer é exatamente isso, que o espectador sofra como Manny está sofrendo.
Em geral, a câmara de Hitchcock – uma das mais magistrais da História do cinema – é inquieta, indócil. Detesta ficar parada. À estabilidade, rigidez de tripé, prefere mil vezes a liberdade dos carrinhos, tróleis, gruas, guindastes. Gosta de passear, viajar – adora os travellings, as panorâmicas.
Neste O Homem Errado, o tom realista, denso, pesado recomendava mais discrição, e discreta fica a câmara em boa parte do tempo. Mas é duro manter quieta durante todo o tempo uma câmara normalmente tão indócil, e então há dois rápidos momentos, durante o interrogatório de Manny numa saleta da delegacia, que vemos a cena como se estivéssemos no andar de cima – e não houvesse lage dividindo um andar do outro. A câmara viaja para mais alto do que o teto de uma delegacia permitiria (nos estúdios, sabemos, o pé direito equivale a uns cinco andares), e então, num belo plongée, vemos lá embaixo a cena aterrorizante, o homem errado sendo cercado pelas garras da Lei – garras que podem ser cegas, desprovidas de raciocínio, lucidez, e fechar sobre a garganta de inocentes.
Num outro momento – quando Manny é levado, pela primeira vez na vida, para um cela, dentro da delegacia, e está se sentindo mal como nunca antes havia se sentido –, a câmara tem um ataque histérico. É bem rápido: ela focaliza o rosto de Manny junto de uma parede, quase em close-up, e treme, e sacoleja, gira, chocoalha, enquanto a trilha de Bernard Herrmann, bem mais suave em todo o resto do filme do que em todos os demais da parceria com Hitchcock, se permite um som mais alto e violento.
Atenção: um spoiler, outro spoiler. Melhor pular para o próximo intertítulo
A câmara ainda terá momentos especiais de brilho, quase ao final da narrativa, quando uma imagem de um quadro de Jesus Cristo se funde a outra imagem, e um pouco depois, quando os rostos de dois homens em close-up igualmente se fundem.
Mas isso aí, a rigor, é um spoiler.
E aqui vai outro spoiler. Quem não viu o filme deveria parar de ler ou pular para o intertítulo seguinte.
É absolutamente incompreensível como a Academia sequer indicou Henry Fonda e Vera Miles ao Oscar. Sim, a Academia sempre esnobou esse diretor inglês que se radicou em Hollywood a partir de 1940 e, num caso bastante raro, virou um nome quase tão conhecido e querido do grande público americano quanto os grandes atores e atrizes de seu tempo.
A crítica americana e a crítica francesa sempre tiveram seus ídolos entre os grandes realizadores, John Ford, Howard Hawks, Ernst Lubitsch, Frank Capra, Nicholas Ray, Anthony Mann, Michael Curtiz. E os filmes desses mestres, e de tantos outros, faziam sucesso – mas nenhum foi tão famoso quanto o inglês gorduchinho e tão bom marqueteiro de si próprio quanto em seu ofício principal, o de fazer filmes.
Hitchcock forma, ao lado de Orson Welles e Charles Chaplin, a santíssima trindade dos grandes que o Oscar sempre preferiu esnobar.
A atuação de Henry Fonda é excepcional, magistral, coisa de gigantes – mas o estilo interpretativo do avô de Bridget (ô, Bridget, atriz tão maravilhosa, onde andará você?) é frio. Cool. Gelado. É exatamente o oposto, digamos, de um Robert De Niro, ou um Kirk Douglas, ou um Michael Douglas. O espectador vê no rosto de Henry Fonda o terremoto em que o pobre Manny foi jogado, o vulcão em que o lançaram – mas o terremoto, o vulcão, eles estão lá dentro do cérebro do personagem. A expressão é mais de choque – é como se ele estivesse de fato em estado de choque.
Já Vera Miles mostra de forma mais óbvia – na falta de outra palavra mais exata – os reflexos da tragédia que de repente se abate sobre a vida de sua família. Seu rosto percorre uma gama imensa de sensações, emoções – e, a partir da metade da narrativa, quando Rose não suporta mais a tragédia, e se quebra, Vera Miles tem uma atuação absolutamente fantástica.
Fascinante atriz. Trabalhou em pelo menos quatro filmes extraordinários, dos melhores que o cinema americano fez e que vi na adolescência: este aqui, é claro, de 1956; Rastros de Ódio/The Searchers, do mesmo ano; Psicose, de 1960; e O Homem Que Matou o Facínora/The Man Who Shot Liberty Valance, de 1962. Credo: dois Hitchcock, dois Ford.
Vera Miles encerrou a carreira em 1995; sua filmografia tem mais de 150 títulos. Nascida em 1929, estava com 86 anos quando revi agora esta obra-prima.
A religião católica tem presença forte na história de O Homem Errado
Tanto quanto o tom de absoluta seriedade, o filme me impressionou muito, ao revê-lo agora, pela ligação forte com a religião.
Já tinha lido, é claro, sobre o fato de que Alfred Hitchcock foi educado dentro do catolicismo.
O pobre eventual leitor não tem nada a ver com isso, mas vou dizer assim mesmo: até a frase acima, escrevi direto e reto, após rever o filme, mas antes de ler qualquer coisa sobre eles nos tantos alfarrábios sobre cinema que felizmente juntei ao longo da vida.
Aí, depois de escrever a frase com “Alfred Hitchcock foi educado dentro do catolicismo”, fui ver o ótimo documentário que acompanha O Homem Errado no DVD lançado pela Warner Bros, Guilt Trip: Hitchcock and The Wrong Man. O documentário é assinado por um expert, Laurent Bouzerreau, que fez diversos trabalhos semelhantes para acompanhar o lançamento em DVD dos filmes da fase americana de Hitchcock.
As entrevistas dadas à equipe de Bouzerreau confirmam muito do que eu escrevi aí acima. Corroboram com o que eu disse. Em suma: mostram que muito do que falei aí acima não é absoluta bobagem, não. Bem ao contrário: faz sentido.
Eis uma frase de Peter Bogdanovich, cineasta e estudioso de cinema: – “The Wrong Man, assim como I Confess (A Tortura do Silêncio, 1953, sobre um padre que ouve a confissão de um assassino e, portanto, não pode revelar o que ouviu, nem mesmo ao se tornar suspeito daquele crime), é um dos filmes mais sérios de Hitchcock.”
Por causa de umas questões paralelas, como diria Chico Buarque, Peter Bogdanovich acabou virando desafeto de boa parte de seus pares. Incensado no início dos anos 1970 como uma das grandes esperanças do cinema americano, virou um outcast, um misfit. Teve que sobreviver de seus livros a respeito do cinema, com imensas entrevistas com diretores, e, durante um certo tempo, por entrevistas a making of de grandes clássicos, como os de Hitchcock, que ele conhece melhor do que ninguém à exceção de François Truffaut. Questões paralelas são questões paralelas: para mim, Bogdanovich é um grande realizador – e um grande estudioso de cinema.
Ele conta no documentário – acho que eu nunca soube disso, ou, se soube, tinha esquecido, o que dá no mesmo – que Hitchcock queria Vera Miles para o principal papel feminino de Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958). Vera, no entanto, ficou grávida na época, e então o papel acabou indo para Kim Novak. Logo em seguida, de qualquer forma, Hitch a chamou para outro filme, Psicose – ela faz Lila Crane, a irmã mais centrada de Marion Crane-Janet Leigh.
“Vera Miles interpreta a esposa com um desempenho extraordinariamente sutil e brilhante”, diz Bogdanovich.
Outro entrevistado, o estudioso de cinema Robert Osborne, diz que talvez Hitchcock estivesse, com O Homem Errado, querendo se aproximar do cinema mais realista, mais próximo das ruas, que se fazia na Europa. Osborne cita Roberto Rossellini, o que talvez faça algum sentido, e a nouvelle vague, o que não faz sentido algum, porque em 1956, o ano do lançamento de O Homem Errado, ainda não havia nouvelle vague. Os primeiros filmes do movimento dos novos realizadores franceses viriam depois: Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups é de 1959 e Acossado/À Bout de Souffle é de 1960.
Outro historiador de cinerma, Robert Schickel, faz uma observação que me parece muitíssimo mais certeira: “Uma coisa da qual devemos nos lembrar neste filme, porque eu tinha esquecido, até vê-lo de novo, é o catolicismo, a coisas do rosário.”
Quando se estabelece, no 110º DP, que Manny ficará preso, passará a noite na cadeia, há a coisa do esvaziamento dos bolsos, para que tudo seja guardado, mediante a entrega de um recibo para o suspeito. Há muito pouco nos bolsos de Manny – uns seis dólares e alguns cents, documentos, o papel da apólice de seguro e um rosário. O sujeito que faz a conferência dos itens diz: – “Você pode ficar com o rosário, se quiser”.
Nas cenas do tribunal, Manny tem o rosário nas mãos – e que cenas maravilhosas. Manny observa as pessoas, enquanto seu advogado tenta demonstrar a fragilidade da testemunha de acusação. Manny olha para as pessoas da platéia, para as pessoas da própria promotoria, para os jurados – ninguém está prestando a menor atenção às perguntas do advogado de defesa e às respostas da testemunha de acusação.
Aos 5 anos, Hitchcock teve uma experiência traumatizante com prisão
O historiador Robert Schickel faz, então, um detalhamento de como é importante a coisa do cristianismo, demonstrada no final do filme. Não transcrevo aqui porque é uma descrição do finalzinho do filme, um spoiler tão violento que não tem sentido publicar, nem mesmo com todos os avisos.
Mas transcrevo o que Shickel diz, que tem muito a ver com o que eu senti ao rever o filme agora: “Hitchcock é cheio de simbolismo católico. Mas esta é a simbologia mais explícita que já vi num filme dele.”
Foi exatamente o que eu senti. Nenhum outro filme de Hitchcock tem uma ligação tão forte com o catolicismo.
Peter Bogdanovich abre o documentário sobre O Homem Errado com uma informação absolutamente fascinante. Quando o garoto Alfred Hitchcock tinha cinco anos de idade, fez lá uma arte qualquer. Para castigá-lo, para que ele não voltasse a fazer aquilo, seu pai combinou com o chefe da delegacia perto de casa – os dois eram amigos – que prendesse o garoto por cinco minutos. “Ele tinha cinco anos e ficou preso durante cinco minutos”. E a partir daí passou toda a vida com medo de polícia, de prisão, e às voltas com o tema do homem que é acusado de um crime que não cometeu.
E é Bogdanovich que encerra o documentário. Ele diz que o filme é quase um documentário, e resume sua avaliação: “Acho que The Wrong Man é um dos filmes mais emocionais de Hitchcock, narrado com extraordinária economia e um clima de realidade, o oposto do tipo de artifícios que Hitchcock usava e popularizou.”
“Meu desejo de me aproximar da verdade foi grande demais”, diz Hitch
No livro Hitchcock Truffaut, que reúne a série de entrevistas feitas pelo cineasta francês com o mestre inglês, François Truffaut pergunta em que momentos, na realização do filme, ele foi obrigado a se afastar da verdade. Hitch responde: “Bem, quase nunca me afastei da verdade e, rodando esse filme, aprendi muitas coisas. Por exemplo, a fim de se obter uma autenticidade absoluta, tudo foi minuciosamente reconstituído com a colaboração dos heróis do drama, tanto quanto possível filmado com atores pouco conhecidos e até mesmo, às vezes, nos papéis episódicos, com os que viveram o drama. Tudo isso no próprio local da ação. Na cadeia, observamos como os detidos recebem suas roupas de cama, suas próprias roupas, e em seguida escolhemos para Henry Fonda uma cela vazia e o mandamos fazer o que os outros presos acabavam de fazer diante de nossos olhos. A mesma coisa para as cenas que se passam no hospital psiquiátrico, onde os médicos interpretavam seus próprios papéis.”
Hitchcock enfatiza para Truffaut: “Meu filme é feito do ponto de vista do sujeito na prisão. (…) Toda a encenação é subjetiva. (…) Durante o trajeto da delegacia à prisão, ele muda várias vezes de carcereiro mas, como está envergonhado, olha fixamente para a ponta dos sapatos e se mantém o tempo todo de cabeça baixa, portanto não vemos os seus carcereiros; de vez em quando, uma algema se abre e um novo pulso o direige; da mesma forma, só vemos durante esse trajeto os pés dos policiais, a parte de baixo das pernas, o chão, a parte de baixo das portas.”
Mas fica absolutamente claro, no livro Hitchcock Truffaut, que o realizador não ficou satisfeito com este seu belo filme. Truffaut questiona: “Considera que O Homem Errado foi um filme que deu certo?” E Hitch responde: “Bem, minha vontade ferrenha de seguir fielmente a história original foi a causa de graves fraquezas na construção. O primeiro ponto fraco é que a história do homem foi interrompida um longo momento pela de sua mulher, que se encaminha para a loucura, e por isso o instante em que chegávamos ao julgamento era antidramático. Em seguida, o julgamento se concluía de forma muito brusca, como aconteceu na vida real. Meu desejo de me aproximar da verdade foi grande demais e morri de medo de me conceder a licença dramática necessária.”
A história de Manny foi contada na Life e depois em um livro
A história trágica de Manny Balestrero foi contada em uma reportagem da revista Life de junho de 1953, “A Case of Identity”, assinada por Herbert Brean. Hitchcock contou para Truffaut: “O roteiro foi tirado de uma história que li na revista Life”. Os créditos do filme, no entanto, omitem o nome de Herbert Brean e a revista Life, e informam que a história é de Maxwell Anderson. Anderson – que seria um dos roteiristas do filme – publicou um livro com a história, The True Story Of Christopher Emmanuel Balestrero.
O advogado que aceitou defender Manny, apesar de saber que ele não teria como pagar honorários caros, chama-se Frank O’Connor, e é interpretado pelo simpático e competente ator inglês Anthony Quaye, de Os Canhões de Navarone (1961) e Lawrence da Arábia (1962).
O nome do advogado está nos créditos iniciais, como já foi dito mais acima, como um dos consultores técnicos. Um detalhe interessante é que, quando o filme foi feito, Frank O’Connor já não trabalhava mais como advogado de defesa: tinha assumido o cargo de promotor de Justiça de Queens.
Após o fim da narrativa, há mais um agradecimento – o que me fez dizer que este é o filme de Hitchcock que traz mais palavras escritas na tela. “Somos agradecidos ao sr. Sherman Billingsley por sua graciosa cooperação em permitir que cenas deste filme fossem fotografadas no Stork Club em Nova York”.
O Stork Club – eu não sabia disso – era tido como um dos night clubs de maior prestígio dos Estados Unidos, enquanto durou, entre 1929 e 1965. Era símbolo de riqueza frequentar o lugar e ser visto entre as pessoas das colunas sociais, os milionários, os astros de cinema, as celebridades;
Por isso é que Manny reage com profunda estranheza quando alguém pergunta a ele – um dos policiais que o interrogam, não gravei bem – se ele leva sua mulher ao clube em que toca. Responde que não, de forma alguma – aquele é um lugar para pessoas ricas.
Ele está lá apenas como um empregado da casa, para distrair os convidados. Usa traje de noite, o que nós chamamos de smoking, a gravatinha elegante – mas é apenas um criado.
Figura triste, o Manny Balestrero criado por Henry Fonda. Ele me fez lembrar outro personagem tristíssimo, também músico da noite, que também usa roupa elegante para distrair o respeitável público: o pianista Rémi, interpretado por Patrick Dewaere no belo A Filha da Minha Mulher/Beau-Père.
Os dois sofrem demais, comem o pão que o diabo amassou. Com a diferença de que Rémi é uma invenção da cabeça de Bertrand Blier, e Manny Balestrero viveu de verdade toda aquela dor.
Anotação em junho de 2015
O Homem Errado/The Wrong Man
De Alfred Hitchcock, EUA, 1956
Com Henry Fonda (Christopher Emmanuel Balestrero, conhecido como Manny), Vera Miles (Rose Balestrero)
e Anthony Quayle (Frank D. O’Connor), Harold J. Stone (detetive Bowers), Charles Cooper (detective Matthews), John Heldabrand (Tomasini), Esther Minciotti (Mama Balestrero), Doreen Lang (Ann James), Laurinda Barrett (Constance Willis), Norma Connolly (Betty Todd), Nehemiah Persoff (Gene Conforti), Lola D’Annunzio (Olga Conforti), Kippy Campbell (Robert Balestrero), Robert Essen (Gregory Balestrero), Richard Robbins (Daniel, o culpado)
Roteiro Maxwell Anderson e Angus MacPhail
Baseado em história de Maxwell Anderson
Fotografia Robert Burks
Música Bernard Herrmann
Montagem George Tomasini
Produção Warner Bros. DVD Warner Bros.
P&B, 105 min
R, ****
“O Henry era Fonda!!!”
Acabei de ver e gostei mas não fiquei fã do filme. Sem dúvida que é poderoso. O inicio com o club parece que vai retratar uma comédia, mas esse ambiente glamoroso e frívolo vai contrastar com a dureza e angusta do filme. Fonda está soberbo e Vera Milles está tb mt bem (é pena que nunca se tenha tornado uma estrela de grande magnitude, visto que tinha talento e fez bons filmes). Não é excessivamente bela e não mt brilho mas o talento, para mim, compensa perfeitamente. Eu concordo com o que Hitchcock diz sobre a resolução do caso.É mt rápido, repentino. Mas se na verdade foi assim que a história sucedeu, então assim tem de ser retratado
Grande sabedoria sobre tudo Danone e arte de fazer cinema. Como cineasta, ouso afirmar que fizeram uma sacanagem com a exibição de cinema. Tudo destruído depois de décadas de produção de grandes obras primas, com extensão para a indústria, comércio, profissão de cineasta, atores diretores e afins. O que houve com o cinema de grandes platéias, grandes aplausos, grandes obras primas, e seus grandes talentos de variada fama? Simplesmente o fenômeno do vício do celular, depois o agravante , das exibições por assinatura nas TVs. O mundo mudou. Ok, direi para os da nova geração. Mas a indústria e o comercio de arte de negociar exibição de um filme através de venda para companhias gigantescas de compra de filmes no mundo inteiro, cria uma concorrência com filmes do mundo inteiro, quando um pais que não tem indústria avançada nunca verá suas fomes pela TV. Digo isto porque no meio de . Mil filmes oferecidos aos bloqbuster a produção independente jamais terá condicao de ser escolhido. Sera o fim do cinema trocado por redes sociais, dos celulares. Cineasta rayevans cineasta.