Acho que o melhor adjetivo para Side Effects, efeitos colaterais, no Brasil Terapia de Risco, que Steven Soderbergh lançou em 2013, é impressionante.
É tudo impressionante: a trama, as questões todas que ela levanta, a atuação dos atores, a trilha sonora de Thomas Newman, o estilo da câmara do diretor de fotografia Peter Andrews.
É um filme impressionantemente bem realizado.
Essa garota Rooney Mara (na foto abaixo) – o que é isso, meu Deus do céu e também da terra? A interpretação dela é impressionante. Impressionantemente impressionante.
E a trama – que brilho de trama, criada por Scott Z. Burns, sujeito de currículo respeitabilíssimo.
E que diretor, Steven Soderbergh, esse cara incansável, para quem os dias devem ter 48 horas, das quais ele trabalha umas 40!
Nada de estética MTV – há planos longos, não há montagem frenética
Nesta época de filmes de ritmo aceleradíssimo, de tomadas curtas, montagem rápida, Side Effects rema contra a maré. Acontece coisa demais na trama, há diversas surpresas – mas o ritmo é quase suave, quase lento. Nada de estética MTV. Há tomadas longas – como a primeira, um plano geral de um trecho de uma grande cidade. A câmara vai se aproximando de um gigantesco prédio, enquanto vão rolando os créditos iniciais. Sim, nesta época em que 9 em cada 10 filmes só tem créditos finais, este aqui tem créditos iniciais. Os nomes dos atores e da equipe vão rolando enquanto a câmara vai se aproximando do tal prédio imenso, feioso – que o espectador só vai identificar quando o filme se encerra.
Ao final dessa longa tomada dos créditos iniciais, corta, e estamos dentro da cozinha de um apartamento. Há uma cadeira revirada e sangue no chão. A câmara vai andando dentro do apartamento, seguindo o rastro de sangue por vários cômodos.
Aí corta de novo, e um letreiro – “Três meses antes” – informa que voltamos no tempo.
Uma jovem vai visitar o marido na prisão. Veremos que se chama Emily – o papel dessa extraordinária Rooney Mara. Ela e o marido, Martin (interpretado por Channing Tatum, nas fotos acima e abaixo), conversam um pouco. Ele está para ser solto.
A sequência seguinte mostra Emily no trabalho, conversando com a patroa (Polly Draper); veremos depois que é uma agência de criação de filmes comerciais. Emily lembra à patroa que não poderá trabalhar no dia seguinte, e a patroa lembra que, ah, sim, será o grande dia – o dia em que o marido da moça será solto. Na conversa aparece a expressão “insider trading”.
Emily vai de carro com a sogra (interpretada por Ann Dowd) receber o marido que sai da prisão.
Na seqüência seguinte estão em casa trepando. Martin está sôfrego, Emily parece ausente. Depois conversam. “Lembra o gerente do fundo de cobertura que conheci lá dentro? Marshall Hellman?”, ele pergunta. Ela, com uma expressão um tanto vazia, de quem está distante, diz: “O cara de Stanford?”
Ele mesmo. “Super inteligente”, diz Martin. “Foi preso por algo com imposto, mas vai sair logo. Tem dinheiro em Dubai e muitos contatos. Podemos voltar a ter o que tínhamos antes. Posso fazer isso.”
Com uma expressão vaga, de quem não está ali, ou não está acreditando na promessa do marido, ela responde que sim.
Bem no início do filme, a protagonista joga seu carro contra a parede
Pelos rápidos diálogos dessas seqüências iniciais, o espectador mais atento pode já formar o quadro; Martin ganhou fortuna no mercado financeiro, foi muito rico – mas provavelmente cometeu alguma fraude, foi descoberto, condenado e preso.
Formei esse quadro a partir dessas sequências iniciais; não é preciso ser super inteligente como o colega de prisão de Martin para sacar isso – e esse quadro será confirmado no decorrer da trama. O casal foi riquíssimo, e, com a prisão, perderam tudo; Emily teve que voltar a trabalhar, e mora agora num apartamento simples, em comparação com a grande riqueza que teve no passado.
Na seqüência seguinte àquela da trepada e da conversa, Emily está na na garagem do prédio em que mora. Passa por um funcionário do prédio, que está lavando um dos carros na garagem, e deixa cair coisas da bolsa. O funcionário vai até ela para ajudar a recolher os objetos.
Emily põe o cinto de segurança. O carro está a uma boa distância da parede em que está escrito saída – com uma seta apontado para a direita.
Emily enfia o pé com tudo no acelerador, e o carro se choca com violência contra a parede.
Estamos com exatos 7 minutos de filme.
O filme trata de ética médica, relação psiquiatra-paciente, indústria farmacêutica
Na seqüência seguinte conhecemos o dr. Jonathan Banks – o papel de Jude Law. Ele está atendendo ao caso de um negro que foi preso por atitudes violentas, machucou-se e foi levado pela polícia para o hospital.
A seqüência é feita para que o espectador perceba que o dr. Jonathan é um excelente psiquiatra – calmo, controlado, firme, seguro.
O caso seguinte que o dr. Jonathan atenderá será o da moça que tentou se matar espatifando seu carro contra a parede da garagem.
Relatar os fatos que acontecem a partir daqui, acho, seria spoiler, entrega informação estraga prazer, e ando cada vez mais preocupado em não apresentar spoilers, ainda mais que se trata aqui de um thriller, um filme com suspense. Mas acho que dá para dizer algumas coisas genéricas que não revelam fatos da trama.
Aos 36 minutos de filme, estaremos de volta ao apartamento mostrado na segunda sequência, aquela do rastro de sangue.
Em geral, esse tipo do que chamo de narrativa-laço volta ao momento mostrado bem no início só quando o filme se aproxima do fim. Aqui, não: os tais três meses indicados no letreiro são mostrados apenas até os 36 minutos. A grande maior parte da trama virá depois do momento clímax – o sangue no apartamento – que vemos bem no início.
E haverá muitos outros momentos de clímax, muitas surpresas.
A trama criada por Scott Z. Burns apresenta bons motivos para discussões sobre ética médica, a relação psiquiatra-paciente, a responsabilidade do psiquiatra, a responsabilidade da bilionária indústria farmacêutica.
Mas esses temas todos – que são importantes, que merecem análise, discussão – não serão propriamente o cerne da trama.
O autor da história e do roteiro tem um currículo brilhante
É uma trama impressionantemente brilhante.
Scott Z. Burns, que é também um dos produtores do filme, tem de fato um currículo respeitável. Não é um currículo muito extenso, ainda – ele nasceu em 1962, em Minnesota –, mas inclui os roteiros de O Ultimato Bourne (2007), O Desinformante! (2009) e Contágio (2011).
Foi ainda um dos produtores do documentário Uma Verdade Inconveniente, aquele em que o ex-vice-presidente Al Gore fala das ameaças ao clima do planeta, e foi o autor do argumento e do roteiro e o diretor de Pu-239 ou The Half Life of Timofey Berezin, um filme pouco conhecido, mas absolutamente fascinante, sobre os perigos de acidentes em usinas atômicas nos países que formavam a agora extinta União Soviética.
Bourne – ação, aventura, espionagem, segurança nacional, os muitos tentáculos do polvo monstro das agências federais americanas. Uma Verdade Inconveniente, Pu-239, Contágio – a preocupação com o ambiente, as mudanças climáticas, o aquecimento planetário.
Os temas com que esse Burns trabalha são sérios, pesados. Assim como são sérios, pesados, os temas que ele levanta em Side Effects.
Temas sérios, pesados – e um clima, um ritmo de thriller, à la O Ultimato Bourne. Tem de fato muito a ver com este filme aqui.
Soderbergh é especializado em fazer muita coisa ao mesmo tempo – e fazer bem
Steven Soderbergh é daquele tipo de sujeito que faz três ou quatro coisas ao mesmo tempo – e não tem uma especialidade, um gênero preferido. A especialidade de Soderbergh é fazer muita coisa – em todos os gêneros e estilos possíveis e imagináveis.
Ele é de 1963, um ano mais novo que o roteirista Burns. Está hoje, portanto, com 50 anos. Já trabalhou como compositor, ator, roteirista, montador, diretor de fotografia, produtor e diretor.
Seu primeiro longa como diretor, sexo, mentiras e videotape, é de 1989; neste período de 24 anos, o cara dirigiu 37 filmes e produziu mais de 34.
Fico exausto só de fazer essas contas.
Quem produz tanta coisa não pode acertar sempre – mas Soderbergh coleciona muito mais acertos do que equívocos, nessa filmografia intensa dele. A direção de Side Effects é brilhante. Impressionantemente brilhante.
Todo o elenco está soberbo, excepcional – mas os maiores méritos são dos dois protagonistas, o inglês Jude Law e essa absoluta revelação que é a garota Rooney Mara, nascida no interior do Estado de Nova York em 1985. Mas pqp, 1985! Jovem demais!
Começou na TV; em 2010, teve um pequeno papel em A Rede Social, o filme sobre a criação do Facebook – mas teve a sorte grande de ser escolhida para o papel de Lisbeth Salander na refilmagem americana de Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, o primeiro filme da trilogia Millennium, de Stieg Larsson. Não vi a versão americana – não tive interesse, depois de ter visto os três filmes suecos –, mas todo mundo diz que ela fez uma Lisbeth Salander maravilhosa, brilhante.
Neste Side Effects, ela excede. Sai talento pelos poros.
Na primeira meia hora do filme, ela convence o espectador de que Emily está na mais profunda depressão. O espectador fica com profunda pena de Emily, tadinha, afundada no abismo da depressão.
É impressionante.
O título brasileiro é uma bobagem, que pode levar o espectador a uma direção errada
Side Effects participou da mostra competitiva do Festival de Berlim de 2013, o ano de seu lançamento. Não foi premiado – mas a simples presença na mostra competitiva da Berlinale indica qualidade.
Como é uma produção de 2013, e estreou nos Estados Unidos em fevereiro deste ano, teoricamente ele poderia ter indicações aos diversos prêmios que começarão a ser distribuídos em janeiro, na escalada até o Oscar. Em princípio, Rooney Mara mereceria indicações – mas não foi lembrada, como se veria logo depois.
Vejo agora no IMDb que diversas atrizes chegaram a ser consideradas para o papel de Emily: Lindsay Lohan, Emily Blunt, Olivia Wilde, Imogen Poots, Alice Eve, Amanda Seyfried, Michelle Williams. Várias dessas moças são bastante talentosas – mas eu diria que Soderbergh teve muita sorte (e/ou juízo) ao escolher Rooney Mara.
Por fim, um detalhe. Terapia de Risco, o título escolhido pelos exibidores brasileiros, me parece uma patacoada, uma imbecilidade. Leva o espectador a uma direção errada. Por que, meu Deus do céu e também da terra, não usar a tradução literal do título, Efeitos Colaterais?
Paciência. O título brasileiro é uma bobagem – mas o filme é impressionante.
Anotação em novembro de 2013
Terapia de Risco/Side Effects
De Steven Soderbergh, EUA, 2013
Com Rooney Mara (Emily Taylor), Jude Law (Dr. Jonathan Banks),
e Catherine Zeta-Jones (Dra. Victoria Siebert), Channing Tatum (Martin Taylor), Ann Dowd (a mãe de Martin), Vinessa Shaw (Dierdre Banks), Polly Draper (a patroa de Emily)
Argumento e roteiro Scott Z. Burns
Fotografia Peter Andrews
Música Thomas Newman
Montagem Mary Ann Bernard
Produção Endgame Entertainment, FilmNation Entertainment, Di Bonaventura Pictures. DVD Paris Filmes.
Cor, 115 min
***
Assisti esse filme com uma grande expectativa, já que os críticos exaltaram esse como um dos melhores filmes recentes do Soderbergh e quase cai da cadeira com o nível de mediocridade alcançado por essa produção.
Para início de conversa, a caracterização e interpretação da maquiavélica Catherine Zeta-Jones é constrangedora! A personagem dela exala maldade a todo momento (utilizando sempre roupas pretas), o que a faz parecer uma vilå saída de alguma telenovela. Além disso, ficou claro a mensagem homofóbica apresentada pelo filme, visto que o personagem heterossexual interpretado por Jude Law consegue destruir a releção homoafetiva das persongens de Mara e
Zeta-Jones.