O veterano Jean Becker insiste e não desiste do tema que tem abordado sempre em seus últimos filmes. Felizmente. É um tema maravilhoso, dos melhores que há: o encontro entre duas pessoas, em geral muitos díspares, quase opostas, a amizade e a solidariedade que nascem a partir daí, e muda para melhor suas vidas.
Para Jean Becker, assim como para Vinicius de Moraes, a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida.
Lembrando:
Em Conversas com meu Jardineiro/Dialogue avec Mon Jardinier, de 2007, um pintor rico, famoso e em profunda crise pessoal, interpretado por Daniel Auteil, vai passar um tempo no campo, na casa em que morou na infância, e reencontra um velho conhecido dos tempos da escola básica, que agora é um jardineiro (Jean-Pierre Darroussin). O encontro de um homem da metrópole, rico, culto, infeliz, com um homem da província, um tanto bronco, simplório, de coração imenso.
Em Minhas Tardes com Margueritte/La Tête en Friche, de 2010, o encontro é entre um homem inculto, um tanto bronco, quase iletrado (interpretado por Gérard Depardieu), com uma senhora nonagenária educada, culta (Gisèle Casadesus), que já leu milhares de livros que expressam as angústias e as alegrias dos homens.
Neste Sejam Muito Bem-vindos/Bienvenue Parmi Nous, de 2012, o encontro é ainda mais estranho, improvável, insólito, do que os dos dois filmes anteriores. São duas pessoas que não têm absolutamente nada a ver uma com a outra. Um Amazonas, um Grand Canyon, milhares de anos-luz separam Taillandier (Patrick Chesnais) e Marylou (Jeanne Lambert), os protagonistas da história.
Um homem que tem tudo para estar feliz – mas naufraga na depressão
Taillandier já passou bem dos 60 anos (Patrick Chesnais estava com 65 em 2012, mas aparentava ter mais que 70). É um pintor de algum renome, assim como era o protagonista de Conversas com Meu Jardineiro, mas, diferentemente do personagem interpretado por Daniel Auteil, que vivia em Paris, Taillandier mora no campo, numa bela casa no meio do campo, veremos que na região de Poitou-Charentes, no sudoeste da França.
Tem dinheiro, conforto material e uma bela mulher que ele ama e que o ama, Alice (interpretada por Miou-Miou, a quem a passagem dos anos não fez mal). Recebe em seu aniversário a visita dos filhos e das duas netas.
Tem tudo para estar bem, vivendo uma velhice tranquila e – por que não? – feliz. Mas não. É tudo – menos feliz. Faz um ano que não consegue mais pintar, não tem interesse, gana, vontade de tocar o instrumento que os deuses lhe deram. Acordar, enfrentar cada novo dia é quase um suplício, uma tortura.
Acha tudo ruim – até a companhia da bela mulher, a visita dos filhos e das netas que provavelmente vê poucas vezes a cada ano.
É ranzinza, mal humorado, impaciente, irritadiço.
Na verdade, está em depressão – mas nem pensa em se tratar. Tem problemas de coração, como tantos velhos têm, mas sequer toma os remédios que deveria tomar.
Ao ir até a cidadezinha mais próxima pegar a porção de carne que Alice servirá para o almoço de aniversário em família, vê uma espingarda de caça – ele, que nunca caçou – e a compra.
Para quem não vê saída, uma espingarda de caça pode ser um atalho.
Uma garotinha bela, cheia de energia – mas num momento infernal da vida
Marylou tem 15 anos, é bonita, tem energia e a vida pela frente – mas a vida, no momento em que o destino faz seu caminho se cruzar com o do pintor deprimido e sem qualquer esperança, não poderia estar pior. A mãe vive com um canalha, um pequeno facínora, que tudo que deseja é comer a enteadinha adolescente. Diz para a mulher que a garota vive se oferecendo a ele, e a mãe de Marylou, crédula, apaixonada, cega, acredita nele – e expulsa a garota de casa.
Uma adolescente pouco educada, assediada pelo padrasto, enxotada pela mãe, sem ter para onde ir, sem rumo, sem nada. Um velho pintor rico materialmente e infeliz, em profunda depressão, fugindo de casa porque não suporta o dia-a-dia, não se suporta, e pensa na possibilidade de um atalho para o fim da dor no cano de uma espingarda de caça.
Não poderia haver encontro mais improvável.
O realizador vai atrás de obras literárias que contenham seu tema predileto
Jean Becker – nascido em Paris em 1933, beirando os 80 anos quando este filme aqui foi lançado, 17 títulos como realizador – é um dos co-autores dos roteiros de Sejam Muito Bem-Vindos e também dos já citados Conversas com meu Jardineiro e Minhas Tardes com Margueritte. No entanto – e acho isso bem fascinante – ele não é o autor de nenhuma das três histórias que têm tantos pontos em comum.
Conversas com meu Jardineiro se baseia em um livro de Henri Cueco. Minhas Tardes com Margueritte, em um livro de Marie Sabine Roger. E este Sejam Muito Bem-vindos, em um livro de Eric Holder.
Jean Becker vai buscar em obras literárias de diversos autores o tema sobre o qual quer falar, o encontro de seres díspares e a amizade que nasce onde não seria de se esperar.
Artista de sensibilidade é isso aí.
Maduro, experiente, calejado, não precisa de invencionices, salamaleques, para contar sua história. Sua narrativa é refrescantemente, maravilhosamente mansa, suave, clássica.
A princípio, Becker achou o livro triste demais. Queria fazer um filme otimista
Vou atrás de informações sobre o filme, a produção.
* Começo por um comentário sobre os títulos, o original e o adotado pelos exibidores brasileiros. A tradução para o português brasileiro foi próxima do original – mas há uma diferença grande. Bienvenue Parmi Nous é bem-vinda entre nós – bem-vinda, no feminino, singular. Bastante diferente do Bem-Vindos, no plural.
* Segundo o IMDb, na Espanha o título foi Mi Encuentro con Marilou. Em inglês, Welcome Aboard, bem-vindo (ou bem-vinda) a bordo, o que faz bastante sentido.
* Segundo o AlloCine, o belo site que tem tudo sobre os filmes franceses, foi o filho do realizador que recomendou a ele a leitura do livro Bienvenue Parmi Nous, lançado em 1998. A princípio, Becker achou a história triste demais. Tinha vontade de fazer um filme mais luminoso, otimista. Pouco tempo depois, no entanto, percebeu que o livro tinha, sim, potencial para que ele exprimisse o que procurava.
* Este não foi o primeiro livro de Eric Holder a ser transposto para o cinema. Em 2009, foi lançado L’homme de chevet, com Christopher Lambert e Sophie Marceau. E, também em 2009, saiu Mademoiselle Chambon, com Vincent Lindon e Sandrine Kiberlain.
* Becker tinha vontade de trabalhar com o ator Patrick Chesnais fazia tempo. Na época de Verão Assassino/L’Été Meurtrier, o ator chegou a fazer testes, mas acabou não sendo escolhido. Quando se preparava para escrever o roteiro de Sejam Muito Bem-Vindos, conversou com Chesnais, e o ator aceitou o papel. “Depois que ele disse estar de acordo, escrevi pensando nele”, disse o realizador.
* O filme que passa na televisão, e faz a garota Marylou chorar de tristeza por não poder contar com o amor da mãe, é justamente Verão Assassino/L’Été Meurtrier, que Jean Becker lançou em 1983, e ajudou a transformar Isabelle Adjani em uma das maiores estrelas do cinema francês. A cena que Marylou vê chorando mostra um close de Isabelle Adjani – e, engraçado, tive a sensação de que há ali, naquela sequência, uma certa semelhança entre os rostos de La Adjani e desta garotinha Jeanne Lambert.
* Jeanne Lambert. Meu Deus: foi o primeiro filme da moça! A presença dessa bela garota no filme se deve à boa memória das diretora de casting Sylvia Allegre. Ela se lembrou de uma garotinha que havia testado para o filme anterior de Becker, Minhas Tardes com Margueritte. “Senti um instinto nessa pequena”, disse o realizador em entrevista. “É uma jovem que, apesar de uma imagem de superficialidade, pode verdadeiramente ser profunda.”
Não dá para dizer se Jeanne Lambert veio para ficar. Surgem novos rostos no cinema a cada minuto. Ela não demonstra, nesta sua estréia, um talento absurdo de uma Ellen Page, uma Saoirse Ronan, uma Jennifer Lawrence, uma Ludivine Sagnier. Mas tem finíssima estampa, um corpo de babar (perdão, mas não estou sendo pedófilo: ela aparenta mais de 18 anos), teve a sorte de uma boa estréia. Quem sabe?
* O ator Patrick Chesnais aparece em praticamente todas as sequências. A partir do momento em que a adolescente Marylou surge na história, Chesnais e a jovem Jeanne Lambert ocupam a tela. Além dos dois, há apenas dois personagens importantes, embora apareçam pouco. São Alice, a mulher do pintor Taillandier, interpretada, como já foi dito, pela maravilhosa Miou-Miou (na foto acima), e Max, o grande amigo de Taillandier. Max é escultor, mas não tem a fama do amigo, nem o dinheiro, nem a bela mulher. Num fascinante diálogo no início da narrativa, Max questiona duramente o amigo: como é possível ter tanto, e ainda assim ser tão miseravelmente infeliz? Max é interpretado por Jacques Weber, bela figura, bela estampa pós 60 anos de idade, quase 90 títulos no currículo.
Essas pérolas são as melhores
Sejam Muito Bem-vindos não obteve prêmios em festivais. Nem grandes elogios da crítica, pelo que mostra o AlloCine.
Tenho especial afeição por filmes – como este aqui – que são bons, são sérios, são dignos, são belos, e passam despercebidos pelos festivais e pelos jornais.
Os festivais e os jornais têm fascinação por alguns filmes e realizadores que viram moda, os Christophe Honoré, os Lars Von Triers da vida.
Tenho fascinação por pequenas pérolas cujo brilho não cai de imediato no gosto das pessoas de narizinho empinado.
Essas pérolas são as melhores.
Anotação em fevereiro de 2014
Sejam Muito Bem-Vindos/Bienvenue Parmi Nous
De Jean Becker, França, 2012
Com Patrick Chesnais (Taillandier), Jeanne Lambert (Marylou), Miou-Miou (Alice), Jacques Weber (Max)
Roteiro Jean Becker e François d’Épenoux
Com a colaboração de Marie-Sabine Roger
Baseado no livro de Eric Holder
Fotografia Arthur Cloquet
Montagem Franck Nakache e Jacques Witta
Produção ICE3, K.J.B. Production , StudioCanal, France 3 Cinéma, Canal+, Ciné+ , com apoio do Département de la Charente-Maritime e da Région Poitou-Charentes . DVD Imovision.
Cor, 92 min.
***
Tentei ver esse filme algumas vezes, mas em todas elas acabava desistindo. O começo é muito pra baixo, e o personagem de Patrick Chesnais é difícil de aguentar. Para conseguir ver até o fim, tive que fazer um esforço, e esperar chegar até a parte do encontro com a menina, pois sabia que de alguma forma a história engrenaria. E realmente, a partir do encontro o filme melhora, fica mais interessante. De todo modo, se o diretor queria fazer um filme “luminoso”, passou longe disso. A história é um pouco pesada. A cena da tentativa de suicídio é bem forte, desesperadora.
Vou discordar de você sobre a atuação de Jeanne Lambert. Ela vai bem em pouquíssimas cenas, mas nas que pedem mais performance, e a maioria pede, faz biquinho ou careta. É verde demais, abaixo do sofrível; o ponto fraco do filme. Até acho que tem potencial, mas precisa estudar muito ainda. Patrick Chesnais é ótimo, do tipo que atua sem fazer esforço. Perto dele a “atuação” dela é insípida.
(Pelas minhas contas ela já tinha 18 anos quando fez o filme, e acho que aparenta menos idade, o que foi ótimo para o papel).
Outro ponto fraco para mim é a edição: tem uns cortes muito secos, que quebram o ritmo.
No geral a história é boa, apesar de triste, e ainda aborda o tema da violência contra a mulher (e mulheres que colocam qualquer um dentro de casa, e escolhem ficar ao lado do homem, em vez de proteger as filhas), e o perigo de jovens que bebem demais, e o risco de moças serem violentadas caso bebam além da conta ou saiam com caras que bebem muito (no caso, os canalhas eram desconhecidos, mas isso pode acontecer com amigos e conhecidos também, e até com namorados. Infelizmente é muito mais comum do que a gente pensa).
O final é bonito, dá um pouco de esperança e respiro ao espectador, embora eu tenha torcido pra que fosse um pouco diferente. Gosto de histórias sobre encontros e amizades. Saber que uma pessoa de quase 80 anos fez um filme assim é maravilhoso.
Sugestão: acho que dá para etiquetar esse filme em “Violência Doméstica e Abuso” também. Ainda que não seja o tema principal, indiretamente Marylou foge de casa por causa de violência dentro de casa, e no final, ainda temos o caso da mãe dela ‘en passant’, amarrado ao desfecho do filme.
“Indiretamente Marylou foge de casa por causa de violência dentro de casa”…
Preciso de um revisor.
Deliciosos comentários, como sempre, Jussara. Botei na tag Violência Doméstica e Abuso, claro. Obrigado!
Sérgio