A vida, segundo o Bergman de Persona, é um emaranhado de perguntas, questionamentos. De respostas, estamos em falta. Persona não fornece respostas – só perguntas, questionamentos, dúvidas, inquietações.
Pelo menos foi essa a sensação que tive ao rever o filme extraordinário agora, muitíssimos anos depois da vez anterior.
Nenhum cineasta foi mais fundo nas grandes questões metafísicas que Ingmar Bergman.
Os maiores cineastas souberam contar belas histórias com belas imagens, nos fizeram sonhar, recordar, ter medo, sentir profunda tristeza, profunda alegria, chorar, gargalhar. Bergman, como nenhum outro, fez tudo isso – ao mesmo tempo em que nos fez pensar, refletir, pesar, ponderar. Ninguém foi tão fundo na alma humana como Ingmar Bergman.
Bergman usou o cinema para fazer o que antes só se fazia em texto preto no branco: botou em imagens não apenas histórias, mas todas as grandes questões que assombram a humanidade desde que ela existe, “todas aquelas perguntas que não tem sentido fazer, e no entanto fazemos o tempo todo”, para usar os versos de Kate Wolf, uma cantautora que escreve numa linguagem que finge imensa simplicidade – todos os porquês, o quem somos, onde estamos, para onde vamos.
Não sou, infelizmente, um bom conhecedor da maior parte da obra, aliás vasta, gigantesca, de Bergman (67 filmes, quase todos, ou todos, baseados em argumentos e roteiros originais dele próprio), ao contrário de meu amigo Jorge Teles ou de meu ídolo Woody Allen, que em vários de seus próprios filmes reverencia o ídolo dele. Mas ousaria dizer que Persona é um dos filmes formalmente mais ousados, mais inquietantes, mais inquietos, do criador genial.
Posso estar errado, mas, pelo que me lembro, Bergman não é, na maioria de seus filmes, formalmente tão inventivo, desestruturador, quanto foi em Persona. Em geral, suas narrativas são mais simples, mais escorreitas do que neste seu filme de 1966. Elas têm tantas idéias para abordar, para discutir, para mostrar, que a estrutura narrativa muitas vezes beira o tradicional, o convencional.
Em Persona, no entanto, a narrativa é absolutamente plena daquilo que hoje em dia chamo de criativóis, fogos de artifício.
A década de 60 foi, sem dúvida alguma, aquela em que os grandes realizadores, os maiores, os colossais, mais ousaram na forma, na estrutura narrativa. Exprimiam, ou talvez antecipavam, toda a inquietação da década que muitos de nós acreditávamos que mudou a história – embora, mais tarde, tenhamos tido que cair na real e perceber que no fundo, no fundo, mudou-se muita coisa, quase tudo, mas tudo permaneceu mais ou menos igual.
Mas não é por acaso que nos anos 60 ou em em suas vizinhanças bem próximas tenham sido criados Hiroshima, Meu Amor e O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais, Oito e Meio, de Fellini, Mickey One, de Arthur Penn, e mais todos os que se tornariam históricos assinados por Gláuber Rocha e Jean-Luc Godard – toda aquela imensa galeria de filmes que, de tanto misturar realidade, sonho, imaginação, passado, presente, futuro, deixam Cidadão Kane de Orson Welles parecendo um exemplar de simplicidade narrativa perfeita para a novela das 6 da tarde.
Na imensa maior parte do filme, estão em cena apenas as duas mulheres
Persona começa com um monte de imagens aparentemente desconexas – rostos de pessoas mortas, um filme que está passando por um projetor e se incendeia, um garoto que não consegue dormir, o garoto em seguida como que pegando numa tela que reproduz rostos femininos, uma imagem lancinante de um prego sendo enfiado em uma mão humana, como se fez com Cristo e com tantos outros tidos por romanos como criminosos.
E aí vêm os créditos iniciais – básicos, simples, rápidos, letras negras em cima da tela branca.
E então somos apresentados às duas protagonistas, a atriz Elisabet e a enfermeira Alma.
E elas vêm através de, respectivamente, Liv Ullmann e Bibi Andersson, essas duas atrizes magníficas, imensas, gigantes.
Quem nos apresenta a atriz Elisabet é a doutora (Margaretha Krook), que aparecerá em não mais que três sequências, apenas. Em, digamos, uns 80 dos 85 minutos de duração de Persona, veremos apenas Elisabet-Liv Ullmann e Alma-Bibi Andersson.
A doutora chama a enfermeira Alma e diz que está entregando para ela o caso da paciente Elisabet Vogler. Elisabet Vogler, explica a doutora, muito didaticamente, à enfermeira Alma, estava interpretando no teatro uma grande tragédia grega, quando de repente, no meio de um cena, travou. No dia seguinte, não apareceu para os ensaios, nem para a representação. Foram encontrar Elizabet em sua casa, deitada na cama, quieta, sem falar nada. Levaram-na então para aquele hospital. Todos os exames revelaram que não havia nada errado com ela – mas ela recusava-se a falar, a estabelecer qualquer relação com os demais seres humanos.
Quem nos apresenta a enfermeira Alma é ela própria. Ela se encaminha para o quarto onde a famosa atriz Elisabet Vogler está deitada em sua cama, e se apresenta tanto para a paciente de quem vai agora tomar conta quanto para o espectador. Conta que tem 25 anos, acabou o curso de enfermagem há dois anos, está noiva, e pretende se casar.
Como a paciente não fala uma palavra sequer, a enfermeira fala, fala muito
Logo depois dessas sequências iniciais, a enfermeira Alma se encontra num corredor do hospital com a doutora. A câmara do extraordinário diretor de fotografia Sven Nykvist não mostra a doutora – acompanhamos o diálogo vendo apenas o rosto da enfermeira Alma.
Alma apresenta à superiora questionamentos, dúvidas. Acha-se pequena demais para tratar daquela mulher que é mais velha, que é famosa, e que está firmemente determinada a não fazer qualquer tipo de contato com o mundo. Tem medo de falhar, acha que uma profissional mais experiente seria mais adequada.
Mas a doutora decide manter a jovem continuará cuidando da atriz.
Passado algum tempo, a médica faz uma preleção à paciente. Diz que será melhor ela continuar sob os cuidados da enfermeira Alma, mas não no hospital; emprestará para as duas a sua própria casa, numa praia isolada.
Persona está aí com apenas uns dez, no máximo 15 minutos, quando vemos Elisabet e Alma instaladas na confortável casa na praia isolada, distante deste insensato mundo com o qual a paciente se recusa a manter qualquer relacionamento.
No refúgio, Elisabet fica bem melhor do que estava no hospital. Anda, passeia, lê, fotografa. Só não fala – não emite uma só palavra.
Como a mulher mais velha não fala coisa alguma, a mais nova fala. Alma abre aquilo que dá seu nome para a silenciosa Elisabet. Revela coisas de seu passado que jamais havia revelado para ninguém.
Como para as grandes questões metafísicas, não há respostas às dúvidas do espectador
E então passa a se dar o que é o cerne da história. Ali, sozinhas, isoladas do mundo, as duas mulheres como que trocam de identidade. Uma passa a agir, a pensar, como a outra. Uma assume a personalidade da outra. Ou, talvez, as duas façam uma fusão de suas personalidades.
Até mesmo visualmente: em várias tomadas, o diretor de fotografia Sven Nykvist funde o rosto de Liv Ullmann com o rosto de Bibi Andersson.
As tomadas são de uma beleza plástica estrondosa.
E o espectador tem todo o direito de se encher de dúvidas, de questionamentos, de perguntas.
Qual o sentido de Elisabet contar para a médica, em carta, os segredos íntimos que Alma lhe revelou? Por que deixar o envelope aberto, sabendo que Alma é que levaria a carta para o correio mais próximo? Foi de propósito, para que Alma lesse a carta? Mas com que finalidade? Para estudar as reações da moça?
Elisabet esteve de fato no quarto de Alma, após a longa noite em que esta fez as confidências? Elisabet falou algumas palavras, no final daquela longa noite? Essas duas perguntas, a próprio Alma faz a Elisabet – mas esta não responde, é claro. Não há respostas em Persona – apenas perguntas.
Assim como na vida não há respostas para as grandes questões – quem somos, onde estamos, para onde vamos, para que serve tudo isso, a vida and all that jazz?
O marido de Elisabet (interpretado por Gunnar Björnstrand, outro dos atores que trabalharam em vários dos filmes de Bergman) esteve de fato na casa da praia? Ou foi apenas na imaginação de Alma?
(Em uma anotação sobre a gênese da história, Bergman diz que quem faz a visita à casa é o namorado de Alma!)
Elisabet teve de fato um filho e o rejeitou, ou aquilo tudo era projeção de Alma, com base no fato de que não teve o filho que gerou, talvez com o garoto da praia, talvez com o namorado?
Existiu na vida de Alma uma Elisabet, ou foi apenas imaginação?
O que de fato aconteceu, e o que foi apenas imaginação de Alma, de Elisabet?
Claro: foi tudo imaginação do criador, Ingmar Bergman, como mostra a tomada de uma câmara que filma tudo ao final da narrativa soberba.
Há questões que o Google resolve. As que Bergman coloca são mais difíceis
“Questions we can’t answer, though we ask them just the same.”
Me pergunto se Kate Wolf, jovem riponga da Califórnia, terá visto Persona.
Me pergunto se terá sido mesmo o poeta Carlos Drummond de Andrade que perpetrou a brincadeirinha com as grandes questões metafísicas. “Quem sou, onde estou, para onde vou? Sou um funcionário público, estou no bonde e vou para a repartição.” Terá sido ele? Não me lembro.
Mas tudo bem: essa é uma dúvida que o Google resolve.
As questões que Ingmar Bergman coloca em seus filmes são mais difíceis.
Além de criar um filme e encenar uma peça por ano, Bergman escrevia compulsivamente
Quando começou a fazer as anotações em seu diário que resultariam no roteiro de Persona, Bergman estava internado numa clínica, febril. Tinha tido uma pneumonia dupla, a que se seguiu um envenenamento causado por excesso de penicilina.
Mais tarde, durante as filmagens, Ingmar Bergman e Liv Ullmann se apaixonaram. Viveriam e filmariam juntos por vários anos. Não se casaram no papel. Bergman foi um homem de muitas paixões na vida: casou-se no papel cinco vezes – mas teve ligações fortes com várias de suas atrizes, entre as quais Harriet Andersson e Liv Ullmann.
Essas infomações, não retiro das “trívias” do IMDb, mas do que o próprio Bergman escreveu.
Bergman escrevia compulsivamente.
Minha filha algum tempo atrás cunhou uma frase perfeita: “Paiê, tudo agora pra você vira texto.” É bem verdade.
Mas, mesmo deixando de lado o fato de que Ingmar Bergman é, muito provavelmente, o maior de todos os cineastas da História e eu sou apenas um velhinho latino-americano com algum dinheirinho no banco, sem parentes importantes e vindo do interior, mesmo deixando de lado o fato de que o cara, além de ter criado 67 histórias originais e as transformado em 67 filmes, foi também diretor de teatro, é fatal reconhecer: o louco escrevia muito mais que eu.
Há mistérios demais nesta vida, embora, segundo Renato Teixeira, o maior mistério seja haver mistérios. Tão difícil quanto tentar entender quem somos, onde estamos, para onde vamos, é tentar compreender por que algumas pessoas, como Bergman, Woody Allen, Ewan McGregor, Steven Soderbergh, Daniel Auteil, conseguem fazer tantas coisas ao mesmo tempo.
Bergman, além de produzir um filme por ano e encenar uma peça por ano e casar e descasar e casar de novo, escrevia compulsivamente, alucidamente. Escrevia diários, fazia anotações esparsas, escrevia os roteiros dos filmes, e escrevia livros.
As informações que coloquei acima, sobre o estado febril do gênio enquanto começava as anotações que dariam origem ao roteiro de Persona, e sobre o fato de ele e Liv Ullmann terem se apaixonado durante as filmagens, estão nos livros Lanterna Mágica, sua biografia publicada originalmente em 1987, quando ele estava com 69 anos (nasceu em 1918, o ano em que terminou a Primeira Guerra), e no Brasil em 1988, pela Editora Guanabara, e Imagens, lançado na Suécia em 1990 e no Brasil em 1996, numa belíssima edição da Martins Fontes.
Bergman diz que fazer Persona salvou sua vida
No livro Imagens, Bergman fala sobre o processo de filmagem das sequências em que os rostos de Liv Ullmann e Bibi Andersson se fundem. É uma maravilha.
Faz também uma afirmação extrema: diz que o filme salvou sua vida. Isso porque ele estava, na época, dirigindo o Teatro Nacional da Suécia, amargurado por estar tendo que dedicar muito de sua energia a questões burocráticas. Dedicar-se à criação de Persona o fez de novo se sentir artista, e não um burocrata.
“Com este filme (…), e, mais tarde, com Gritos e Sussurros, fui o mais longe que pude quanto à técnica narrativa. Isto é, com total liberdade toco em segredos para os quais não existem palavras e que só a cinematografia pode patentear.”
Embora com extrema preguiça, há que se fazer o registro: no Brasil, o filme ganhou o título de Quando Duas Mulheres Pecam. Esse título que os exibidores brasileiros inventaram ultrapassa qualquer limite do grotesco, do ridículo. Pela primeira vez, vou deixar de usar o título brasileiro no alto do post.
“Quando uma das mulheres aspira o sangue da outra”
Foi sobre Persona a última crítica que o extraordinário Georges Sadoul (1904-1967) escreveu na vida. Sadoul é um daqueles críticos apaixonados pelos filmes que via, assim como o americano Roger Ebert. Sendo francês, tinha um conhecimento abrangente do cinema feito em praticamente todos os lugares do mundo. Sua História do Cinema Mundial – Das Origens aos Nossos Dias teve uma bela edição no Brasil, em dois grandes volumes, pela Martins Fontes, em 1963 (a editora se chamava então Livraria Martins Editora). (Ganhei o livro de presente da Loló, uma colega do Colégio de Aplicação, em 1965, e devorei, sublinhando um monte de coisas. Na dedicatória – que loucura – ela dizia: “Foi com você que aprendi a gostar de cinema como arte”.)
Sadoul escreveu, em sua última crítica, publicada em Lettres Françaises, no dia 6 de julho de 1967: “A incomunicabilidade dá lugar aqui, se assim ouso dizer, à ‘permeabilidade’, à identificação entre dois seres, entre duas mulheres, a chaga e a faca, entre a doente mental e sua enfermeira, entre a máscara e o rosto”.
“Uma obra estranha e enfeitiçadora sobre o tema do duplo, e quase do vampirismo, quando uma das mulheres aspira o sangue da outra”, diz o maravilhoso Guide des Films de Jean Tulard. “O tema do duplo, mas também do contrário, que traduz bem a oposição entre Alma e Elisabet. Se o filme desconcerta numa primeira visão, descobre-se em seguida toda a riqueza.”
Cada vez que vejo um texto de Sadoul ou no Guide des Films, mais me impressiono.
Sinto que, diante dos monstros franceses, essas minhas longas anotações são a poeira do cocô do cavalo do bandido.
E então penso sobre um comentário que fez no Facebook, anos atrás, um velho companheiro de armas, um veterano jornalista, mais veterano ainda que eu, diante do meu espanto com o fato de que alguns colegas estavam usando muito de seu tempo para relatar velhas histórias da redação do Estadão. Melhor lembrar essas nossas histórias – escreveu no Face o colega – do que ficar escrevendo sobre os filmes dos outros.
É. Pode ser.
Mas é estranho. Mesmo me sentindo poeira do cocô do cavalo do bandido quando comparo o que anoto aqui com os textos sempre brilhantes do Guide de Jean Tulard, gosto imensamente de falar sobre “os filmes dos outros”.
Se é filme bom, então, se é Bergman…
De uma coisa não tenho dúvida, não questiono: entre o que fizemos ou deixamos de fazer na redação e os filmes, ah, os filmes são muito mais importantes.
Anotação em janeiro de 2014
Quando Duas Mulheres Pecam/Persona
De Ingmar Bergman, Suécia, 1966.
Com Bibi Andersson (Alma, a enfermeira), Liv Ullmann (Elisabet Vogler, a atriz),
e Margaretha Krook (a doutora), Gunnar Björnstrand(o senhor Vogler)
Argumento e roteiro Ingmar Bergman
Fotografia SvenNykvist
Música Lars Johan Werle
Montagem Ulla Ryghe
Produção Svensk Filmindustri
P&B, 85 min
R, ****
Oi, Sérgio.
Seu texto está excelente.
Obrigado pela citação. Não me sinto bem um entendedor de Bergman mas um fanático apaixonado por sua obra. Com frequência, revejo todos os seus filmes. Claro, que é por causa do seu constante questionamento sobre o mistério, mas também pelo perfeccionismo que ele buscava e atingia.
Com relação ao filme Persona, num documentário sobre “montagem”, Bergman esclarece a cena do diálogo entre as duas mulheres, repetida. Ele resolveu filmar toda a cena focando no rosto de uma delas e repetir focando no rosto da outra, para posteriores cortes e montagem. Uma fala todo o tempo, a outra ouve e reage com o rosto e os olhos. No final, ele achou que as duas tinham feito um trabalho tão incrível que resolveu manter a cena sem cortes e repeti-la. Incrível ficou a sequência.
Abraços do sul, até.
Extremamente visceral!!!Experimental, sem exageros!!!Claustrofobico!!! – marcio “osbourne” silva de almeida/jlle-sc