O mais comum, e mais lógico, é a canção ser criada para se encaixar na trama do filme. Canções extraordinárias foram feitas, por exemplo, especificamente para a história de amor entre Tony e Maria, em West Side Story, ou para as aventuras de Sally Bowles na Berlim entre guerras, em Cabaret.
Em O Mundo da Fantasia – no original There’s No Business Like Show Business, musical da Fox lançado em 1954 – é o contrário: os roteiristas Phoebe e Henry Ephron, com base em uma história criada por Lamar Trotti, tiveram que inventar uma trama em que pudessem se encaixar diversas canções já existentes, algumas que já faziam grande sucesso, algumas que até já haviam aparecido em outros filmes.
São 18 canções, algumas apresentadas mais de uma vez, e o único denominador comum entre elas é que saíram da testa de um mesmo autor, Irving Berlin, um dos gênios da Grande Música Americana, ao lado de George & Ira Gershwin e Cole Porter. Nos créditos iniciais, o nome do compositor – à época respeitadíssimo, adorado por todos nos Estados Unidos, uma unanimidade nacional – aparece gigantesco: “Irving Berlin’s” toma a tela inteira, para em seguida aparecer o título do filme, There’s No Business Like Show Business, por sinal o título de uma das canções do mestre.
É a história de uma família de artistas de vaudeville
A trama é simples. Conta-se a história de uma família de artistas do vaudeville, no período entre o final da Primeira Guerra Mundial e o final da Segunda – entre 1919 e 1945. Um letreiro informa, após os créditos iniciais: “Em 1919, o vaudeville era uma parte muito grande do show business. Nossa história é sobre os Donahues, uma parte bem pequena do vaudeville”.
Hum… Como exatamente os dicionários definem vaudeville? “Gênero de comédia ligeira, com intriga divertida e viva, onde se combinam canções geralmente compostas sobre melodias simples e populares. Atualmente, comédia ligeira baseada na intriga e no quiproquó.”
Ahá. Aí está, no mesmo Larousse Cultural de onde saíram as definições acima: “O vaudeville foi também um tipo de espetáculo de variedades muito difundido nos EUA entre o fim do século passado (o XIX; o Larousse em questão é antigo) e a década de 30. Era composto de 10 a 15 números sem relação entre si: musicais, cômicos, dramáticos, acrobáticos, malabaristas, mágicos, animais amestrados, etc.”
O casal Molly e Terence Donahue (Ethel Merman e Dan Dailey, nas fotos acima e abaixo) faz disso tudo aí um pouco. Os dois cantam, dançam, fazem um pouco de comédia e acrobacia enquanto cantam e dançam – e desde cedinho levam para o palco, como se fossem bichinhos amestrados, os Donahuezinhos, dois garotos e uma garota. Quando a ação começa, em 1919, era só um garotinho, o primogênito. Rapidamente surgem os outros dois e, lá por 1937, ainda não passados 20 minutos de filme, os três filhos já aparecem interpretados pelos atores Donald O’Connor (Tim Donahue, o primogênito), Johnnie Ray (Steve Donahue) e Mitzi Gaynor (Katie Donahue).
Marilyn Monroe surge aos 30 minutos de filme – e todos se apaixonam por ela
Em 1954, Donald O’Connor e Mitzi Gaynor eram jovens atores em ascensão. Dois anos antes, Donald O’Connor havia sido um dos três astros de Cantando na Chuva; entre 1954 e 1955, ele teria o seu próprio show na TV americana. Mitzi Gaynor, uma garotinha bonitinha demais, teria uma carreira no cinema curta mas proveitosa entre 1949 e 1963.
Ethel Merman (1908-1984), a atriz que faz a mãe dos Donahuezinhos, era uma grande estrela tanto dos musicais da Broadway quanto dos filmusicais de Hollywood. Cole Porter e Irving Berlin a admiravam, adoravam vê-la cantando suas canções, fosse no teatro ou no cinema. É uma boa atriz, canta e dança com competência.
Irving Berrlin, Ethel Merman, Donald O’Connor, Mitzi Gaynor. Eram nomes respeitáveis, já garantiriam, provavelmente, uma bilheteria razoável. Mas a Fox tinha um outro nome em vista. E, na verdade, é por causa desse outro nome que o filme tem alguma importância.
Marilyn Monroe surge quando estamos com exatos 30 minutos de filme. Vicky Parker, seu personagem, está naquele momento trabalhando na chapelaria de um daqueles restaurantes de Nova York em que se apresentam cantores e orquestras, muito comuns nos filmes americanos. É lá que Tim Donahue a vê pela primeira vez.
Está trabalhando na chapelaria de passagem, é claro. É uma aspirante a cantora, faz cursos de treinamento vocal, de colocação da voz. Naquela mesma noite, seu agente, Eddie (Frank McHugh), ficou de levar até o restaurante um importante produtor da Broadway. E Vicky combinou com o líder da orquestra que cantaria uma música.
Surge num vestido branco com transparências e apertado a seu corpo nada magérrimo-top-model de hoje, nada biafrento. O vestido tem uma imensa fenda que permite a visão ampla, geral e irrestrita das monumentais perna e coxa esquerdas, enquanto ela canta, sensualissiamente, “After You Get What You Want You Don’t Want It”, uma canção abertamente sobre sexo.
O tal produtor da Broadway apaixona-se por ela. Tim Donahue apaixona-se por ela. Todos os espectadores apaixonam-se por ela.
O filme é do ano em que Marilyn se tornou a maior estrela de Hollywood
Marilyn fez papéis marcantes mas bem pequenos em dois grandes filmes lançados em 1950, A Malvada e O Segredo das Jóias.
Em 1952, foram lançados cinco filmes com ela; em três deles, eram papéis pequenos – O Inventor da Mocidade, Páginas da Vida, Só a Mulher Peca. Em Travessuras de Casados e Almas Desesperadas, já interpretava personagens bem importantes.
Entre 1953 e janeiro de 1955, chegaram aos cinemas cinco filmes em que Marilyn já estava entre os protagonistas: Torrentes de Paixão/Niagara, Os Homens Preferem as Louras, Como Agarrar um Milionário, O Rio das Almas Perdidas e este O Mundo da Fantasia.
Foi uma ascensão fulminante. Em 1953, ela apareceu nua no número 1 da revista Playboy. Em setembro de 1954, quando começaram as filmagens de O Pecado Mora ao Lado/The Seven Year Itch, já era a maior estrela de Hollywood. O Pecado Mora ao Lado, o primeiro dos dois que fez com o diretor Billy Wilder, teria pré-estréia de gala em Nova York em 1º de junho de 1955, o dia em que completava 29 anos de idade.
Depois desse, faria apenas mais cinco filmes: Nunca Fui Santa/Bus Stop (1956), O Príncipe Encantado/The Prince and the Showgirl (1957), Quanto Mais Quente Melhor/Some Like it Hot (1959), Adorável Pecadora/Let’s Make Love (1960) e Os Desajustados/The Misfits (1961). Este último, baseado em história do terceiro marido de Marilyn, o respeitadíssimo dramaturgo Arthur Miller, e com direção do lendário John Huston, que havia dirigido Marilyn num pequeno papel em O Segredo das Jóias/The Asphalt Jungle, de 1950, seria o último filme da estrela, o último de Clark Gable e o último também de Montgomery Clift.
Quando morreu, em 5 de agosto de 1962, Marilyn era a maior estrela do cinema mundial e estava com apenas 36 anos.
Naturalmente, quem gosta de musicais apreciará melhor o filme hoje
Hoje, passados mais de 60 anos de seu lançamento, creio que este só deverá deixar deliciados os apaixonados pelos musicais de Hollywood, ou pelo gênero filmusical de uma maneira mais ampla. Não é um filme ruim, de forma alguma – e eu, pessoalmente, tive prazer em revê-lo.
A sequência longa em que um dos maiores sucessos de Irving Berlin, “Alexander’s Ragtime Band”, é interpretada várias vezes em seguida – de um jeito alemão, de um jeito escocês, de um jeito francês, além do andamento normal de ragtime dos anos 1920 – pode parecer chato para alguns espectadores. Para quem gosta de musical, é uma delícia.
Há belos achados na coreografia da longa sequência em que Tim Donahue se recusa a sair de perto da porta do quarto de Vicky – porta esta que ela, virginalmente, havia fechado ao se despedir do rapaz. Donald O’Connor é um bom dançarino, está à vontade, e a sacada de as estátuas das fontes adquirirem vida é gostosa e bem executada.
Mas é natural que, para os espectadores que não são tão fãs do filmusical, os trechos mais interessantes do filme sejam aqueles em a presença de Marilyn ilumina a tela. E, credo em cruz, como ilumina.
Mostrei para Mary, que não viu o filme comigo, a sequência em que Marilyn canta e dança “Heat wave”, provocando, ela mesma, uma onda de calor entre os “latinos” que dividem o número com ela e entre a audiência. É uma sequência absolutamente antológica, para mostrar como era o musical americano dos anos 50, e como e por que MM foi o maior mito sexual do século XX. Mary fez um comentário assim: “Esquisito – os caras têm uma Marilyn toda e não fazem um close-up dela”.
Aquela Marilyn toda – e, no entanto, não há um close-up de seu rosto
É bem verdade. Não há, que eu me lembre, sequer um close-up do rosto faiscantemente belo de Marilyn – assim como não há close-up de rosto algum, ao longo dos 117 minutos de filme. Mas não se deve debitar isso na conta do diretor Walter Lang (1896-1972), um artesão nada especialmente brilhante mas correto, competente.
É uma questão do contexto histórico.
No início dos anos 1950, a Fox começou a fazer filmes em CinemaScope. Contra a então imagem quase quadrada com que o cinema havia vindo ao mundo, nos anos 1890, e com que nascia a televisão, roubando dos cinemas milhares, milhões de espectadores, Hollywood atacou com o CinemaScope – a tela muito mais ampla na base que na altura.
Todos os grandes estúdios ampliaram a base das telas, tornaram o retângulo mais comprido. Os nomes variavam, CinemaScope, VistaVision, mas a tendência era uma só: fazer crescer a tela, para se diferenciar da tela da terrível rival televisão.
Para encher a tela maior, os estúdios todos, e a Fox, precursora do CinemaScope, em especial, passaram a lançar como nunca antes épicos, filmes bíblicos, com centenas, milhares de extras, figurantes, e um excesso de tomadas gerais.
Há diversas sequências de O Mundo da Fantasia com dezenas e dezenas de figurantes.
E nada de close-up. Close-up era coisa de TV, de tela pequena. Cinema, naquele início dos anos 50, era sinônimo de planos gerais, coisa que a TV não tinha condições de fazer.
Eis aí por que não há, em O Mundo da Fantasia, sequer um close-up do rosto faiscantemente belo de Marilyn. Não por culpa do Walter Lang, ou do diretor de fotografia Leon Shamroy, outro veterano (1901-1974). Era o contexto.
Todo mundo parou de trabalhar nos estúdios da Fox para ver Marilyn beijar O’Connor
O filme teve três indicações ao Oscar: melhor história (naquele ano havia um prêmio diferente para a história original e para o roteiro final), para Lamar Trotti; melhor figurino e melhor trilha sonora para um musical, para Alfred e Lionel Newman. Não levou nenhum deles.
Algumas curiosidades, a maior parte delas retirada da página de Trivia do IMDb:
* A primeira colaboração entre o compositor Irving Berlin e a atriz e cantora Ethel Merman havia sido no filme A Epopéia do Jazz, de 1938. Consta que o compositor já naquela época garantiu que os dois voltariam a trabalhar juntos. E, de fato, escreveria dois shows da Broadway especialmente para ela: Annie Get Your Gun (1946) e Call Me Madam (1950). Este último show foi adaptado para o cinema como Sua Excelência, a Embaixatriz (1953), também com Ethel Merman. A canção “There’s No Business Like Show Business” foi composta originalmente para o musical teatral Annie Get Your Gun.
* A canção “When the Midnight Choo-Choo Leaves for Alabam'” – que é cantada não uma, mas duas vezes no filme, a primeira por Ethel Merman e Dan Dailey, e a segunda por Donald O’Connor e Mitzi Gaynor, já havia aparecido seis anos antes, em Desfile de Páscoa/Easter Parade, cantada por Judy Garland e Fred Astaire.
* Na trama, a canção “Heat wave” deveria ser apresentada, na temporada em Miami, pelos Donahues, mas é cedida por Tim para Vicky-Marilyn. Mamãe Donahue fica brava porque a garota bonita e gostosa roubou-lhe a canção. A vida, aí, imitou perfeitamente a arte. Originalmente a intenção era de que a canção fosse cantada no filme por Ethel Merman, que, como já foi mencionado, era uma atriz adorada pelo compositor Irving Berlin. Mas acabou indo para Marilyn. Ainda bem, digo eu.
* O papel de Vicky Parker, a sexy cantora em súbita ascensão, foi escrito especialmente para Marilyn. Àquela altura dos acontecimentos, a Fox tinha plena consciência de que a presença da estrela em súbita ascensão seria uma garantia de boa bilheteria.
* Uma fofoca, pura e simples: na época das filmagens, Donald O’Connor tinha acabado de se separar de Gwen Carter, após um casamento de dez anos. Pois não é que, durante as filmagens, Gwen começou um namoro com Dan Dailey, o ator que no filme faz papel de pai do personagem de Donald O’Connor? Pouco depois, sairia o divórcio de Gwen e O’Connor, e ela se casria com Dailey.
* Consta que cerca de mil pessoas – extras, figurantes, técnicos, gente de outros filmes sendo feitos no estúdio da Fox à mesma época – pararam de fazer o que estavam fazendo para assistir à filmagem da sequência em que Donald O’Connor e Marilyn se beijam.
Quem não quiser se divertir que vá v er um Michael Haneke
Leonard Maltin da 2.5 estrelas em 4 para o filme: “Chamativa (e aparentemente interminável) bobagem sobre uma família do show-biz, construída em torno do catálogo de canções de Irving Berlin. Divertido, se não inspirado, com vários números caros criados para encher a tela ampla. Merman e Dailey estão ótimos, Marilyn está na sua melhor forma sexy, e O’Connor em perfeita forma o tempo todo. Mas aí há Johnnie Ray decidindo virar padre… Em CinemaScope”.
Ah, sim, tem isso. Steve Donahue, se não me engano o filho do meio, resolve ser padre. Não pastor ou ministro batista, metodista, presbiteriano, ou anglicano. Não religioso protestante, como é (ou era, em 1954) a sólida maioria da população americana, WASP – branca, anglo-saxônica e protestante. E sim religioso cristão – religião que era francamente minoritária na população americana.
Manuel S. Fonseca, um erudito conhecedor de filmes, cunhou uma frase perfeita que explica por que, raios, Steve Donahue resolve ser padre, e não ministro de alguma das denominações protestantes: “Faça-se justiça ao catolicismo. Essa religião de genuflexões, de padres-nossos e ave-marias, de em nome do pai e do filho, de mea culpa, mea culpa e salve-rainhas, é a mais cinematográfica das religiões.”
É necessário deixar claro: a frase de Manuel é genérica, refere-se a todos os filmes jamais feitos. Ele não está falando especificamente deste filme aqui – mas ele exprime maravilhosamente o motivo pelo qual Steve Donahue, este filho de gente do show-biz – e não há gente como a gente do show-biz! – comete o grande pecado de abandonar o palco em busca de um púlpito.
O catolicistmo é a mais cinematográfica das religiões.
Talvez haja até uma explicação mais simples: os Donahue são, tudo indica, imigrantes irlandeses. E os irlandeses têm esse problema, ou,no mínimo, essa característica, além daquelas outras todas, de serem alegres, musicais, e adoradores de um uísque e uma cerveja: são em geral católicos, numa região cercada por protestantes.
Mamãe Donahue se entristece com a notícia de que seu filho vai servir ao Senhor, e não às platéias dos teatros. “A gente cria os filhos nos bastidores… E um deles resolve ser padre!”
Catolicamente, Mamãe Donahue irá perdoar aquele vulcão de sensualidade, Vicky-Marilyn Monroe, por ter roubado seu filho e estragado seus números. E todos serão felizes para sempre, como mandam os costumes das comédias musicais.
Não há negócio como o negócio do espetáculo. Quem não quiser diversão que vá ver um bom Michael Haneke, ou qualquer um dos 25 filmes inassistíveis que Godard fez ultimamente.
Anotação em agosto de 2014
O Mundo da Fantasia/There’s No Business Like Show Business
De Walter Lang, EUA, 1954
Com Ethel Merman (Molly Donahue), Donald O’Connor (Tim Donahue), Marilyn Monroe (Vicky Parker), Dan Dailey (Terence Donahue), Johnnie Ray (Steve Donahue), Mitzi Gaynor (Katy Donahue), Richard Eastham (Lew Harris), Hugh O’Brian (Charles Gibbs), Frank McHugh (Eddie Dugan, o agente de Vicky)
Roteiro Phoebe Ephron e Henry Ephron
Baseado em história de Lamar Trotti
Fotografia Leon Shamroy
Música Alfred Newman e Lionel Newman
Canções de Irving Berlin
Montagem Robert L. Simpson
Produção Sol C. Siegel, 20th Century Fox. DVD Fox.
Cor, 117 min
R, **1/2
Nunca vi mas tenho alguma curiosidade. Pensei que fosse um pouco fraco, mas com a tua pontuação, melhorei as expectativas
Concordo inteiramente com sua análise. É um ótimo filme, onde se destacam Donald O’Connor e Marilyn Monroe (deslumbrante).
Eu não sou fã de filmusicais, e confesso, sem a menor vergonha, que só vejo musicais com o fabuloso, amado, idolatrado, salve-salve! Gene Kelly, com raras exceções para alguns com a Julie Andrews. Só que eu ando numa fase de querer ver filmes com a Marilyn Monroe (sou uma pessoa de fases e obsessões), então pode ser que de repente eu resolva abrir outra exceção.
Eu não sabia que o Donald O’Connor tinha tido um programa na TV, mas é mais fácil perguntar qual ator famoso daquela época não teve. O próprio Gene teve um (mesmo não gostando, mas a TV pagava bem), assim como a já citada Julie Andrews e também a Judy Garland, para ficar só nesses.
Sobre TV, tem um comentário ótimo de Mr. Kelly:
“At first none of us believed that television would ever be the first of mass media. We never thought it would supplant motion pictures. We thought it was just a very interesting thing that would be used for newsreels and documentaries. It never really hit us that people all over America and all over the world have it in their homes and look at it as entertainment.”
E não é que consegui ver o filme? Não achei tão ruim, só achei a maioria das sequências musicais chatas, mas isso não é novidade, pois eu não gosto de números musicais (há as exceções), ainda mais quando não têm ligação com o enredo.
No começo até gostei da historinha, interessante ela girar em torno de uma família de artistas de vaudeville; mas quando veio a sequência “Alexander’s Ragtime Band” quase morri de tédio. Como você bem disse, “pode parecer chato para alguns espectadores”, e para mim foi chatíssimo.
Mais uma vez, achei que Marilyn Monroe fez o mesmo papel que havia feito em outros filmes que vi com ela; ou vai ver ela sempre fazia o papel dela mesma. Mesmos olhares, cabelo, sensualidade, jeito de mexer a boca, tom de voz.
Amei ver Donald O’Connor citando uma frase, a mesmíssima que Gene Kelly disse em Singin’ in The Rain para a personagem de Debbie Reynolds: quando Vicky pede licença para passar por Tim, que estava trancando o caminho, ele se levanta, e quando a vê, diz: “Oh, if it isn’t Ethel Barrymore”… Reconheci a frase na hora, sei de cor vários diálogos de SITR (viciada). Antes disso, quando vai guardar o chapéu, e fica de conversa mole, ele fala que a imagina fazendo Lady Macbeth, outra referência a SITR, mas nessa cena a frase não foi literal.
Em vários momentos durante as danças, fiquei pensando na falta que um bom coreógrafo faz, as sequências de dança são todas fraquinhas (a melhor é a em que O’Connor canta e sapateia com as estátuas, minha preferida), e lembrei muito de Gene Kelly e suas coreografias maravilhosas. Por falar nisso, o fato de ter que encaixar canções já existentes na trama também aconteceu em SITR, não? Só que a história criada por Betty Comden e Adolph Green é milhares de vezes superior, eles foram nada menos que geniais.
Mitzi Gaynor desfila o tempo todo com uma cinturinha de fazer inveja a qualquer atriz anoréxica dos dias de hoje, com a diferença de que ela era magrinha mas não parecia passar fome.
Ethel Merman era poucos anos mais velha que Dan Dailey, mas aparentava ser muito mais. Às vezes ele parecia ser filho dela.
Que saia justa para Donald O’Connor ter que contracenar com o homem que seria o futuro marido de sua ex-mulher, mas pelo menos foi ele quem beijou MM.
Gostei do lance de um dos filhos escolher ser padre, mesmo tendo sido criado na dança e na música. A frase do Manuel Fonseca sobre o catolicismo ser a mais cinematográfica das religiões é ótima, mas a explicação que você deu também faz sentido.
Tem um erro de continuidade grosseiro em uma das sequências com Marilyn Monroe. Aliás, para mim a personagem dela ficou meio fora de contexto; o número em que canta e dança com os irmãos Donahue é bem nada a ver. Acho que a atriz foi escalada só pra alavancar bilheteria, afinal, “there’s no people like show people, they smile when they are low.”
Na lista dos filmes que ela fez depois deste, não ficou faltando Adorável Pecadora/Let’s Make Love? Só sei da existência dele e senti falta por causa da participação especialíssima de Gene Kelly, por supuesto.
Jussara, querida, delícia, delícia de comentário, como sempre. E obrigado pela correção: claro, na lista dos filmes que Marilyn faria depois deste estava faltando “Adorável Pecadora/Let’s Make Love”. O mais absurdo era que eu dizia “faria apenas mais cinco filmes” – e enumerava quatro!
Obrigado!
Sérgio
Muito obrigada, Sérgio, pelo elogio. Bondade sua!
Absurdo nenhum ter esquecido de enumerar um dos filmes, são pegadinhas que nossos cérebros nos pregam.
E eu só me dei conta, porque como já disse, foi o filme em que Gene Kelly fez uma pontinha, do contrário, talvez eu nem tivesse notado. Uma pena ele aparecer tão pouco (editaram demais), já que é o ponto alto desse filme fraquinho. Na época ele estava coreografando um balé para o Opéra de Paris, e voou para os EUA só para essa pequena participação, voltando para a França dois dias depois. Ele era super profissional, e talvez tenha feito isso em consideração ao George Cukor, com quem havia trabalhado 3 anos antes.
Em função do contrato de sete anos, o estúdio não acreditava que Marilyn tivesse uma ascensão tão rápida, causando um descompasso financeiro berrante – como já abordado em “Os homens preferem as louras” – e condições desfavoráveis como não poder escolher seus parceiros de produção, sequer novos projetos. (Churchwell 2004, p. 68) Já nessa época ela fugia a todo o momento de comédias ou musicais, sabendo de antemão que viria outra personagem idiota para interpretar, considerando que assim como hoje, ainda existe uma grande dificuldade de o público separar o personagem da vida pessoal. (Summers 1985, p. 92). Numa atitude arbitrária a 20thFox decide em 4 de janeiro de 1954 suspender sem vencimentos o contrato de Marilyn, afinal uma das clausulas do “contrato” dava esse direito ao estúdio. Mas o efeito contrário foi muito negativo uma vez que foi noticiado em todos os jornais, época que Marilyn aproveitou para reforçar sua imagem junto ao público. (Spoto 2001, p. 254–259).
Fiquei contente de ler comentário crítico tão cuidadoso sobre um filme que há anos queria conhecer, e que acabei de assistir agora há pouco no TC Cult. Mas faço questão de discordar da Jussara e de outros: Me impressionou demais a beleza do filme (e olha que sou grande fã de musicais, tenho quase 100 em casa, de 1929 até 2014) com um argumento tão simples e sincero. Se foi ou não um fracasso de bilheteria, não me importa: adoro os filmes do Woody Allen, do Glauber Rocha e do Jean-Luc Goddard, que nunca deram muito dinheiro. O filme é espetacular, principalmente depois da chagada à Broadway. E nada mais genial, Jussara, do que a sensual ironia da seqüência entre Marilyn, Gaynor e O’Connor.