Ao contar a vida de um homem, O Mordomo da Casa Branca conta muito de um longo período – mais de 80 anos – da História dos Estados Unidos da América. É, declarada e descaradamente, um vasto painel, um gigantesco afresco, uma epopéia.
A questão básica é o racismo, as relações entre brancos e negros, desde os anos 1920, quando, em especial no Sul Profundo, um homem branco podia estuprar uma mulher negra e matar um homem negro de forma absolutamente impune, até o final da primeira década do novo século e do novo milênio, em que a maioria da população elegeu um homem de pele escura para a Presidência da República.
Esse é o foco do diretor Lee Daniels, um sujeito admirável, negro como seus personagens centrais em Preciosa – Uma História de Esperança/Precious e neste aqui, gay assumido desde sempre. Ao final da narrativa, há a dedicatória clara, límpida: “Este filme é dedicado aos bravos homens e mulheres que lutaram por nossa liberdade no movimento dos direitos civis”.
Devem-se à grande ambição de concentrar em 132 minutos muitos dos fatos mais marcantes de oito décadas de História americana as qualidades deste The Butler – e também seus defeitos.
O personagem central é inspirado em um uma pessoa real
Logo da abertura, informa-se que o que será mostrado é inspirado numa história real. Inspirada, apenas – não é, nem pretende ser, a exata biografia de Eugene Allen, o homem que de fato trabalhou mais de 30 anos como mordomo da Casa Branca e serviu a oito presidentes, de Harry Truman (1945 a 1953) a Ronald Reagan (1981 a 1989).
Eugene Allen serviu de inspiração para que o roteirista Danny Strong criasse o protagonista da história, Cecil Gaines – interpretado, ao longo de toda a vida adulta, por Forest Whitaker.
Quando a narrativa começa, um Cecil Gaines bem velhinho está sentado num dos amplos salões da Casa Branca, à espera de alguma coisa que o espectador só ficará sabendo o que é no finalzinho do filme. A voz em off de Forest Whitaker começa a nos contar a vida do personagem – ao longo de todo o filme, haverá momentos em que ela falará com o espectador.
E voltamos para 1926, em Macon, Georgia. Cecil está com 8 anos (interpretado por Michael Rainey Jr.); seus pais trabalham numa fazenda que tem extensa plantação de algodão. E, embora a escravidão tivesse oficialmente acabado em 1865, na prática a vida dos negros que trabalham na fazenda da família Westfall – assim como todos os negros da área rural de todo o Sul – era uma vida de escravos.
O que é mostrado – de maneira extremamente rápida – nos primeiros minutos do filme é chocante, absurdo, inimaginável. O filho dos patrões, um brutamontes que parece um tanto débil mental (Alex Pettyfer), chama Hattie (Mariah Carey, na foto acima), a mãe de Cecil, para um barracão. O garoto percebe que ali não tem coisa boa, mas o pai o segura, o manda ficar quieto, com uma frase violentíssima: “Este mundo pertence a eles. Nós só estamos aqui”.
Logo depois de estuprar Hattie, o filho dos patrões atira no marido dela – sem que nem por que, à toa.
A mãe do assassino, Annabeth Westfall (interpretada, numa participação especialíssima, neste filme que é cheio de participações especiais, por Vanessa Redgrave), fica com piedade do garoto, e o põe para trabalhar como um “negro de dentro de casa” – como são chamados os serviçais da cozinha e da copa. É assim que Cecil começa a aprender como servir.
Adolescente, Cecil (interpretado então por Aml Ameen) foge da fazenda, muda-se para a Carolina do Norte, passa a trabalhar como auxiliar de garçom em um hotel. Adulto, muda-se para Washington, trabalha como garçom em um hotel elegante. Lá é observado pelo administrador geral de serviços da Casa Branca. Daí a pouco recebe o convite para ser um dos vários mordomos da residência oficial e local de trabalho dos presidentes americanos.
A essa altura, Cecil já está casado – com Gloria, que trabalhava no mesmo hotel que ele (o papel de Oprah Winfrey, na foto, uma das personalidades mais famosas, bem pagas e queridas do show business americano) – e tem dois filhos, Louis (David Oyelowo) e Charlie (Elijah Kelley).
Ironia: Lady Jane, a ex-Hanói Jane, interpreta a mulher de Ronald Reagan!
Cecil começa a trabalhar na Casa Branca em 1957, no meio da administração Eisenhower (1953 a 1961). O ex-comandante supremo das Forças Aliadas na Europa é representado por Robin Williams. O grande ator, que tantas vezes atua perto do exagero, do over, está bem contido neste que foi um dos seus últimos papéis.
O vice-presidente de Ike aparece uma determinada hora na cozinha, onde Cecil está trabalhando, ao lado do colega e amigo Carter (Cuba Gooding Jr.). Pede votos aos servidores – vai se candidatar à presidência. A figura antipática é interpretada por um John Cusak (na foto abaixo) com um narigão grande para torná-lo parecido com seu personagem, Richard Nixon.
John F. Kennedy e Jacqueline são interpretados por James Marsden e Minka Kelly. Durante a administração Kennedy (1961 a 1963), Cecil brinca com a garotinha Caroline (Chloe Barach), que os americanos adoravam.
O vice de Kennedy, que assume o posto com o assassinato do presidente em Dallas, em 1963, Lyndon B. Johnson, é interpretado por Liev Schreiber. Foi Johnson (1963 a 1969) que assinou a legislação que pôs fim oficialmente a todo e qualquer tipo de lei estadual em defesa da segregação racial. A gente acaba se esquecendo disso, mas foi apenas em meados dos anos 60 que os Estados Unidos acabaram de vez com seu próprio apartheid.
John Cusak como Richard Nixon reaparece no filme, é claro, quando assume o governo, em 1969. A palavra Watergate não é pronunciada hora alguma, se não estou enganado, mas os efeitos do escândalo, é claro, são mostrados. É uma boa sequência: um presidente em frangalhos, descabelado, um tanto bêbado, pede que Cecil se sente para conversar com ele. Murmura frases do tipo “vou me reerguer, vou mostrar a esses canalhas quem eu sou”. Cecil pergunta algumas vezes, educadissimamente, se ele precisa de alguma coisa: “Isto é tudo, senhor?” – e sai de mansinho.
Os dois presidentes seguintes, Gerald Ford (1974 a 1977) e Jimmy Carter (1977 a 1981) são mostrados bem en passant, em noticiário da TV – nem foi preciso escolher atores para representá-los. E o que veio depois de Carter, o ex-ator (bem canastraão, aliás) Ronald Reagan (1981 a 1989) é representado pelo inglês Alan Rickman. Não há grande semelhança física entre Alan Rickman e Reagan – mas capricharam na peruca usada pelo ator, absolutamente idêntica à cabeleira sempre perfeitamente penteada e besuntada do presidente que Joan Baez chamou numa canção de cowboy.
E aí temos a grande piada, a grande ironia deste filme que é todo sério, até porque trata de um tema da maior gravidade, o racismo: quem faz o papel de Nancy Reagan é Jane Fonda! Lady Jane, a ex-Hanói Jane, uma das grandes líderes da contestação à guerra do Vietnã e às políticas dos presidentes republicanos, faz o papel da mulher do cowboy!
E está linda e perfeita, brilhando, faiscante, em todas as poucas tomadas em que aparece.
Nancy Reagan-Jane Fonda convida Cecil para vir ao jantar de gala que Ronnie – como ela chama o marido – iria oferecer daí a alguns dias. Cecil diz que estará lá, é claro, mas a primeira-dama esclarece: não, Cecil, não para servir, mas como nosso convidado. Você e sua mulher – Gloria, ela se chama, não é mesmo?
A seqüência em que o veterano mordomo negro e sua mulher participam como convidados de um grande jantar é uma das melhores coisas do filme. O convite, a participação no jantar como convidado, aquilo mexe profundamente na cabeça de Cecil.
Ele informará ao presidente Ronald Reagan que está se aposentando.
Sempre atento a tudo que diz respeito ao racismo, o diretor Lee Daniels faz questão de mostrar que Reagan era contra o estabelecimento de sanções ao governo da África do Sul por causa do apartheid.
Há momentos em que o filme acaba parecendo aula de História
E aí é que está. O filme parece fazer questão de mostrar tudo, de não deixar nada de fora, do que aconteceu ao longo daquelas décadas todas em relação ao racismo, às lutas pela igualdade de direitos do final dos anos 50 até os 60. Os protestos pacíficos, o furor da Ku-Klux-Klan, Martin Luther King, Jr. (Nelsan Ellis), Malcom X, os Panteras Negras – aos quais durante um tempo Louis, o filho de Cecil, vai aderir – o filme mostra tudo. Há momentos em que o filme acaba ficando mais aula de História do que propriamente cinema.
Foi uma sensação que tive, e que me incomodou. Porque é um filme importante, o tema é importante, é fundamental recontar essa história para as gerações mais novas. É um filme que vale a pena ver, sem dúvida alguma – mas ele perde um pouquinho exatamente por sua ambição de querer mostrar tudo, todos os momentos mais fundamentais, mais simbólicos da evolução da questão racial nos Estados Unidos, desde o tempo em que o filho do patrão podia estuprar e matar sem ser incomodado, até o momento em que Barack Obama assume o governo.
O filme foi – maravilha – um grande sucesso de público. Mas o Oscar o esnobou
Nos créditos, é dito que o roteiro se inspirou num artigo de jornal, assinado por Wil Haygood, “A Butler Well Served by This Election”. O artigo, que falava do mordomo Eugene Allen, foi publicado no Washington Post em novembro de 2008, o mês em que Barack Obama foi eleito presidente.
Fiquei de olho na presença de Yaya daCosta no meio desse imenso elenco com participações especiais de tanta gente boa. Tinha visto essa moça pouco atrás no principal papel feminino da ótima comédia O Negociador/Whole Lotta Sole (2011), do irlandês Terry George. Nascida no Harlem, Nova York, em 1982, ela é filha de um brasileiro com uma nigeriana; segundo o IMDb, fala fluentemente português, espanhol e francês; para 2015, está prevista a estréia de um filme feito para a TV americana em que ela interpreta a personagem central, a belíssima cantora Whitney Houston, que vendeu disco que nem água nos anos 90 e morreu cedo, aos 48 anos, em 2012.
Yaya daCosta faz o papel de Carol, uma estudante universitária colega – e depois namorada – de Louis, o filho do mordomo Cecil. Ela aparece bastante no filme, bem mais que os grandes astros que interpretam os presidentes americanos. Lá pelas tantas, quando o casal está envolvido com os Panteras Negras, ela surge com uma cabeleira afro que a deixa idêntica a Angela Davis.
Angela quem mesmo? É, hoje pouca gente deve se lembrar de Angela Davis, ou do fato de que John Lennon compôs uma canção em homenagem a ela, “Angela”, que está no disco Some Time in New York City (1972).
A página de Trivia do IMDb sobre o filme fala de algo de que me lembrei de cara: Vanessa Redgrave e Jane Fonda, duas estrelas de imensa atividade política de esquerda nos anos 60 e 70, estão de novo em um mesmo filme, depois de Julia, que Fred Zinnemann dirigiu em 1977. E, ironicamente, uma fazendo papel de uma fazendeira sulista quase escravocrata, e a outra, a mulher de um presidente republicano. Ao contrário do que acontece em Julia, é claro que aqui as duas não aparecem juntas em tomada alguma, é claro.
Foi também a primeira vez em que Robin Williams e Forest Whitaker se reencontraram em um filme desde Bom Dia, Vietnã (1987). Disso eu não me lembrava.
Foi a segunda vez que Mariah Carey trabalhou sob a direção de Lee Daniels. Essa informação não está na página de Trivia do IMDb, embora devesse estar. Cantora de imenso sucesso, umas das maiores recordistas de vendas de disco nos anos 90, Mariah Carey tem uma carreira paralela no cinema, e já participou de mais de 20 filmes como atriz. Em Preciosa, o premiado filme de Lee Daniels de 2009, ela faz uma assistente social que dá grande ajuda à personagem central. Aqui, ela aparece em apenas duas sequências, durante uns dois minutos, se tanto, no papel de Hattie, a mãe do garoto Cecil Gaines que é estuprada pelo patrão.
Oprah Winfrey não trabalhava como atriz desde Bem-Amada/Beloved, de 1998. A atriz, que foi descoberta por Steven Spielberg e fez um dos papéis mais importantes em A Cor Púrpura (1985), dedicou os últimos anos a seu programa de entrevistas e variedades, um dos de maior audiência da TV americana. Faz anos ela é uma das pessoas mais bem pagas do show business americano. Foi colaboradora de primeira hora da campanha presidencial de Barack Obama – e seguramente aceitou o papel de Gloria pela importância do projeto.
Ela foi indicada ao Bafta de melhor atriz coadjuvante, mas não levou o prêmio britânico.
O filme participou de diversos festivais; ganhou 13 prêmios e teve outras 46 indicações. Não teve, no entanto, nenhuma indicação ao Globo de Ouro nem ao Oscar. Mas foi sucesso de público: com um orçamento de US$ 30 milhões, rendeu um total de US$ 176 milhões – US$ 116 milhões no mercado interno (EUA e Canadá), mais US$ 60 milhões no resto do mundo.
Um último detalhinho. O fato de o filme ter o título original de Lee Daniels’ The Butler não se deve a ego inflado do diretor – uma figura que, de resto, tudo indica que é um grande caráter. O nome do diretor está no título em razão de uma pendenga judicial: a Warner Bros. detém os direitos de um filme de 1916 chamado The Butler, e entrou na Justiça exigindo que o filme de 2013 mudasse seu título. Por isso é que virou Lee Daniels’ The Butler.
Anotação em setembro de 2014
O Mordomo da Casa Branca/Lee Daniels’ The Butler
De Lee Daniels, EUA, 2013
Com Forest Whitaker (Cecil Gaines),
Oprah Winfrey (Gloria Gaines), Cuba Gooding, Jr. (Carter Wilson), Terrence Howard (Howard), David Oyelowo (Louis Gaines), Vanessa Redgrave (Annabeth Westfall), Alex Pettyfer (Thomas Westfall), Mariah Carey (Hattie Pearl, a mãe de Cecil Gaines), Lenny Kravitz (James Holloway), Yaya daCosta (como Yaya Alafia) (Carol Hammie), Elijah Kelley (Charlie Gaines), Aml Ameen (Cecil Gaines aos 15 anos), Michael Rainey Jr. (Cecil Gaines aos 8 anos)
e, em participações especiais, Robin Williams (Dwight D. Eisenhower), James Marsden (John F. Kennedy), Minka Kelly (Jacqueline Kennedy), Chloe Barach (Caroline Kennedy), Liev Schreiber (Lyndon B. Johnson), John Cusack (Richard Nixon), Alan Rickman (Ronald Reagan), Jane Fonda (Nancy Reagan), Nelsan Ellis (Martin Luther King, Jr.)
Roteiro Danny Strong
Baseado no artigo “A Butler Well Served by This Election”, de Wil Haygood
Fotografia Andrew Dunn
Música Rodrigo Leão
Montagem Brian A. Kates e Joe Klotz
Produção The Weinstein Company, Follow Through Productions, Salamander Pictures, Laura Ziskin Productions, Lee Daniels Entertainment, Pam Williams Productions, Windy Hill Pictures. DVD Paris Filmes.
Cor, 132 min
**1/2
Olá Sérgio!
Gostei do filme, uma pegada no estilo Forest Gump.
Recheado de estrelas. Porém, considerei a obra, um tanto, rasa. O roteiro parece mais preocupado em contar a história americana do que propriamente a história dos personagens.
Experiência agridoce. Sinceramente, não vi nada de extraordinário no filme. A academia fez muito bem em ignorar a película.