A Outra / Another Woman

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4.0 out of 5.0 stars

Um dos seis únicos dramas entre os mais de 45 filmes de Woody Allen, A Outra/AnotherWoman, de 1988, é o mais bergmaniano de sua obra majestosa – e um dos melhores.

É absurdamente brilhante.

Fala de casamento, infidelidade, escolhas, relação pais-filhos, rivalidade entre irmãos, reavaliação dos rumos que demos às nossas vidas, a maneira com que expressamos (ou escondemos) nossos sentimentos, como muitas vezes não sabemos avaliar nosso próprio comportamento, como muitas vezes fazemos de nós mesmos uma imagem muito diferente daquilo que realmente somos.

Dá perfeitamente para imaginar que mestre Ingmar Bergman teria com felicidade assinado o filme de seu pupilo.

Na era Diane Keaton ele fez um drama. Na fase Mia Farrow, três

Seis dramas! Eu me espantei quando fui checar a filmografia de Woody Allen. Tinha a impressão de que o número era ainda menor. Para lembrar:

Interiores (1978) – surpreendidas pelo inesperado divórcio dos pais, três irmãs adultas se reencontram e reavaliam suas vidas;

Setembro (1987) – numa elegante casa de campo em Vermont, diversas pessoas se reúnem; todas estão apaixonadas, e cada uma ama outra que não a ama;

Este A Outra (1988);

Maridos e Esposas (1992) – Um professor e sua mulher passam a examinar os problemas de seu casamento ao saberem que seus maiores amigos estão se separando;

Match Point (2005) – Em Londres, jovem ex-tenista profissional se divide entre a irmã de um amigo rico e a namorada desse amigo;

O Sonho de Cassandra (2007) – Em Londres, dois irmãos com dívidas recebem uma proposta indecorosa – cometer um crime em troca de uma grande bolada.

Um fato interessante sobre essa relação de filmes: a única vez em que Woody Allen filmou dois dramas consecutivos foi em 1987 e 1988, em plena era Mia Farrow.

Na era Diane Keaton, filmou um drama. Na fase Mia Farrow, três. Na fase européia, dois.

Sem querer, a protagonista ouve as confissões de uma paciente ao psiquiatra

Woody Allen tem um texto excepcional. Os diálogos que ele escreve são sempre extremamente bem construídos, bem escritos. Em A Outra, essa característica impressiona de maneira especial.

zzoutra2Diferentemente da imensa maioria de seus filmes, que abrem com os créditos iniciais (sempre no mesmo padrão – fundo preto, letras brancas, na mesma tipologia), A Outra tem um pequeno intróito, um prólogo.

Vemos Gena Rowlands, essa atriz excepcional, maravilhosa, em seu apartamento de classe média bem alta de Manhattan, enquanto a voz dela em off começa a narrar sua própria história para o espectador.

– “Se alguém me pedisse, ao chegar aos 50 anos, para fazer um balanço da minha vida, eu teria que dizer que obtive uma decente medida de realizações, tanto pessoal quanto profissionalmente. Além disso, eu diria que não escolho me aprofundar.”

Marion, a personagem de Gena Rowlands, protagonista da história, é uma mulher culta, refinada; é chefe do departamento de Filosofia de uma universidade importante; está de licença na época em que passa a ação para escrever um novo livro. Nesse intróito, ela se apresenta para o espectador contando alguns fatos básicos sobre si mesma, naquela linguagem empostada de gente da academia. Está casada com Ken (Ian Holm, na foto abaixo), um cardiologista de prestígio, que tem uma filha adolescente do primeiro casamento (a própria Marion também havia tido um casamento anterior, mas sem filhos), de quem gosta bastante – veremos que ela é mais próxima da enteada, Laura (Martha Plimpton) do que o próprio pai.

Para se concentrar, e escreve o novo livro ser de forma mais organizada e eficiente, Marion alugou um pequeno apartamento, não muito longe do seu próprio.

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Logo vai descobrir que, através do duto de ventilação, passa para dentro do apartamento-escritório com absoluta nitidez tudo o que se fala num apartamento vizinho, onde um psiquiatra (Michael Kirby) tem seu consultório. Por absoluto acaso, sem que quisesse, Marion começa a ouvir o que diz uma paciente de seu vizinho, uma moça grávida que está cheia de angústias, insatisfeita com a vida. Por uma fresta da porta da frente, Marion avistará a moça, Hope (o papel de Mia Farrow).

As angústias que Hope confessa ao psiquiatra vão fazer Marion se questionar sobre sua própria vida, suas memórias de infância e adolescência, seu casamento anterior com Sam (Philip Bosco), seu rápido quase caso com um amigo do marido, Larry (Gene Hackman), e em especial o próprio casamento com Ken.

Allen usa o fotógrafo de Bergman – e também uma sacada do grande mestre

Another Woman foi o primeiro dos quatro filmes de Allen com direção de fotografia a cargo do sueco Sven Nykvist, o fotógrafo de diversas obras de Ingmar Bergman. Não poderia haver sinal mais óbvio de que este é um filme que bebe na fonte do mestre.

Morangos Silvestres, a obra-prima de 1957, também abre com um intróito, antes dos créditos iniciais, em que o personagem central, o idoso professor Isak Borg (interpretado por Victor Sjöstrom, que havia realizado belíssimos filmes ainda nos anos 20) se apresenta para o espectador. Exatamente como Woody Allen emularia neste Another Woman.

Em Morangos Silvestres, o realizador sueco desenvolveu uma sacada narrativa absolutamente genial. Ele faz seu protagonista empreender uma viagem ao passado distante, ao tempo em que era garotinho, e passava as férias de verão numa casa no campo; e então o professor Isak Borg testemunha cenas de mais de meio século atrás, ele como está hoje, velhinho, e os seus parentes jovenzinhos, tal como tinham sido.

É uma sacada de uma sabedoria fantástica, porque, em nossos sonhos, em nossas lembranças, nos recordamos de como as outras pessoas eram, no passado – mas dificilmente, ou nunca, conseguimos lembrar de como nós mesmos éramos, décadas e décadas atrás.

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Woody Allen recria a viagem do professor Isak Borg ao passado: a professora Marion visita a casa de seus pais, no campo, e revê a mãe jovem, o pai jovem, o irmão Paul jovem.

Não foi a primeira vez que Allen copiou a sacada do mestre Bergman; dois filmes antes deste Another Woman, em A Era do Rádio (1987), aquela comédia deliciosa, havia feito a mesma coisa.

Mas aqui, neste drama pesado, sério, denso, a remissão a Morangos Silvestres é brilhante, é perfeita, é um achado.

A trajetória da protagonista é amarga, mas no fim o filme acena com alguma esperança

Como o professor Isak Borg de Bergman, a professora Marion tem sonhos reveladores, importantes, impactantes, e os relata com a voz em off – e os sonhos aparecem na tela para que o espectador os veja.

Quando Marion sonha que tinha ido até aquela parte da cidade em que, pouco antes, havia reencontrado Claire, a grande amiga da infância e da adolescência (interpretada por Jennifer Lynn McComb quando jovem e por Sandy Dennis quando adulta), e o marido de Claire, Jack (Jacques Levy), diretor de teatro, a põe para assistir à representação de algumas passagens importantes de sua vida, dá vontade de a gente ficar de pé e aplaudir como na ópera.

Como em vários outros de seus filmes, Woody Allen parece querer nos mostrar que o excessivo cuidado com o saber acadêmico, a visão muito intelectualizada da vida, afasta as pessoas das sensações de fato, das emoções. Quanto mais as pessoas se fecham no trabalho exclusivamente intelectual, no endeusamento de obras literárias, filosóficas, menos vivem, sentem, se emocionam.

De fato me parece que Woody Allen diz isso em vários de seus filmes. Mas nunca disse de maneira tão bela – e ao mesmo tempo tão séria, e tão densa – quanto neste filme extraordinário aqui.

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A trajetória de Marion ao longo dos curtíssimos 81 minutos de Another Woman é dura, muitas vezes extremamente amarga. Ela descobre verdades nada agradáveis sobre si mesma, sobre as opções que fez, sobre o que deixou de fazer – mas é uma trajetória que leva a alguma esperança. Ao se conhecer melhor, ao reconhecer muitas de suas falhas, essa Marion parece chegar a um ponto, aos 50 e tantos anos de idade, em que é possível mudar, aprender, melhorar.

Neste drama pesado, Woody Allen afinal acena com esperança. Não por acaso, exatamente o nome da personagem de Mia Farrow – Hope.

– “Fechei o livro, e senti esta estranha mistura de melancolia e esperança, e fiquei pensando se a memória é algo que a gente tem ou algo que a gente perdeu. Pela primeira vez em muito tempo, me senti em paz.”

Este foi o oitavo dos 13 filmes que Woody Allen e Mia Farrow fizeram juntos

Aqui vai uma penca de informações sobre Another Woman; a maior parte delas está no IMDb, mas algumas são da minha memória.

* Foi o último filme de John Houseman, que faz papel do pai de Marion quando já idoso. Houseman nasceu na Romênia, em 1902, e morreu em Malibu, Califórnia, em 1988; foi ator, produtor, diretor e roteirista. Foi chefe da divisão de drama da aclamadíssima Juilliard School, onde apadrinhou diversos atores em início de carreira.

* Tóc, tóc, tóc. John Houseman não foi o único ator a encerrar a carreira após trabalhar em um filme de Woody Allen. Hannah e suas Irmãs (1986) foi o último filme Lloyd Nolan, e Keye Luke teve sua última performance em Simplesmente Alice (1990). Em tempo: talvez o tóc, tóc, tóc não seja só para Woody Allen: nesses três filmes, trabalha Mia Farrow, aquela atriz tão talentosa que acabaria se revelando uma bruxa.

* Foi o 18º longa-metragem do diretor, e o oitavo dos 13 que ele e Mia Farrow fariam juntos.

zzoutra9* Diz o IMDb que originalmente o papel central do filme, o de Marion, deveria ser de Mia Farrow, que em geral fazia a protagonista dos filmes na época em que esteve casada com Woody Allen. Mas ela estava grávida na época das filmagens, e então ficou com o papel de Hope. A informação deve ser verdadeira, porque o IMDb é um site corretíssimo. Mas me parece que foi uma imensa sorte de Woody Allen ter Gena Rowlands no papel de Marion, e não Mia. Esta tinha um rosto muito jovem em 1988 – estava com 43 anos, mas parecia ter menos. Já a musa (e mulher) de John Cassavetes estava com gloriosos 58; tem o physique du rôle muito mais apropriado do que Mia para fazer a chefe do departamento de Filosofia já passada do meio século de vida.

* As filmagens foram nos meses de outubro, novembro e dezembro de 1987. Em dezembro, Mia Farrow deu à luz o único filho dela e de Woody Allen, Satchel O’Sullivan Farrow, que agora se assiba Ronan Farrow.

* Em geral, os atores dos filmes de Woody Allen não têm acesso ao roteiro pronto, final, total – até porque o realizador costuma mudar muito o roteiro, improvisar. Mas para Dame Gena ele abriu uma exceção, e entregou a ela o roteiro escrito.

* O grande ator inglês Ian Holm, que faz o papel de Ken, o segundo marido de Marion, conta no seu livro de memórias que o papel foi oferecido primeiramente a George C. Scott; o ator, conhecido por seu gênio irascível, recusou. Ben Gazzara também foi sondado para interpretar Ken. Mais uma vez, o destino conspirou a favor do filme. Holm está perfeito no papel. Até mesmo pelo pequeno detalhe de ser mais baixo do que Gena Rowlands.

* Another Woman foi o primeiro filme de Woody Allen com os atores Blythe Danner, Philip Bosco, Frances Conroy, Harris Yulin e David Ogden Stiers. Todos eles voltariam a aparecer de novo em filmes do realizador.

* Diz o livro Woody: Movies From Manhattan, de Julian Fox (segundo afirma o IMDb; jamais sequer vi esse livro), os produtores foram à loucura por causa do jeito de Allen escrever e dirigir. Por exemplo: no último dia de filmagens, o bicho resolveu reescrever e refazer uma determinada cena. Depois, na hora da montagem final, jogou fora a tal cena.

“Drama seco, adulto, com um elenco magnífico e muitos momentos memoráveis”

Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido no mundo, deu 3.5 estrelas em 4:

“Woody Allen se aventura no território de Bergman de novo (com o fotógrafo de Ingmar, Sven Nykvist, não menos que isso) com tremendo sucesso. Rowlands interpreta uma mulher que conseguiu viver sua vida se escudando de todas as emoções, até que uma série de incidentes a força a fazer um balanço. Drama seco, adulto, com um elenco magnífico e muitos momentos memoráveis – embora, como outros dramas de Allen, não para o gosto de todos.”

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Taí. Gostei bem da avaliação do Maltin. Corretíssima. Claro que só a li agora, depois de ter escrito a anotação acima, depois, portanto, de fazer a óbvia referência a Bergman e à coisa do intelecto x emoção.

Dame Pauline Kael destila sua bílis contra o filme. Credo, como produzia bílis, o fígado da prima donna da crítica americana! Começa dizendo que Woody Allen produziu uma versão não oficial de Morangos Silvestres, para depois dizer que “o filme pretende tratar de emoções, mas não tem emoção”. “É reluzente e altissonante, burilado em seu niilismo.”

Opinião é assim mesmo, cada um tem a sua. Tem gente que acha Dilma uma gerente competente, capaz. Mas niilismo… Ah, Dame Kael, vá se catar: o filme é esperançoso, meu!

“Um filme quase inteiramente composto de momentos que deveriam ser privados”

Pauline Kael parece odiar o fato de ter que ver filmes – isso que foi seu ganha-pão. Já Roger Ebert, muito ao contrário, é um crítico que ama ver os filmes. Veja o eventual leitor o início do longo texto de Ebert sobre Another Woman:

“O cinema é o meio mais voyeur, mas raramente senti tanto isso quanto ao ver Another Woman, de Woody Allen. Este é um filme quase inteiramente composto de momentos que deveriam ser privados. Às vezes, a privacidade é violada pelos personagens do filme. Outras vezes, invadimos a privacidade dos personagens. E a protagonista é nossa cúmplice, fica ao nosso lado, falando no nosso ouvido, contando para nós o processo doloroso pelo qual está passando.”

Que maravilha! Não vou nem ler o resto da crítica de Ebert, porque senão vou ter vontade de transcrevê-la inteira – além de ficar com vergonha dos meus próprios textos.

Quando crescer, gostaria de escrever sobre filmes como Roger Ebert.

Se fosse gênio, gostaria de ter feito Another Woman.

Anotação em janeiro de 2014

A Outra/Another Woman

De Woody Allen, EUA, 1988

Com Gena Rowlands (Marion), Mia Farrow (Hope),

e Ian Holm (Ken), Blythe Danner (Lydia), Gene Hackman (Larry), John Houseman (o pai de Marion idoso), David Ogden Stiers (o pai de Marion jovem), Sandy Dennis (Claire), Jennifer Lynn McComb (Claire jovem), Heather Sullivan (Marion garotinha), Margaret Marx (Marion jovem), Harris Yulin (Paul), Stephen Mailer (Paul jovem), Philip Bosco (Sam), Martha Plimpton (Laura), Jacques Levy (Jack), Caroline McGee (a mãe de Marion), Michael Kirby (o psiquiatra)

Argumento e roteiro Woody Allen

Fotografia Sven Nykvist

Montagem Susan E. Morse

Casting Juliet Taylor

ProduçãoJack Rollins & Charles H. Joffe Productions. DVD MGM.

Cor, 81 min

R, ****

15 Comentários para “A Outra / Another Woman”

  1. Eu vi esse filme há poucos anos, em DVD em casa e lembro-me de ter gostado muito, mas não me recordo desses detalhes que vc mencionou no texto. Deu vontade de revê-lo!
    Sobre os dramas do Woody, que eu adoro também, citaria também Crimes e Pecados. Eu sei que neste filme tem algumas cenas cômicas, mas eu encaixaria-o em “drama”. Ou não?

    Belo texto!!!

  2. Mais uma vez podemos constatar similaridades entre os filmes de Woody, desta vez entre este (A Outra) e seu mais recente filme: O Homem Irracional. Repete-se a figura do professor de universidade, orbitando em seu universo hermeticamente intelectual, que se depara com a “vida real” ao escutar involuntariamente a conversa de pessoas estranhas. Nos dois filmes, tal acontecimento provoca uma reviravolta na vida dos protagonistas. Ambos têm verdadeiros insights, porém com consequências diferentes. Sou como voçê Sérgio, cada dia a mais de vida, admiro cada vez mais a obra desse cara brilhante que é o Woody Allen. E quanto mais pessoas eu conheço, mais identificação encontro nas obras dele. Como esse cara conhece da alma humana ! E como ele transporta isso de forma brilhante em seus filmes ! Que venham muitos mais….

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