A Hora do Diabo, dirigido pelo americano Mervyn LeRoy em 1961, não é um grande filme. Tem, na verdade, coisas bem ruins. Mas traz também alguns diálogos muito bons, e um personagem extraordinário, o padre Doonan, interpretado por um ator igualmente extraordinário, Spencer Tracy. E ainda tem Frank Sinatra, um ator (além de uma personalidade) fascinante.
Faz uma estranha mistura de gêneros. Começa mezzo filme de aventura em terras exóticas e mezzo drama moral, que discute algumas das grandes questões da humanidade – Deus, fé, religião, responsabilidade de cada pessoa para com os outros, omissão e ação, crime e castigo –, para depois, sem abandonar esses temas fundamentais, mergulhar num filme-catástrofe, ou disaster movie, no estilo dos posteriores Aeroporto (1970), O Destino do Poseidon (1972), Inferno na Torre (1974).
Pelos exemplos citados – três filmes de imenso sucesso comercial no seu tempo –, pode-se até dizer que, no quesito filme-catástrofe, A Hora do Diabo foi um precursor de uma tendência que se intensificaria alguns anos depois dele. Não que tenha sido o primeiro, nem um dos primeiros – mas veio antes de vários outros.
O filme começa citando, logo após os créditos iniciais, uma bela frase, que, estranhissimamente, não é atribuída a ninguém. O diretor Mervyn LeRoy, já então veterano, experientíssimo, consegue a proeza de dar ao espectador, entre aspas, uma bela frase e sonegar o nome de seu autor:
“É difícil para um homem ser corajoso quando ele sabe que vai se encontrar com o diabo às 4 horas.”
O título original do filme é Devil at 4 O’Clock. O roteirista se chama Liam O’Brien, e o autor do romance em que o roteiro se baseia é Max Catto, o que mais parece um pseudônimo do que qualquer outra coisa. Pode ser ignorância minha, mas me parece que Liam O’Brien e Max Catto não passaram para a História como grandes autores. No entanto, a frase usada na abertura do filme – sei lá se é da autoria de um deles – é um brilho.
Uma ilha paradisíaca no Pacífico, com um vulcão que começa a acordar
A ação começa com um pequeno avião sobrevoando as águas infinitas do Pacífico. O piloto, Jacques (Jean-Pierre Aumont), bem mais experiente que seu co-piloto, avista o que este último procura avidamente nos mapas: a ilha de Talua.
(Enquanto revia o filme, que meu caderninho diz que vi pela primeira vez em 1964, aos 14 anos de idade, fiquei pensando se a ilha de Talua existe mesmo, ou é fictícia. Agora, ao fazer esta anotação, vejo que o certo é a segunda opção. Não existe uma ilha chamada Talua na Polinésia Francesa.)
O pequeno avião, cujo destino final é Papeete, no Taiti, pousa em Talua para ali deixar um jovem padre, Joseph Perreau (Kerwin Matthews), três prisioneiros do governo do Taiti e o policial que os transporta. O líder dos prisioneiros é Harry – o papel de Frank Sinatra, então com 46 anos e no auge da carreira cinematográfica, tendo retornado com todo o louvor do mundo oito anos antes, em A Um Passo da Eternidade (1953). (Segundo a lenda, e segundo Mario Puzzo em O Poderoso Chefão, para obter o papel do soldado Angelo Maggio no filme de Fred Zinnemann, Sinatra teria se valido de favores de um cappo mafioso seu amigo. Mas esta é outra história.)
Acorrentados a Harry estão Marcel (Grégoire Aslan), um francês hedonista, tarado por bebida, comida e mulheres com carne para se pegar, e Charlie (Bernie Hamilton), um americano mulato.
O plano é que o avião permaneça na ilha Talua por um dia inteiro. O jovem padre Perreau ficará lá. Foi enviado pelo bispo da região para substituir o padre Doonan, que deveria embarcar para Papeete e aguardar nova nomeação, sabe-se lá para onde. Os três prisioneiros deveriam também seguir viagem até Papeete, onde cumpririam pena de oito anos de prisão. Não se explica, hora alguma, qual é o crime deles, mas as indicações são de que são ladrões. Ladrões, porém violentos – numa tentativa de fuga, quase mataram um guarda.
Acontece que, naquela ilha paradisíaca, existe um vulcão. E ele está começando a acordar.
“Vão com Deus”, diz o padre novo. E o preso: “Deus? Quem é ele?”
A primeira coisa que o velho padre Doonan faz ao acordar, suor no rosto, suor no pescoço, naquela manhã em que o avião está chegando a Talua, é mandar ver um gole de bebida destilada. Assim, direto da garrafa, antes mesmo de lavar a cara. Um gole de conhaque logo após se levantar da cama.
Na vida real, Spencer Tracy também apreciava uma cachaça. Mas imagino que não tomava assim um gole direto da garrafa logo após acordar, sem sequer ter passado uma água na boca, sem sequer ter lavado a cara para tirar a remela.
Um padre alcoólatra, numa ilha paradisíaca dos Mares do Sul. E interpretado por Spencer Tracy. Isso é que é personagem!
A Hora do Diabo, repito, tem coisas ruins. Para começar, a direção de atores não é boa. Os coadjuvantes não estão nada bem. Exageram. São casos típico de over-acting. Muitos deles gesticulam demais, arregalam os olhos demais, mexem quase todos os músculos da face ao mesmo tempo.
Mas há belos diálogos. Logo no início, quando o avião pousa na ilha, o padre novo diz aos ladrões: “Vão com Deus.”
E então o líder dos ladrões, o Harry interpretado por Sinatra, responde: “Deus? Quem é ele?” E Charlie, o outro preso, acrescenta: “Sei lá. Nunca ouvi falar”. E o francês Marcel brinca: “É como a gente diz quando exclama O Mon Dieu!”
Mais adiante, na barbearia, o piloto do avião diz ao motorista de caminhão que o padre Doonan usa para ir até o hospital no centro da ilha: “Leve o padre, Aristide. Com estrada ou não. O céu vai lhe recompensar.”
Ao que o barbeiro retruca: “O céu? Ainda não vi nenhum banco compensar um cheque do céu”.
Todos os homens importantes da ilha querem ver o padre Doonan pelas costas
Há diálogos muito bons, como esses acima, mas há muitos que são ou óbvios demais, ou tonitruantes demais, teatrais, falsos. O roteirista de nome que parece codinome exagera nas frases de efeito, nas frases que dizem verdades e/ou questionamentos importantes, sérios, filosóficos, metafísicos.
São defeitos grandes, fortes.
Mas o personagem do padre Doonan é fantástico, extraordinário.
O padre Doonan percorre as ruas principais da cidadezinha que é o núcleo urbano da ilha Talua para apresentar o padre Perreau às pessoas do lugar. Os comerciantes de Talua estão felizes porque o padre Doonan está indo embora – e estão contentes porque o jovem padre que chega para substituí-lo se chama Perreau, um nome francês. O padre Perreau na verdade é filho de canadenses do lado francês, mas nasceu nos Estados Unidos. De qualquer forma, é super bem-vindo pelos homens de bem da ilha. Qualquer coisa, para eles, será certamente melhor que o padre Doonan.
O padre Doonan é mal humorado, bravo, briguento, raivoso – e exige dos comerciantes doações para o hospital da ilha. Não pede – exige.
Levaremos uns 40 minutos para entender por que o padre Doonan é do jeito que ele é. A compreensão só virá através de uma conversa do padre Perreau com o doutor Wexler (Martin Brandt), o médico do hospital – situado no alto de uma montanha, bem longe do núcleo urbano. Como isso só se esclarece após mais de meia hora de filme, não vou revelar nada do que se ouve naquele diálogo.
O personagem de Spencer Tracy faz lembrar o Will Kane de Gary Cooper
Mas é necessário dizer que o padre Doonan é um grande homem.
Ao rever o filme agora (e o revi por pura curiosidade de saber o que era, afinal, esse filme com Spencer Tracy e Frank Sinatra de que gostei muito quando tinha 14 anos de idade e não sabia coisa alguma sobre a vida), fiquei pensando que o padre Doonan tem muito a ver com o Will Kane de Gary Cooper em Matar ou Morrer/High Noon.
No western feito por Fred Zinnemann em 1952, Will Kane, o xerife da cidadezinha do Oeste, também está deixando o seu posto – mais que um emprego, o cargo de xerife ali era uma missão. Exatamente como a do padre Doonan na ilha de Talua. Will Kane está se casando, e vai embora dali para sempre, mas, no trem do meio-dia, está chegando um homem que ele havia condenado à prisão, e mais três pistoleiros. O bando de assassinos vem para se vingar dele. Will Kane sai à procura de ajuda – e ninguém, absolutamente ninguém se dispõe a ajudá-lo contra o bando de criminosos.
O padre Doonan tem um imperativo: quer salvar as crianças do hospital distante, e mais os quatro abnegados adultos que cuidam delas. Sai à procura de ajuda da mesma maneira desesperada de Will Kane – e, como o xerife do Velho Oeste, só encontra a frieza do egoísmo de todas as pessoas da comunidade em que vive.
O padre Doonan acabará tendo a ajuda exatamente dos três prisioneiros, os ladrões, os quase assassinos. Não por um milagre de Deus – mas porque eles contam com uma eventual comutação de suas penas caso ajudem o padre em sua tentativa de salvar um bando de inocentes.
É interessante pensar que A Hora do Diabo tem de fato semelhanças com High Noon. Nos dois filmes, há uma hora fatal. No western, é o meio-dia, High Noon – o horário em que o trem com os assassinos chega à cidadezinha. Neste filme aqui, A Hora do Diabo, Devil at 4 O’Clock, é a hora em que a escuna partirá da ilha prestes a ser destruída pelo vulcão.
Corre-se contra o tempo.
Ninguém é corajoso quando sabe que vai se encontrar com o diabo às 4 horas.
Um filme que destila respeito à religião
A Hora do Diabo é um filme profundamente religioso. É especificamente cristão, católico, já que seu personagem central é um padre – mas a rigor ele poderia estar falando de qualquer religião. O padre poderia ser um ministro luterano, um sacerdote budista, um iman islamista. Isso pode espantar muitos espectadores. Para mim, isso parece uma grande qualidade.
Há uma série de imagens que têm a ver com a religião – em especial, é claro, a figura do ladrão crucificado ao lado de Cristo no Calvário.
Mas a idéia de que as pessoas “de bem” são covardes, egoístas, e que os aparentemente “maus”, os presos, os ladrões, podem encontrar de alguma forma a redenção, é mais do que religiosa – é bela.
E quer saber? A cada dia que passa tenho mais respeito pelas religiões, e pelas pessoas que crêem em alguma coisa. Da mesma forma com que tenho a cada dia mais horror dos dogmas, dos radicalismos, dos fundamentalismos, dos xiitimismos, tenho mais e mais respeito pelas crenças que passam ao largo da Lei do Talião.
Anotação em novembro de 2012
A Hora do Diabo/The Devil at 4 O’Clock
De Mervyn LeRoy, EUA, 1961
Com Spencer Tracy (padre Matthew Doonan), Frank Sinatra (Harry),
e Kerwin Mathews (padre Joseph Perreau), Jean-Pierre Aumont (Jacques), Gregoire Aslan (Marcel), Alexander Scourby (o governador), Barbara Luna (Camille), Cathy Lewis (Matron), Bernie Hamilton (Charlie), Martin Brandt (Dr. Wexler), Lou Merrill (Aristide), Marcel Dalio (Gaston), Tom Middleton (Paul), Ann Duggan (Clarisse)
Roteiro Liam O’Brien
Baseado em romance de Max Catto
Fotografia Joseph Biroc
Música George Duning
Montagem Charles Nelson
Produção Fred Kohlmar, Columbia. DVD Sony.
Cor, 126 min
**1/2
Eu gostei bastante de ver esse filme, e simplesmente ADOREI que ele esteja aqui no seu site.
bom dia eu queria assistir. esta dificil assistir pela net . obrigado