Contracorrente / Contracorriente

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Nota: ★★★☆

Contracorrente, primeiro longa-metragem do roteirista e diretor peruano Javier Fuentes-León, é bastante surpreendente. É inesperado, corajoso – e muito bom.

A ação se passa num povoado de pescadores no litoral do Peru, um microcosmo de uma sociedade terceiro-mundista, latino-americana, pobre (não miserável, mas pobre), religiosa, e portanto conservadora, apegada a tradições, machista.

Fala de infidelidade conjugal – e de homossexualidade. De enfrentamento das regras sociais, de ruptura com os comportamentos esperados, de quebra de tabus.

Faz isso com uma bem dosada mistura de realismo com não realismo, ou surrealismo, ou aquilo com que nós, latino-americanos, estamos acostumados faz tempo, e que se convencionou chamar de realismo fantástico.

zzcontra4A trama criada por Javier Fuentes-León tem um pouco de Dona Flor e Seus Dois Maridos: o amante morto do protagonista continua presente, exatamente como Vadinho continuava presente na vida de Flor. Dona Flor, o romance de Jorge Amado, é de 1966; Cem Anos de Solidão, o romance do colombiano Gabriel García Márquez cheio de imagens surreais, é de 1967; e Bom Dia para os Defuntos, do peruano Manoel Scorza, é de 1970.

Ninguém reinventa a roda, e seguramente Javier Fuentes-León não pretendia reinventar roda alguma, ao criar sua história que une o latino-americaníssimo realismo fantástico a uma história de personagens que enfrentam as convenções sociais em nome de suas convicções e paixões.

O maravilhoso nesse melê é que tudo funciona. É, repito, uma bela história, um bom filme – sensível, honesto, corajoso, bem intencionado, tão correto na moral quanto no talento com que é realizado.

Uma cena de sexo entre dois homens; o diretor é um sujeito corajoso

Contracorrente abre com o close-up de um barrigão de mulher grávida. Mariela (Tatiana Astengo) está grávida do primeiro filho de Miguel (Cristian Mercado). Miguel encosta a cabeça no barrigão, faz carinho nele, e fala que o filho terá seu nome. Mariela protesta: viu em algum lugar que os fetos ouvem tudo o que se fala perto deles – e se o bebê for uma menina, e não um menino?

Miguel, bem humorado, não se deixa apanhar na evidente revelação de seu desejo machista de ser pai de um machinho, e brinca: se for menina, será Miguelita.

zzcontra3Tona (Juan Pablo Olivos), um dos grandes amigos de Miguel, bate à porta. Há vida nova para nascer na barriga de Mariela, mas Héctor traz a notícia de uma morte: Carlos, primo de Miguel, foi encontrado morto.

Héctor (José Chacaltana), irmão do morto, primo e melhor amigo de Miguel, pede a ele que encomende o corpo.

Não sei se Javier Fuentes-León tomou liberdades poéticas, inventou, criou, mas, na história que ele conta, o costume, a tradição entre os pescadores daquela parte do litoral norte do Peru é fazer uma cerimônia religiosa em terra e depois levar o corpo do morto em um barco até o alto mar e lançá-lo às águas. Só assim o espírito do morto descansará em paz.

E assim é feito com o corpo de Carlos.

E assim, bem no início de sua narrativa, o filme deixa claro que Miguel é uma figura respeitada, querida, naquela pequena comunidade.

Quando estamos chegando aos 9 minutos de filme, vemos que Miguel tem uma relação de amor com outro homem.

Chama-se Santiago (Manolo Cardona); é um forasteiro, homem mais rico do que todos os habitantes da vila de pescadores, vindo de alguma cidade grande. É pintor, fotógrafo. Ninguém da vila é amigo dele. Mas Santiago e Miguel são amantes.

Ainda estamos no princípio da narrativa, e o filme mostra uma trepada dos dois homens.

O diretor Javier Fuentes-Léon é um homem corajoso. Claro: a sequência da trepada gay, antes que o filme chegue aos 20 minutos, terá seguramente agradado demais às plateias gays dos festivais mundo afora – mas não chega propriamente a ser algo que garanta boa bilheteria no Peru, ou em seus países vizinhos de nuestra Latinoamérica. Eu, quieto aqui no meu cantinho, não sou nada chegado a ver barbado beijando e agarrando barbado.

Até num povoado de pescadores pobres do Peru já chegaram confortos e modernidades

Uma das diversas coisas interessantes de Contracorrente, um filme definitivamente contra a corrente, é que, contra outras tantas correntes, o filme, passado num povoado de pescadores, não insiste em mostrar miséria. Não industrializa miséria.

zzcontra2Assim, Miguel consegue juntar alguns soles para pagar um ultrassom, no qual se revela que o filho do casal será um machinho. Todos ali são pobres, mas ninguém passa fome ou privação das coisas mais básicas. Todos são alfabetizados, lêem passagens do Evangelho nas missas conduzidas pelo padre Juan (Julio Humberto Cavero) – e o padre Juan, se não chega a ser um líder da Teologia da Libertação, está a mil anos-luz do religioso medieval, tradicionalista, rancoroso. Muito antes ao contrário.

Todas as casas – humildes, bem simples – têm sua televisão, e nelas se vêem jogos de futebol e novelas brasileiras. Miguel, mais até mesmo que Mariela, gosta de ver El Derecho de Amar, novela brasilera – e não brasileña – com Lauro Corona.

Achei esses detalhes fascinantes. Javier Fuentes-León não está interessado em industrializar a miséria. Mostra uma realidade do século XXI – até num povoado de pescadores pobres do Peru alguns confortos e modernidades já chegaram.

Fotografia primorosa, interpretações irrepreensíveis

A fotografia do filme é um esplendor. Há paisagens magníficas, realçadas pela fotografia primorosa. Há tomadas subaquáticas de qualidade de tirar o chapéu.

Mas o que mais impressiona são as atuações. Não há ninguém no elenco com atuação ruim.

O ator que faz o protagonista Miguel, Cristian Mercado, é boliviano, tido, segundo o IMDb, como um dos mais destacados atores de teatro do seu país. Sua filmografia, pequena ainda, com nove títulos, inclui a segunda parte de Che de Steven Soderbergh.

Manolo Cardona, que faz o forasteiro Santiago, é colombiano; tem 22 títulos no currículo, inclusive diversas minisséries da TV da Colômbia e uma participação no abacaxi mexicano A Mulher do Meu Irmão. Segundo o diretor Javier Fuentes-Léon, foi uma atitude corajosa dele aceitar o papel de um homem que tem relações homossexuais, já que é um galã da TV colombiana.

A única peruana entre os papéis principais do filme – uma co-produção Peru-Colômbia-França-Alemanha – é Tatiana Astengo, que faz (muitíssimo bem) o papel de Mariela, a mulher que o marido trai com outro homem. Tem 27 títulos no currículo, inclusive a versão cinematográfica de Pantaleão e as Visitadoras, de Mario Vargas Llosa, feita em 2000. O diretor Fuentes-León chama a atenção, na entrevista que acompanha o filme no DVD, para o fato de que Tatiana Astengo interpreta num filme um personagem muito diferente do que ela é na vida real. Tatiana, diz ele, é uma urbanóide, e uma pessoa de grande humor – e aqui interpreta uma mulher humilde de povoado pequeno em meio a um drama denso.

 Somar duas felicidades está muito acima do que somos capazes

zzcontra5Gostaria ainda de fazer uma conexão com outro filme (que, a rigor, é o que eu sei fazer) e uma pequena consideração.

Lá pelo meio da narrativa, Miguel diz para Santiago, a rigor para o fantasma de Santiago, que tinha achado que poderia ser feliz com os dois – com sua mulher Mariela e com ele, Santiago.

Não dá para garantir, mas muito provavelmente Fuentes-León, sujeito obviamente culto, estudado, embora jovem (deve estar com uns 45 anos) viu, nos seus estudos de cinema, Le Bonheur, que Agnès Varda fez em 1965.

A frase – linda, marcante, apaixonante, patética, emblemática – que Miguel diz é a cópia exata da frase que François, o protagonista de Le Bonheur, fala no filme de Agnès Varda, um dos filmes que mais adoro na vida. François, homem simples como Miguel, operário, que tira seu sustento com o trabalho das mãos, é bem casado com Thérèse, a mãe de seus dois filhos. Mas conhece Émilie. Émilie diz a ele: “Sou livre, feliz e você não é o primeiro; me ame”.

E então François diz: “Eu conheci Thèrese primeiro, e casei com ela, e a amo, e amo você e sou feliz. Se tivesse conhecido você primeiro, teria casado com você”. Ele acredita que possa ter uma felicidade a mais, somar duas felicidades.

O operário francês François por um momento crê no mesmo em que crê o pescador peruano: que é possível somar duas felicidades.

O filme da genial realizadora belgo-francesa e o do estreante peruano mostram que somar duas felicidades está muito acima do que somos capazes.

E, finalmente, uma pequena consideração.

Está claro que Contracorrente é uma defesa – firme, forte – da existência do amor gay. Mas não é um filme para fazer proselitismo da homossexualidade.

Proselitismo é chato. Proselitismo de que black é mais beautiful, ou de que gay é mais feliz, é bobagem. Pior: é imbecilidade.

Contracorrente, a meu ver, não cai nessa fria. Simplesmente defende a existência do que é diferente. Defende que qualquer maneira de amar vale a pena – e lutar por sua maneira, qualquer que seja, é bom, digno, justo.

Anotação em novembro de 2012

Contracorrente/Contracorriente

De Javier Fuentes-León, Peru-Colômbia-França-Alemanha, 2009.

Com Cristian Mercado (Miguel), Tatiana Astengo (Mariela), Manolo Cardona (Santiago),

e José Chacaltana (Héctor), Maria Edelmira Palomino (Doña Flor), Julio Humberto Cavero (Padre Juan), Haydeé Cáceres (Trinidad), Emilram Cossío (Pato), Cindy Díaz (Isaura), Attilia Boschetti (Sra La Rosa), Juan Pablo Olivos (Tano)

Argumento e roteiro Javier Fuentes-León

Fotografia Mauricio Vidal

Música Selma Mutal Vermeulen

Montagem Javier Fuentes-León e Roberto Benavides

Produção Elcalvo Films, Dynamo Producciones, Dynamo

La Cinéfacture, Neue Cameo Film. Estreou em São Paulo em 8/4/2011.

Cor, 100 min.

***

 

11 Comentários para “Contracorrente / Contracorriente”

  1. O mais interessante em contracorrente é que a problemática sempre se renova. As situações são resolvidas muito rápido e a história logo passa para uma nova fase ao inves de arrastar um único problema o filme inteiro.

  2. Esse filme marcou minha vida sentimental.
    eu preciso “deixar morrer um amor e não tinha coragem para isso)…
    Grande Filme, chorei mto porq entendi o sentido do mesmo pra minha vida atual

  3. Parabens ao Sergio Vaz, por esse comentario tao completo e realista. Eu desde Broke Back Moutain nao tinha ainda um filme me arrebatasse! pois esse filme mexe com tudo o que temos de emocional, e por que nao dizer que o pano de fundo e uma terapia.
    Abs Wagner

  4. Pelo texto e comentários fui a única que não gostou do filme. Terminei de ver só por terminar, mas chegou um momento em que comecei a achar chato, me desinteressou. Acho que porque não gosto de realismo fantástico. Se o rapaz tivesse continuado vivo teria sido mais interessante. Queria ver até quando o Miguel ia conseguir levar a vida dupla, e como lidaria com o preconceito no povoado, ainda que tenha tido que lidar com ele, num grau menor.
    Fiquei com pena da personagem traída. Certamente deve ser mais doloroso ser traída com um homem do que ser traída com uma mulher.
    No mais, esse ator Cristian Mercado é bonitão e foi o que me incentivou a terminar de ver o filme. he

  5. Seu dicionário é diferente dos que eu tenho em casa, Rodrigo. Nos meus a palavra existe. “Homosseuxalismo – substantivo masculino – prática de comportamento homossexual”, diz, por exemplo, o “Dicionário Unesp de Português Contemporâneo”.
    Sérgio

  6. Olá Sergio, entendo o Rodrigo quando ele fala que o correto é homossexualidade.

    Olha o que está escrito no manual da ABGLT, pág 11:

    “Homossexualidade ao invés de homossexualismo

    Em 1973, os Estados Unidos retirou “homossexualismo” da lista dos distúrbios mentais da American Psychology Association, passando a ser usado o termo Homossexualidade.

    (…)

    Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia formulou a Resolução 001/99, considerando que ‘a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão’…

    Por isso, o sufixo ‘ismo’ (terminologia referente à ‘doença’) foi substituído por ‘dade’ (que remete a ‘modo de ser’).”

    As lutas são muitas, e creio que uma delas é mostrar que ser homossexual não é estar doente. Pode parecer algo bobo, mas é importante utilizar o termo correto.

    Espero que me entenda. Obrigada. Um abraço.

  7. Agradeço por sua mensagem, Tamara.
    Mas, perdão, repito para você o que disse para o Rodrigo:
    Contesto a afirmação de que o sufixo “ismo” denota patologia. Veja só: modernismo, futurismo, romantismo, liberalismo, clacissismo, erotismo, minamalismo… E por aí afora.
    Veja o que diz o Aurélio. O sufixo ismo serve para várias coisas, como, por exemplo, doutrina, escola (casos acima), e também “ação, conduta ou qualidade característica de”.

    De qualquer maneira, me rendo. Vou substituir a palavra condenada.
    Um abraço.
    Sérgio

  8. Como faz pra não abandonar a vida estruturada, segura, mas tediosa da cidade e não se jogar numa vila de pescadores em qq lugar do mundo depois de ver esse filme????? pqp… bonito demais na composição e fotografia que chega a arrancar de dentro da gente aquela certeza (não muito certa) que tive a vida toda de que uma vida segura e sem aventuras é melhor. Pqp. Mindblowed. Masterpiece.

  9. O filme está anunciado e vai começar daqui a meia hora na TV Brasil. Nao sabia se o assistiria até ler a crítica acima. A comparação com Le Bonheur, de Agnès Varda, me convenceu a beber um chá e assistir o filme. Le Bonheur que no Brasil ganhou o título, ridículo de “As duas faces da felicidade”, meio spoiler, foi um dos grandes filmes que vi. As cores, os atores e o concerto para clarineta de Mozart compuseram o cenário perfeito para um grande filme.

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