Incêndios / Incendies

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[rating:3]

Confesso: Incêndios, que o realizador canadense Denis Villeneuve lançou em 2010 – depois de um trabalho que levou cinco anos – me deixou zonzo.

O filme é um brilho, um tour-de-force, uma realização magistral, assombrosamente bem feita.

É também uma daquelas obras que deixam o espectador perfeitamente convencido de que a humanidade não tem jeito. É mesmo uma invenção que deu errado.

Verdade que, após duas horas de barbárie, duas horas de narrativa em que comprova seu teorema, sua equação, de que não tem jeito algum, Villeneuve, também autor do roteiro, se sai com uma tentativa de dizer que não é muito bem assim. Na undécima hora, aos 49 minutos do segundo tempo, ele surge com uma nota de esperança. Diz que há uma forma de cortar a corrente do ódio, da vingança.

zzincendies8Depois de esgotado o tempo regulamentar, ele diz que não é bem assim como ele vinha dizendo o tempo todo – e proclama, quase como se fosse o Robert Guédiguian de Lady Jane, uma moral do tipo “aquele que busca se vingar é como a mosca que bate contra o vidro sem ver que a porta está escancarada”.

Senti – eu, que sou um fiel crente no provérbio armênio citado por Guédiguian ao final de seu filme sobre vingança e vingança e vingança – que naquele caso específico mostrado ao longo de 120 dos torturantes 130 minutos deste filme, seria muito difícil perdoar.

Incêndios é, repito, uma realização magistral, assombrosamente bem feita. Mas é chocante demais, é intencionalmente desesperançado demais. A tentativa final de mostrar uma nota de esperança parece tola, vã.

O que fica é mesmo o que se passou no tempo regulamentar. Incêndios é um filme que mostra que a crueldade não tem fim. Que não cabe esperança alguma.

Incêndios abusa demais da violência, da desesperança mais completa, da absoluta falta de crença em qualquer coisa.

E não gosto disso. Me parece duro demais da conta.

Não aconselharia a um amigo que visse este filme. Nem sequer a um inimigo, se é que tenho algum.

Em carta a ser lida após sua morte, a mãe faz uma série de exigências aos filhos

Talvez para procurar algum tipo de escudo para fazer críticas a um filme que, além de brilhante, tem tido só aplausos, para tentar encontrar algum ponto racional em que me apoiar (já que não dá para dizer que o filme é ruim), digo o seguinte: não gosto muito de histórias que não contem exatamente onde se passam. Que não permitam que o espectador tente compreender o contexto.

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Em nenhum momento Incêndios diz o nome do país onde se passa a maior parte da trama.

Como muitos filmes da nouvelle vague francesa dos anos 1960 gostavam de fazer, Incêndios é um filme que se apresenta em capítulos. Como a imensa maior parte dos filmes do cinemão comercial das últimas décadas, não tem créditos iniciais. O coitado do espectador começa a ver a ação sem ter a mínima noção de quem estrela e quem fez o que estará vendo a seguir. A rigor, a rigor, até que há, antes do início da ação, créditos das empresas produtoras, e então ficamos sabendo que se trata de uma co-produção canadense-francesa, nessa ordem. Mas é só.

O nome dos capítulos vem em letras vermelhas, gigantescas, e o primeiro deles é “Os Gêmeos”.

Nas primeiras tomadas, vemos um campo de refugiados, um grande número de crianças que estão tendo seus cabelos cortados com máquina zero. Uma delas tem três furos colocados na vertical no calcanhar direito.

Vemos então dois gêmeos, um homem e uma mulher, aí de uns 25 anos, diante de um tabelião, um notário, que abre diante deles o testamento da mãe. Os gêmeos são Jeanne e Simon Marwan (interpretados, com perfeição e honra, por Mélissa Désormeaux-Poulin e Maxim Gaudette, na foto abaixo). O tabelião se chama Jean Lebel (Rémy Girard). A mulher morta, Nawal Marwan (Lubna Azabal, na foto acima), trabalhou como secretária do tabelião Jean Lebel por 18 anos; o tabelião e sua esposa se afeiçoaram a ela.

O tabelião apresenta para os filhos que perderam a mãe o testamento dela. A mãe exige que não haja lápide sobre sua sepultura, e que seu corpo seja sepultado sem caixão, de frente para o fundo da terra, as costas para a superfície. E exige que a filha entregue ao irmão mais velho uma carta, e que o filho entregue ao pai uma outra carta. Somente depois que esses seus últimos desejos tiverem sido satisfeitos ela permitirá a existência de uma sepultura normal, comum, com lápide.

Jeanne e Simon, que o espectador sabe um tanto por adivinhação que são filhos de uma imigrante de origem árabe que se radicou no Canadá francês, ficam sabendo ali, naquele momento, diante do tabelião que foi também o empregador de sua mãe, que têm um pai e um irmão ainda vivos.

E que precisam ir atrás deles, para satisfazer ao último desejo da mãe.

O notário Jean Lebel entrega a Jeanne as duas cartas – uma dirigida ao pai, outra ao irmão – e mais um envelope. No envelope estão o passaporte da mãe (o espectador vê na capa do documento os caracteres árabes), uma foto dela quando jovem, e um cordão com um crucifixo. São essas todas as pistas que os gêmeos terão para descobrir no mundo mundo vasto mundo o paradeiro do pai e do irmão que eles não sabiam existir.

O filme insiste em não dizer em que país se passa a ação

zzincendies6Talvez por ser jornalista, talvez por ser uma espécie de idiota da objetividade, gosto de quem, como, onde, quando, por quê. Gosto dos filmes que têm letreiros dizendo onde e quando estamos. Talvez por ser humano, ridículo, idiota, como dizia o autor das letras de Raul Seixas, aquele rapaz que depois foi fazer outras coisas na vida, gosto de saber onde e quando estou. Acho dignos e honestos os filmes que me contam isso, com todas as letras. Tendo a desprezar os filmes que me escondem o onde e o quando. Aprendi muito cedo, no Colégio de Aplicação, com um bom professor de Filosofia, que só são obscuras as pessoas que não sabem direito o que dizer.

Esse Denis Villeneuve não é obscuro, e é um grande realizador. Mas é irritante ao não nos mostrar os quando e onde.

Acho um horror ver um filme que não diz quando e onde os fatos estão acontecendo.

Toda a narrativa deste filme bem realizadíssimo esconde do espectador onde tudo começou, onde se passa a imensa maior parte da ação que vai e vem no tempo.

Pode ser no Norte da África, ou muito mais provavelmente no Oriente Médio – mas onde, meu Deus do céu e também da terra?

Nos créditos finais, há agradecimentos à Jordânia.

Mas a Jordânia, que eu saiba, não tem uma quantidade tão grande de cristãos, nem de gente que fala francês.

Então deve ser o Líbano.

Ah, claro, deve o Líbano.

Mas o filme insiste em não deixar as coisas claras. Fala-se numa cidade chamada Daresh, outra chamada Deressa, outra chamada Kfar Ryat.

Consulta-se o Google Maps, e essas cidades não existem.

É possível que o realizador quisesse isso mesmo – não determinar o local dos fatos

Estaria eu exagerando na idiotice da objetividade?

É possível. É bem possível.

zzincendies4Gosto, por exemplo, dos filmes americanos que não dão nome à cidade em que se passa a ação – ou que dão nomes fictícios a elas. Nesse caso, me parece que é a clara intenção dos realizadores de dizer que aquelas situações poderiam se dar em qualquer cidade. Que não faria diferença se fosse em uma cidade do Indiana ou do Arkansas.

Talvez Denis Villeneuve tenha feito seu roteiro exatamente para não se apegar a uma nação e a uma história específica, particular.

Porque, afinal de todas as contas, histórias de profundo ódio a partir de dessemelhanças de religião, de etnia, de uma ou outra crença, de uma outra ideologia, não são propriamente privilégio apenas dos países do Oriente Médio, ou dos países em que haja muçulmanos e judeus.

Histórias de crueldades horrendas, impensáveis, a partir de conflitos étnicos e religiosos há em todos os lugares do planeta. Dos Bálcãs à África, a qualquer país da África, haja ali judeus e muçulmanos ou não.

Nos Estados Unidos da América da democracia e da liberdade, há bem menos de cem anos penduravam-se nas árvores frutas estranhas, corpos de seres humanos de pele negra.

Na França da igualdade fraternidade igualdade, há bem menos de um século milhares e milhares de judeus foram entregues pela polícia ao invasor nazista, que matou a todos nos seus fornos.

O mal que o filme mostra é tão absurdo que parece difícil se perdoá-lo

Então é bem provável que, ao não nomear o país onde aquelas atrocidades todas mostradas no filme foram cometidas (e deve ser mesmo o Líbano, até porque o autor da peça em que o autor e realizador Denis Villeneuve se baseou, Wajdi Mouawad, é um libanês radicado no Canadá francês), tenha se optado exatamente por dizer que atrocidade não tem pátria.

zzincendies7É bem provável que Incêndios seja um filme genial.

É bem provável que Incêndios esteja certo no que diz ao longo dos seus primeiros 120 minutos: a humanidade não tem jeito mesmo, é uma invenção que não deu certo.

Acho que o filme me deixou zonzo foi exatamente porque ele mostra essa verdade dos fatos na qual teimo em não acreditar.

É uma verdade tão doida, tão doída, que até o próprio autor tenta desmenti-la, depois de esgotado o tempo regulamentar, aparecendo com uma réstia de esperança.

Mas Denis Villeneuve faz isso de forma trágica. Eu, se fosse Simon Marwan, eu, que passei seis décadas rejeitando de todas as formas a Lei do Talião, acho que iria lá e me vingaria.

Um filme que faz uma pessoa teoricamente do bem querer se vingar pode ser brilhante. Mas não é bom.

Anotação em novembro de 2012

Incêndios/Incendies

De Denis Villeneuve, Canadá-França, 2010

Com Lubna Azabal (Nawal Marwan), Mélissa Désormeaux-Poulin (Jeanne Marwan), Maxim Gaudette (Simon Marwan),

e Rémy Girard (Jean Lebel), Abdelghafour Elaaziz (Abou Tarek), Allen Altman (notário Maddad), Mohammed Majd (Chamseddine), Nabil Sawalha (Fahim), Baya Belal (Maïka)

Roteiro Denis Villeneuve

Baseado na peça de Wajdi Mouawad

Fotografia André Turpin

Música Grégoire Hetzel

Montagem Monique Dartonne

Produção micro_scope, TS Productions, Phi Group. DVD Imovision.

***

18 Comentários para “Incêndios / Incendies”

  1. O fato de o “onde” não ficar claro no filme não me incomodou nem um pouco, achei que Dennis Villeneuve propositalmente não revela o “onde” em Incêndios para tornar o drama mais universal. Do mesmo diretor,experimente Polytechnique, filme baseado na história real de um misógino que matou 19 estudantes mulheres em uma escola no Canadá. Impressionante.

  2. Denis Villeneuve é realmente brilhante. Se não me engano Hollywood já fisgou o diretor canadense para suas superproduções. Vou discordar um pouco com a opinião do Sérgio pois não achei o filme tão violento. Talvez porque estou acostumado a assistir filmes muito sangrentos. A história de incêndios me prendeu do começo ao fim do filme. Além de Polytechnique indicado por acima Maria Teresa, outro obra do diretor que eu indico é Maelström.

  3. Assisti no domingo, 14 deste mes.
    Um grande filme, sim, mas de fato,violento e muito forte. Resumes tudo do filme em duas linhas no teu texto.
    “Uma realização magistral, muito bem feita, mas chocante demais, desesperançado ao extremo”.
    Deus!! Aquela cena do onibus é impactante demais.Difícil assistir aquilo.Aquela menina.
    Sentimos em nós a dor daquela mulher e, não tem como não sofrer junto com ela.
    Como sempre o “poder” de destruição de uma guerra, arrasando com vidas.
    E, é como está lá, “viagem de dois jóvens adultos para o núcleo do ódio enraizado,das guerras que nunca acabam”.
    O que é aquilo,uma imagem de N.S.nos fuzis??
    Incrível aquela cena da irmã quando descobre o enígma do 1 + 1 .
    AQUI É SPOILER: SE NÃO VIU, NÃO LEIA.
    Filho torturador/irmão-pai. Fiquei em dúvida quanto a idade.
    No Canadá, na piscina, quando ela encontra o filho, ele está muito môço, não ??
    Brutal, violento como já falei , e bastante perturbador mas um ótimo filme.
    Um abraço !!

  4. pelamordedeus, que história! O final é de tirar o fôlego, não?! Para este daria nota 4, Sérgio… E como disse a Maria Teresa, não me incomodou tb não saber exatamente onde se passa a história, acho que tem vários outros assim e a gente gosta pq gosta, não me pareceu necessário para o desenrolar do drama.

  5. Achei que a sucessão de catástrofes enfraque o filme. É muita choradeira para um filme só. Me parece que o lado psicológico da personagem é jogado deliberadamente à escanteio , e assim seguimos para uma nova surpresa ou catástrofe.

  6. Brutalidade e violência que é apresentado “de graça” em outros filmes e nem por isso nos surpreendemos. Essa violência e brutalidade que é apresentado em Incendies, é algo do real, e o que ocorre todos os dias. Esse ódio por pessoas, povos, e que não nos incomodamos pq está distante, muito distante. Psicologicamente perturbador, como gosto. O filme apresenta o que de real acontece, talvez por isso incomode toda sua brutalidade e violência. Filme genial.

  7. só recentemente descobri esse ótimo diretor e aos pouco estou assistindo sua filmografia. esse incêndios é sem duvidas, um dos melhores. ou talvez o melhor de todos. ótimo filme.

  8. Peloamor de jeova, o lugar onde se passa o filme não é um mistério. Quando a filha descobre que a foto que ela tem da mãe é em uma prisao (kfar ryat) o senhor que explica a ela onde fica, diz com todas as letras que a prisão fica AO SUL DO IRÃ. Logo após, um letreiro que aparece varias vezes no filme como “os gêmeos”, “darresh” entre outros, também nos apresenta em certo momento “o sul”. Isto é, se ficar atento ao filme, verá como ele, ao invés de tentar fazer um mistério de onde se passa, na verdade é apenas algo irrelevante pra história, por isso ele explica onde se passa de uma forma bem superficial. Se pesquisarem no google “Darresh” também descobrirão que a cidade se encontra no Irã e que só foi “noticiada” pelo censo depois de 2006. Não da pra falar que o lugar onde se passa o filme é propositalmente escondida pelo diretor.

  9. Revi o filme hoje. Realmente impressionante. Mas, apesar das cidades fictícias, aparece o nome do país sim: Palestina. Está escrito num adesivo anexado na janela da redação do jornal. Creio que deve estar ambientado num período anterior a segunda guerra. Pois durante a guerra a Palestina esteve sob ocupação britânica e após foi criado o estado de israel, dando origem a mais um conflito. Então, deve ser antes. Os mesmos conflitos étnicos-religiosos que assolaram o líbano estão e estiveram presentes em todo mundo árabe, pelo pouco que sei. Mas só pra dizer que existe a dica do país sim…

  10. Michel, Palestina é apenas um adesivo no vidro. Estava I Palestina, mas o coração está apagado. Não é o país

  11. Mas não é preciso dizer em que país se passa. Basta ver as bandeiras que avtodo momento aparecem.

  12. Em determinado momento, vi o ano de 1970 – apenas, não me lembro a que alude, especificamente: talvez, à entrada de Nihad ao orfanato?

    A violência extrema e gratuita dá a sensação de esmagamento, de quase faltar o ar. E ainda lembrei-me de uma carta do jornalista Jamil Chade (Uol) ao deputado Arthur do Val, em que relaciona tragédias semelhantes testemunhadas por ele, em seu trabalho de correspondente. Não as discrimino pra não impor a leitura de tanta dor a quem não escolheu.

    A conclusão do Sérgio é inevitável: a humanidade bem sucedida em alguns, parece só confirmar a regra de que falhou na maioria.

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