Gente de Sorte / The Lucky Ones

3.5 out of 5.0 stars

Eis aí um grande filme – que, aparentemente, é bem menos conhecido do que deveria.

É assim uma espécie de Os Melhores Anos de Nossas Vidas, versão 2008.

E, não, os personagens centrais não são propriamente gente de sorte, the lucky ones.

Os títulos, tanto o original quanto o brasileiro, não correspondem  ao que mostra a história. Seguem, assim, o que até já é uma  tradição: Estamos Todos Bem/Stanno Tutti Bene, de Giuseppe Tornatore, de 1990, Estão Todos Bem/Everybody’s Fine, de Kirk Jones, de 2009, refilmagem do original italiano, Não se Preocupe, Estou Bem!/Je Vais Bien, ne t’en Fais Pas, de Phillippe Lioret, de 2006, A Cidade Está Tranquila/La Ville est Tranquille, de Robert Guédiguian, ded 2000 – todos esses filmes negam o que dizem seus títulos. É ironia pura.

A rigor, era também o que acontecia com Os Melhores Anos de Nossas Vidas, tradução literal do título original, o grande clássico que William Wyler fez em 1946, o ano seguinte ao do final da Segunda Guerra Mundial, que ganhou sete Oscars e tem o respeito praticamente unânime de quem gosta de filmes.

No filme de Wyler, os personagens de Fredric March, Dana Andrews e Harold Russell estão voltando para casa, após o final da Grande Guerra – e a readaptação à vida civil não será nada fácil. Muito ao contrário.

Na história criada por Neil Burger e Dirk Wittenborn, três soldados estão voltando para casa, depois de uma temporada no Iraque – e a volta não será nada fácil. Muito ao contrário.

Três pessoas muito diferentes umas das outras se conhecem na volta para casa

São – da mesma maneira que no clássico de 1946 – três pessoas extremamente diferentes uma da outra. Diferentes em tudo: até no tipo de volta.


Cheaver (Tim Robbins), sargento, está voltando para casa de vez. Sofreu um acidente, teve costelas fraturadas, terá que conviver com dores na coluna para sempre, e obteve dispensa do Exército. Como o personagem de Fredric March em Os Melhores Anos de Nossas Vidas, tem mais dinheiro que os demais; mora numa bela casa em St. Louis, tem mulher e um filho adolescente.

Os outros dois não estão voltando de vez – estão em licença de 30 dias após terem sido feridos no Iraque.

TK (Michael Peña), sargento como Cheaver, foi ferido por fragmento de bomba junto da virilha. Sua maior preocupação é fazer com que o membro sexual volte a funcionar: sem o pau funcionando – TK tem certeza disso –, não haverá mais possibilidade de convivência com sua noiva. E a noiva é tudo o que ele tem para ver no seu próprio país, além da mãe: todos os seus irmãos estão também servindo Exército, guerreando em algum lugar do mundo. TK vem de família pobre, de imigrantes, e, para muitos americanos pobres, servir Exército é uma boa forma de ganhar um salário razoável.

Colee (Rachel McAdams), soldado raso, teve um ferimento de bala na coxa. Foi salva pelo namorado, Randy, que servia junto com ela; Randy conseguiu salvá-la, mas, ao fazê-lo, levou um tiro fatal. Colee, assim como TK, vem de família humilde. A rigor, a rigor, sequer tem família: para ficar mais tempo com o namorado, a mãe a botou para fora de casa quando a garota tinha 16 anos. Não é dito com todas as letras, mas pode-se perfeitamente perceber que Colee vem de uma família que lá eles chamam de white trash, o que é bem diferente de wasp; white trash é também branco (da letra w), anglo-saxão (letras a e s) e protestante (p), mas é muito pobre, quase miserável, e por isso é lixo.

Colle traz na bagagem o violão que era do namorado Randy, um violão de estimação, muito antigo, que teria sido de alguém próximo a Elvis. A moça pretende levar o violão precioso de volta para os pais de Randy – e tem a certeza de que eles, gente boa, a acolherão em sua casa para os 30 dias de licença.

Pobres, TK e Colee são, de alguma maneira, otimistas, esperançosos. Conseguem ver coisas positivas na sua vida. Nisso, são o oposto de Cheaver, o mais velho e mais bem situado na escala social. Cheaver é sério, ensimesmado, muitíssimo menos expansivo de que os outros dois.

Essas três pessoas tão díspares umas das outras se encontram pela primeira vez na vida no avião que irá levá-las de volta para os Estados Unidos. Viajam em assentos próximos.

Um road movie por uma América dos piores pesadelos

A América para onde retornam os três personagens de Os Melhores Anos de Nossas Vidas, em 1945, era uma potência em forte crescimento. Os anos amargos da Grande Depressão haviam ficado para trás, e a economia do país ia muito bem.

A América em que desembarcam Cheaver, TK e Colee, em 2007, 2008, é um país em crise, depois de dois mandatos consecutivos de George W. Bush, total leniência com a selvageria do sistema financeiro, total proteção fiscal aos muitíssimo ricos, déficit público gigantesco em boa parte por causa do envolvimento nas guerras do Iraque e do Afeganistão e véspera do estouro da bolha imobiliária e bancária que levaria à crise global da qual os países ricos ainda não saíram.

No momento do desembarque no John Fitzgerald Kennedy, em Nova York, a energia acabava de ser restabelecida, depois de um grande blecaute. Não havia vôos para lugar algum.

Cheaver resolve alugar um carro: em 14 horas de viagem contínua, poderia chegar à sua cidade, St. Louis. Cada um por seu motivo, TK e Colee pretendiam ir para Las Vegas, bem mais a Oeste. Embora de muito mal grado, Cheaver admite levá-los até St. Louis, desde que todas as despesas sejam divididas igualmente.

Gente de Sorte está bem no comecinho. Vai começar um belíssimo road movie por uma América dos piores pesadelos.

A antipatia que sentia por Neil Burger vai para a lata de lixo

Nunca tinha ouvido falar em Gente de Sorte. Mary pegou na locadora basicamente por causa de Tim Robbins, esse grande ator e diretor que admiramos faz muito tempo. O filme não tem créditos iniciais – apenas o título, The Lucky Ones, aparece no início –, e então só no finalzinho, depois que já tinha ficado absolutamente encantado pelo filme, foi que vi que o diretor é Neil Burger, um realizador por quem não tenho qualquer simpatia. Nem sei direito por quê. É uma antipatia besta, sem motivo, porque, antes deste Gente de Sorte, havia visto dele O Ilusionista, de 2006, que é um ótimo filme, e Sem Limites, de 2011, que é extremamente bem feito, embora a trama, depois de partir de uma excelente idéia, se perca bastante.

Antipatia sem motivo. Coisa idiota. Tenho muitas antipatias – por gente como Hal Hartley, Peter Greenaway, por exemplo -, mas essas aí têm motivo de ser: vi mais de um filme de cada um, e achei tudo metido a besta, pretensioso, chato, aborrecido, feito para agradar a júri de festival, e não a seres humanos.

Foi muito bom, assim, ter visto Gente de Sorte sem saber quem era o realizador, porque gostei demais do filme, e agora jogo na lata de lixo qualquer antipatia que tenha tido por Neil Burger.

Um grande ator que não tem tido muitas oportunidades e e dois jovens em ascensão

Como diretor, Tim Robbins fez três filmes sensacionais, extraordinários: Bob Roberts (1992), Os Últimos Passos de um Homem (1995) e O Poder Vai Dançar (1999). Foram filmes tão espetaculares, tão brilhantes, que – se não me falha muito a memória – muita gente chegou a comparar o talento de Tim Robbins ao de Orson Welles.

Não voltou a dirigir para o cinema, depois deles. Fez um vídeo, um filme para a TV, dirigiu episódios de série de TV.

Seguramente não é porque o talento acabou. Deve certamente ter a ver com política. Tim Robbins é politicamente à esquerda demais para os padrões americanos.

Como ator, creio que sua última grande oportunidade, antes deste filme aqui, de 2008, haviam sido Sobre Meninos e Lobos/Mystic River, de Clint Eastwood (2003) e A Vida Secreta das Palavras, da catalã Isabel Coixet (2005).

É um estranho, triste caso de imenso talento muito menos aproveitado do que deveria.

O contrário acontece com Rachel McAdams. Essa garota nascida em 1978 tem tido muitas boas oportunidades, em comédias (Uma Manhã Gloriosa, Meia-Noite em Paris), em dramas (Intrigas de Estado), em filmes de ação/aventura (Sherlock Holmes), e tem se saído bastante bem em todos os gêneros.

Também esse rapaz Michael Peña, nascido em 1976, tem tido muitas oportunidades – são 58 títulos, até agora –, incluindo algumas ótimas: trabalhou em Menina de Ouro (2004), Crash – No Limite (2004), Leões e Cordeiros (2007), O Poder e a Lei (2011).

 Os tristes personagens não conseguem mais se encaixar em seu país, mas ainda sabem ser solidários

Os Melhores Anos de Nossas Vidas tem uma quantidade de sequências que são absolutamente inesquecíveis, como, por exemplo, a do cemitério de aviões, onde o desolado personagem de Dana Andrews se recolhe.

Gente de Sorte, assim como seu notável, excelso predecessor, tem sequências que dificilmente sairão da cabeça que tem tiver a sorte de vê-lo. A chegada de Cheaver a sua bela, confortável casa – e tudo o que vem em seguida. A parada que os três dão na região do Grand Canyon, a tempestade, o tornado. O encontro de Colee com a família do namorado morto. A perambulação de Cheaver entre os cassinos de Las Vegas. O diálogo sobre a sorte, ou a falta dela. E, sobretudo, a festa na casa do multibilionário do Arizona, as conversas de quem fica confortavelmente em casa enquanto soldados de todas as idades lutam lá fora em guerra insanas.

Por retratar um país profundamente doente, que envia milhares de seus jovens para guerras nos lugares mais distantes do mundo, sem ter a menor idéia de por que estão fazendo aquilo, e por abordar a guerra do Iraque e seus efeitos sobre as pessoas, Gente de Sorte me fez lembrar de outro filme grande, No Vale das Sombras/In the Valley of Elah. Por coincidência, No Vale das Sombras foi dirigido por Paul Haggis, o realizador de Crash – No Limite, em que também trabalhou o garoto Michael Peña, e no filme trabalha também Susan Sarandon, durante décadas casada com Tim Robbins.

Em No Vale das Sombras, o protagonista, interpretado por Tommy Lee Jones, um ex-militar, vê sua crença nos valores básicos de seu país absolutamente destroçada pela insanidade das instituições e pessoas à sua volta.

Este belo filme que parte de um título irônico chega quase às mesmas conclusões de No Vale das Sombras seguindo o sentido oposto.

Em No Vale das Sombras, o ex-militar executa o gesto simbólico mais desesperançado que existe: ao virar a bandeira americana de cabeça para baixo, ele afirma que está tudo absolutamente perdido, que não há mais salvação.

Em Gente de Sorte, Neil Burger mostra como tudo está de cabeça para baixo, como tudo está quase absolutamente perdido.

Quase.

Porque, de alguma maneira, aqueles três pobres, tristes personagens, Cheaver, Colee e TK, são, sim, gente de sorte, the lucky ones.

No meio da loucura coletiva, no auge da crise de um país onde não mais conseguem se encaixar, não perderam o principal, o fundamental: a solidariedade. A abençoada capacidade de querer ajudar o outro.

Um grande filme.

Anotação em agosto de 2012

Gente de Sorte/The Lucky Ones

De Neil Burger, EUA, 2008

Com Rachel McAdams (Colee), Tim Robbins (Cheaver), Michael Peña (TK)

e Molly Hagan (Pat Cheaver), Mark L. Young (Scott Cheaver), Howard Platt (Stan Tilson), Arden Myrin (Barbara Tilson), Coburn Goss (Peter Tilson), John Heard (Bob), Jennifer Joan Taylor (a mulher de Bob), Katherine LaNasa (Janet), Leo Ford (o marido de Janet)

Roteiro Neil Burger e Dirk Wittenborn

Fotografia Declan Quinn

Música Rolfe Kent

Produção Lionsgate, Roadside Attractions, QED International, Sherazade Film Development, Visitor Pictures, Overnight. DVD PlayArte

Cor, 113 min

***1/2

 

5 Comentários para “Gente de Sorte / The Lucky Ones”

  1. Outro filme que se perdeu algures no Atlântico e morreu antes de chegar às praias da Lusitânia.

  2. Oi,Sergio !! Na sexta feira passada,fiquei lendo outros textos teus,e esqueci de comentar este, como te disse que faría.E, depois,eu e minha mulher,viajamos para o fim de semana em Rio das Ostras,com um casal de amigos.Todos aposentados,já viu,né … só voltamos hoje.
    Falei prá ti que tinha visto este filme há
    uns 4 mêses,foi engano.Tenho anotado,foi em 20 de abril. Gostei muito deste filme.
    Como te disse “em particular”,a diferença e que em “os melhores anos”,o final é mais feliz para os 3 militares. Com certeza,muita gente não deve ter gostado do final.
    Mas,era certo aquilo acontecer. Eles notaram que eles eram felizes, lá onde estavam,no exército.Algo como se a vida aqui “fora”,não fôsse mais deles.
    E,eles,não tiveram um final feliz (para nós),
    mas para eles,sim, e,são sim,gente de sorte,
    porque como tu disseste,no meio da loucura geral,na crise do país onde não mais se encaixam,não perderam o princípio maior que é a amizade a solidariedade a capacidade de ajudar o outro.

  3. Não gostei de “Gente de Sorte”, é um filme pra baixo que não melhora em nenhum momento; e embora exista solidariedade entre os três personagens, e solidariedade seja uma qualidade das mais incríveis, isso não foi suficiente para me cativar.
    A parte da festa na casa do bilionário é a única que lembro de ter achado interessante/importante. Já perto do final tem uma sequência que me deu um pouco de alento, não lembro direito qual foi, talvez a visita da moça à casa dos pais do namorado que morreu na guerra. Enfim, não curti. O filme pode ser bom, os atores também, mas não entrei no espírito dele, não.

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