4.0 out of 5.0 stars
Ao rever agora A Fortuna de Cookie, que Robert Altman fez em 1999, fiquei mais uma vez impressionado, é claro, com a beleza, a qualidade do filme. Mas beleza e qualidade numa obra de Altman não chegam a ser surpresa, de forma alguma. O que mais me impressionou foi como o filme é alegre, pra cima, de bem com a vida.
É bem possível que seja um dos filmes mais alegres do grande realizador. Talvez até o mais.
Altman (1925-2006) é um autor que teve muitas fases, em sua gloriosa carreira de quase 90 títulos, desde seus primeiros curtas-metragens, no início dos anos 50, passando pelas séries de TV nos anos 50 e 60, até seu canto do cisne com A Última Noite/A Prairie Home Companion, de 2006.
Fez desde comédias, como M.A.S.H. (1970), a dramas sociais pesados, como Kansas City (1996), passando por quase tudo: western (Quando os Homens São Homens/McCabe & Mrs. Miller, 1971), ficção científica (Quinteto, 1979), musical (Nashville, 1975), adaptação de quadrinhos (Popeye, 1980), adaptação de peças teatrais de vanguarda, experimentais (O Exército Inútil/Streamers, 1983, Honra Secreta, 1984), comédia dramática sobre o mundo do cinema (O Jogador, 1992), policial de suspense (Assassinato em Gosford Park, 2011).
Mas ele não apenas passeou pelos mais diversos gêneros. Teve também várias fases. No início de sua carreira, Altman fez grandes filmes anticonvencionais, que iam contra as regras dos gêneros, como é o caso do estranho, soturno, gelado western Quando os Homens são Homens e o policial O Perigoso Adeus/The Long Goodbye.
M.A.S.H., uma sátira arrasadora, impiedosa, virulenta demais, com um pé no mundo cão, foi um espantoso sucesso comercial. Popoye, ao contrário, foi um fragoroso fracasso de bilheteria – embora seja uma maravilha de filme, que merece ser relançado e revisto.
Nos anos 80, depois de Popeye, o realizador enfrentou uma fase em que os estúdios não queriam saber dele. Grande artista, deu aula de cinema na Universidade de Michigam, e continuou a fazer bons filmes, como O Exército Inútil e Honra Secreta – dois filmes baseados em peças de teatro, tão fortes quanto difíceis, indigestos para a maioria dos espectadores. E foi só com O Jogador, de 1992, que fez as pazes com o sucesso, com a bilheteria, e obteve de novo o reconhecimento unânime da crítica como um dos maiores nomes do cinema americano. Logo depois vieram Short Cuts – Cenas da Vida, de 1993, também aclamadíssimo, um mosaico sobre a vida em Los Angeles, e Prêt-à-Porter, de 1994, outro mosaico, desta vez sobre o mundo da moda.
Um monte de personagens, todos conhecidos uns dos outros
Em todas as fases, em todos os gêneros, os filmes de Altman se caracterizaram sempre pela visão ácida, corrosiva, implacável, das pessoas, da sociedade, do mundo.
Pois no filme de 1999, prestes a completar três quartos de séculos de vida, o mestre estava doce, suave. Tão doce, suave, que, ao contrário da maior parte de seus filmes, a grande maioria dos personagens de A Fortuna de Cookie é gente boa, bom caráter.
São muitos personagens, como em quase todos os filmes dele. Altman usa tomadas longas, alguns planos-seqüências maravilhosos, para apresentar os personagens, nos primeiros 15, 20 minutos do filme. São todos eles conhecidos uns dos outros, muitos ligados por laços familiares e afetivos. Gente comum de uma pequena cidade do Mississipi, no Sul Profundo, chamada Holly Springs (e as filmagens foram mesmo nessa cidade, conforme informam os créditos finais).
Na verdade, naquela cidadezinha pequena, todo mundo conhece todo mundo.
Willis (Charles S. Dutton), negão careca, gorduchão, é um sujeito que gosta de uma cachaça. Toma várias no bar de um casal de amigos, Theo e Josie, enquanto Josie canta, estupidamente bem, um belo blues. Ao sair do bar, Willis, um tanto trôpego, deixa cair sua garrafinha de uísque no chão; volta ao bar do amigo, sob o pretexto de estar com sede, bebe um gole grande de água e surrupia uma garrafinha pequena de Wild Turkey, idêntica à que havia quebrado.
De novo na rua, Willis passa por uma van, onde uma garota de uns 20 e pouquíssimos anos, Emma (Liv Tyler, bela de doer, na foto abaixo), se prepara para dormir. Willis a chama algumas vezes, mas Emma não atende. Veremos depois que Emma passou uma temporada fora da cidade, e havia acabado de voltar; usava como casa a van estacionada perto da peixaria de Manny (Lyle Lovett), um sujeito absolutamente apaixonado por ela.
Em ações paralelas, o espectador vê uma dupla de policiais que sai da delegacia e patrulha as ruas calmas de Holly Springs, conversando sobre peixes e pescaria. Um dos policiais é Lester (Ned Beatty), que, veremos depois, é uma ótima figura, grande caráter.
O espectador vê também um ensaio de uma peça numa igreja presbiteriana. Estamos na noite de Sexta-feira Santa, e a peça é Salomé, de Oscar Wilde. Quem dirige a peça é Camille (Glenn Close), uma solteirona, e quem interpreta Salomé é a irmã de Camille, Cora (Julianne Moore), que, veremos depois, é a mãe de Emma, a garota linda que dorme na van. Todos ali na igreja parecem saber que Cora é meio burrinha, ou talvez até bastante burrinha, e todas as decisões na vida dela são tomadas por Camille.
Willis anda mais um pouco nas ruas da cidadezinha, chega a uma casa ampla, confortável; todas as luzes estão apagadas. Ele então entra na casa através de uma janela da cozinha. Vai, sem fazer barulho, até uma estante onde estão guardadas diversas armas.
Uma senhora idosa, Cookie (Patricia Neal, na foto acima), desce a escada no escuro e diz:
– “Willis, maldição, que susto você me deu!”
Um início de filme que dá pistas falsas para o espectador
Com maestria, a roteirista Anne Rapp (ela mesma autora do argumento) e a câmara de Altman haviam colocado pistas falsas para o espectador. É absolutamente natural que se pense que Willis, dado a uma bebida, que acabara de furtar uma garrafa de uísque no bar do amigo, estava invadindo uma casa para roubar.
Como dizia o chargista Carlos Estêvão, as aparências enganam. Não é nada disso. Willis e Cookie são amicíssimos; ele mora numa edícula no terreno da grande e confortável casa de Cookie. Invadiu a casa porque havia prometido a ela limpar as armas da coleção de seu falecido marido Buck naquela sexta-feira mesmo, e fazia questão de cumprir a promessa.
Cookie estava mesmo sem sono, e vão conversando, os dois, como velhos grandes amigos, enquanto Willis vai limpando as armas, uma por uma, cuidadosamente. Veremos que Cookie é parente de Camille, Cora e Emma.
Quando a limpeza das armas termina, Willis as coloca de volta no armário, cuja porta não fecha direito. Ele promete arrumar aquela porta no dia seguinte, e se despede de Cookie. Uma vez sozinha em casa, Cookie fala com Buck, o marido morto; vemos que ela morre de saudade dele, e que ela segura por um tempo uma das armas, um revólver.
Estamos aí com cerca de 15 minutos de filme, e já está posto que Cookie, embora alegre, ainda cheia de vida, não suporta a falta de Buck, e pensa em se matar.
Poderia virar um pesado drama sobre erro policial; é uma comédia suave, carinhosa
O que virá depois poderia se transformar num pesado drama sobre um erro da polícia e a acusação falsa a um inocente. Mas não foi a opção da roteirista e do diretor. Virá uma comédia suave, calorosa, cheia de carinho com aquelas pessoas simples e honestas que se gostam e tentam levar a vida em paz.
Todo o elenco está perfeito, impecável. São atuações excepcionais, de todos eles – Charles S. Dutton, provavelmente no melhor papel de sua vida,
Glenn Close, num papel que parece feito de encomenda para ela, e mais Julianne Moore (as duas na foto), Liv Tyler, Chris O’Donnell, Ned Beatty, Courtney B. Vance, Lyle Lovett.
O maior show, no entanto, é de Patricia Neal, como Cookie.
Quando vi o filme em 2000, fiz uma breve anotação, em que dizia: “No comecinho, eu falei: mas que velhinha maravilhosa essa que o Altman arranjou! – e só no fim vi que era Patricia Neal, a atriz fantástica que teve um derrame nos anos 60, quando estava na faixa dos 40, e cuja história de recuperação virou ela mesma um filme, com a ótima inglesa Glenda Jackson interpretando o papel dela. Nós sobrevivemos, Patricia Neal.”
Patricia Neal está soberba. Só por ela o filme já valeria, e muito.
Mas o filme vale por diversas coisas. Uma delas é a forma com que trata a questão racial. É uma maravilha: a Holly Springs que Anne Rapp e Robert Altman mostram, no Mississipi, Sul Profundo, é absolutamente pós-questão racial. Willis, negro retinto, é amicíssimo de Cookie, de Emma; pesca com o policial Lester.
Tem brancos na sua ascendência. Mas a cor da pele não tem a menor importância, entre aquelas pessoas, boas pessoas.
E isso num Estado em que a segregação racial era lei até 1964, apenas 30 e poucos anos antes.
Que absoluta maravilha!
Na trilha sonora, uma bela homenagem ao blues
Como é padrão nos filmes do realizador, a música é soberba. Altman usou a música country como tema central de Nashville; em Kansas City, um grande número de cobras toca jazz durante longas sequências. Aqui, num filme passado no Sul Profundo, ele homenageia o blues. A canção que a dona do bar interpreta na abertura, belíssima, será repetida nos créditos finais, em versão instrumental, sensacional.
Altman parece ter gostado do resultado de A Fortuna de Cookie. No ano seguinte, 2000, ele faria outro filme baseado em roteiro escrito por Anne Rapp, outra comédia, Dr. T e as Mulheres, com Richard Gere e um monte de atrizes belíssimas.
A Fortuna de Cookie é um desses filmes que dão imenso prazer a cada nova revisão. Uma maravilha.
Anotação em 2012
A Fortuna de Cookie/Cookie’s Fortune
De Robert Altman, EUA, 1999.
Com Charles S. Dutton (Willis Richland), Glenn Close (Camille Dixon), Julianne Moore (Cora Duvall), Liv Tyler (Emma Duvall), Chris O’Donnell (Jason Brown), Patricia Neal (Jewel Mae Orcutt, a Cookie), Ned Beatty (Lester Boyle), Courtney B. Vance (Otis Tucker), Lyle Lovett (Manny Hood), Niecy Nash (Wanda Carter)
Roteiro Anne Rapp
Fotografia Toyomichi Kurita
Música David A. Stewart
Produção Elysian Dreams, Kudzu, Moonstone Entertainment, Sandcastle 5 Productions. DVD FlashStar
Cor, 118 min
R, ****
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