3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: O Exército Inútil/Streamers, que Robert Altman dirigiu em 1983, é um bom filme, poderoso, fortíssimo, pesadíssimo. As interpretações são excelentes, os temas são importantíssimos: os preconceitos – raciais, sexuais –, a imbecilidade das guerras, a inutilidade dos exércitos, como entrega o título brasileiro.
Mas é também, na minha opinião, um filme difícil de se ver. Chato. Bom, mas chato. Chato, mas bom. Isso acontece.
É teatro filmado – e Altman não faz nenhuma questão de tentar “cinematografar” o teatro, muito ao contrário. E aqui é preciso dizer que não tenho nada contra teatro filmado; é apenas uma constatação. O cenário é um só, o tempo todo: o alojamento de um grupo de soldados dentro de uma base em território americano, à espera do momento de serem chamados para o embarque para o Vietnã. Os diálogos falam em L.B.J., Lyndon Baynes Johnson, portanto a ação se passa entre 1963 e 1969.
Os soldados que esperam a hora de embarcar para uma guerra do outro lado do mundo são garotos de uns 18, 19 anos, mal saídos da infância, ainda em plena adolescência. Deveriam estar na escola, estudando, aprendendo – passaram por treinamento duríssimo e estão aptos a matar.
Uma coreografia sem razão, feras prestes a explodir
A rigor, há duas seqüências que se passam fora do alojamento. Mas nelas não há ação. Funcionam como bookends, apoiadores de livros, abrindo e fechando a narrativa, nos créditos iniciais e nos créditos finais. São belíssimas imagens de um grupo de soldados fazendo aqueles exercícios com seus rifles (ou seriam fuzis? sei lá; tanto faz), aquela coisa coordenada, ensaiada, bem executada, ritmada. O diretor de fotografia descoloriu ao máximo essas seqüências; os soldados aparecem como silhuetas num ambiente enenovado. É meio um teatro de sombras chinês. “É uma bela coreografia”, comentou Mary. É, sim, uma belíssima coreografia, uma dança sem razão. É assim uma brincadeira de crianças que não têm mais o que fazer, uma brincadeira de escoteiros ao redor de uma fogueira inexistente – é a imagem acabada de uma entidade de fato inútil, sem proveito algum.
É um filme antimilitarista ao extremo, até a medula – e abençoado seja ele por isso.
Entre as duas seqüências de malabarismo circense, de coreografia de escoteiros, uns poucos personagens – na absoluta ociosidade, treinamento já completo, na total falta do que fazer a não ser esperar pela hora do embarque – falam, falam, falam. Bebem, falam. Na maior parte do tempo, se agridem, com palavras e às vezes também fisicamente. Há agressões perpetradas pelo próprio agredido: logo no início, um dos soldados corta os pulsos, e é socorrido pelo amigo Ritchie (Mitchell Lichtenstein, excelente, assim como todo o elenco). A tentativa de suicídio não chega a chamar a atenção de mais ninguém dentro do alojamento; naquele mesmo momento, dois sargentos se embriagam e preparam um detonador de bombas que vai explodir um traque junto do travesseiro de um soldado que dorme.
Ritchie é homossexual – e boa parte dos diálogos discutirá a questão dos bichas, veados, como dizem os próprios soldados. Dois deles são negros, e a questão da cor da pele também será discutida à exaustão, assim como a posição social que cada um dos soldados teve na vida lá fora do acampamento em que estão presos como feras prestes a explodir em ataques de violência.
“Longo, depressivo, um dos mais intensos dramas”
Fui a três dicionários, mas não consegui achar o que poderá significar Streamers, o título original do filme e da peça de David Rabe em que ele se baseia; o significado básico da palavra é apenas flâmula. Se algum eventual leitor bondoso quiser ajudar, serei bastante grato.
O filme passou em dois dos três maiores festivais internacionais de cinema, o de Cannes, onde foi exibido na mostra competitiva, e em Veneza, onde obteve um prêmio de interpretação para o conjunto de atores – que está, de fato, excepcional.
Foi o primeiro papel importante de Matthew Modine, então com 24 anos, mas carinha de 18. Três anos depois, em 1987, ele faria outro jovem convocado para treinar e lutar no Vietnã, em outro filme antimilitarista até a medula, Nascido para Matar/Full Metal Jacket, de Stanley Kubrick.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Um par de dias num alojamento no alvorecer do envolvimento americano no Vietnã se transforma numa parábola sobre macheza, morte e relações entre as raças. Longo e depressivo, mas ainda assim vale a pena ver o filme, com excelentes atuações.”
Roger Ebert diz que é “um dos mais intensos e íntimos dramas” que ele já viu no cinema. Ele comenta sobre a coisa de ser teatro filmado, e de Altman ter escolhido exatamente ficar dentro do mesmo cenário, aprofundar a coisa teatral. Admite que é um filme duro de se ver, e conta que, nas duas vezes em que assistiu ao filme, viu muita gente saindo da sala de exibição. Quem ficar, quem sobreviver às passagens difíceis de violência – diz ele –, será recompensado por um filme que no final é poético e comovente.
Um bom filme. Bom, mas duro demais, chato. Duro demais, chato, mas bom, importante, fortíssimo.
O Exército Inútil/Streamers
De Robert Altman, EUA, 1983
Com Matthew Modine (Billy), Michael Wright (Carlyle), Mitchell Lichtenstein (Richie), David Alan Grier (Roger), Albert Macklin (Martin), Guy Boyd (Rooney), George Dzundza (sargento Cokes),
Roteiro David Rabe, baseado em sua peça teatral
Fotografia Pierre Mignot
Produção Streamers International
Cor, 118 min
***
O comentário acima é contraditório. Um filme chato não pode ser bom. “O Exército Inútil” é uma porcaria de filme. As interpretações são boas, mas não salvam o longa-metragem, afinal, os diálogos, ainda que providos de crítica, são imbecis, mal feitos, sem nexo, sem estimular o espectador a entrar no embalo da obra, que, na verdade, é um sonífero, ridícula. Fico admirado com o fato de alguém gastar dinheiro filmando uma porcaria. Eu também não sou contra teatro filmado. Gata molhada em teto quente de zinco, com Elizabeth Taylor e Paul Newman, também é teatro filmado, mas os diálogos são bons, prendendo a atenção do espectador. O Exército Inútil, apesar de ter ganho prêmui no festival de Veneza pela interpretação dos atores, não prende a atenção. Ele toca em temas importantes. Reconheço a intenção de Altman. Ele quis fazer uma crítica. Acontece que ele escolheu o pior caminho para fazer isso. Um filme assim estimula o espectador a dormir. Eu mesmo não vi o filme todo. Comprei pensando que era um excelente filme e acabei vendo uma porcaria. Joguei o DVD no lixo. Lixo se joga no lixo. Filme não é só conteúdo: é também forma.
Caro Sérgio, confere lá nos diálogos se streamer não é uma gíria pra charuto, que, por sua vez, é como os soldados se referem ao paraquedista cujo pára-queda não abre na hora H. Acho que um soldado chega a dizer que viu uma vez um desses uma vez, um sujeito descendo, o pára-queda não abre, o soldado consegue ficar olho no olho com o futuro defunto. Não tem isso no filme? De onde eu tirei isso?
Vi há muuuuuuito tempo no cinema. Lembro. Isso quer dizer que não devo ter achado muuuuuito chato. Os muuuuuito chatos se apagam da minha memória.