360 é um brilho, uma maravilha. Um daqueles filmes que passam depressa demais, que o espectador não quer que acabe – e, quando acaba, a gente quer ver de novo.
Fernando Meirelles já não precisava provar que é um diretor de prestígio e respeito internacionais. Afinal, ele já havia feito O Jardineiro Fiel, com Ralph Fiennes e Rachel Weisz, baseado no romance de John Le Carré, e Ensaio sobre a Cegueira, baseado em José Saramago, com Julianne Moore, Mark Ruffalo, Gael Garcia Bernal, Alice Braga, depois do estrondoso sucesso de Cidade de Deus.
Com 360, me parece que Fernando Meirelles garantiu seu lugar entre os grandes realizadores da atualidade.
Seu terceiro filme feito acima do Equador é absolutamente global, internacional. E põe internacional nisso. É uma co-produção Inglaterra-Áustria-França-Brasil, falada em inglês, alemão, francês, árabe, português, russo e eslovaco. Há atores de diversas, diversas nacionalidades. Ouvem-se canções nas mais variadas línguas; há, por exemplo, uma versão russa da canção tema do filme Emmanuelle, e um Paulinho da Viola. A ação se passa em Viena, Bratslávia, Paris, Londres, Denver – e inclui uma rápida tomada no Rio de Janeiro.
É uma narrativa de estrutura multiplot, ou mosaico, à la Short Cuts, de Robert Altman. Por envolver pessoas de diversas nacionalidades, é uma espécie assim de Babel, do mexicano Alejandro González Iñarritu, ou de Além da Vida, de Clint Eastwood.
A menção a Além da Vida faz todo sentido: o autor do roteiro do filme de Clint Eastwood, Peter Morgan, escreveu o roteiro de 360.
E esse Peter Morgan é um sujeito bom de serviço. Nascido em Londres, em 1963, filho de um judeu alemão que escapou dos nazistas e uma polonesa católica que escapou do comunismo, é um dramaturgo e roteirista que tem em seu currículo os roteiros de Frost/Nixon, O Último Rei da Escócia, A Rainha e A Outra.
A rigor, a rigor, conforme se diz em vários sites na internet, 360 é – embora os créditos não digam isso – uma variação de Reigen, a peça escrita em 1897 pelo austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), em que dez pares de casais são mostrados antes e depois do ato sexual. A peça foi adaptada e filmada por Max Ophüls em 1950 como La Ronde. Diversas adaptações da idéia básica da peça de Schnitzler já foram feitas.
Dizer que 360 se inspira em Reigen/La Ronde não desmerece, de maneira alguma, o roteiro criado por Peter Morgan. É um roteiro brilhante. Tão brilhante quanto a realização final, orquestrada com mãos de mestre por Fernando Meirelles.
Uma jovem prostituta eslovaca, um executivo inglês, um francês de origem argelina…
Vou tentar fazer uma rápida apresentação dos principais personagens, seguindo mais ou menos a ordem de entrada em cena deles.
* Mirka (Lucia Siposová, na foto acima) é uma bela jovem da cidade de Bratslávia, a capital da Eslováquia, que, como tantas dos países ex-comunistas, se prostituem na Europa Ocidental. 360 começa com Mirka posando para um fotógrafo-cafetão em Viena, Rocco (Johannes Krisch). Essa figura nojenta botará fotos da moça na internet, oferecendo-a a seus clientes, figuras endinheiradas de passagem pela capital austríaca.
* Anna (Gabriela Marcinkova) é a irmã mais jovem, mais culta, mais letrada de Mirka. Ela acompanha a irmã mais velha nas suas viagens a Viena. Personagem coadjuvante no começo do filme – é apenas a acompanhante da irmã –, ela será protagonista quando a ronda de 360 graus pelo mundo globalizado estiver se aproximando do fim.
* Michael Daly (Jude Law) é o diretor de um empresa inglesa, que visita Viena a negócios. Ele requisita os serviços de uma profissional, e a escolhida será Mirka – o primeiro trabalho pago dela. Mas o surgimento de dois vendedores de uma empresa que pretendia fazer negócio com a firma de Michael (interpretados por Moritz Bleibtreu e pelo próprio roteirista Peter Morgan, este fazendo apenas uma pequena ponta), impedirá que o encontro com Mirka se concretize.
* Um francês de origem argelina cujo nome não aparece hora alguma (interpretado por Jamel Debbouze) está absolutamente apaixonado por uma mulher que trabalha com ele. Segue-a até o aeroporto Charles De Gaulle, apenas para vê-la por mais alguns instantes. Ele é viúvo, mas ela é casada, e ele, religioso praticante, temente a Alá, revira-se de remorso por estar perto de cometer um adultério.
* O objeto da paixão do franco-argelino chama-se Valentina (Dinara Drukarova). É uma russa que emigrou para a França, e está viajando para ver a irmã nos Estados Unidos. Veremos, bem adiante na narrativa, que ela é casada, desde muito jovem – num casamento hoje infeliz – com Sergei (Vladimir Vdovichenkov). Sergei é o motorista e guarda-costas de um mafioso russo (interpretado por Mark Ivanir).
* Rose (Rachel Weisz), dona de uma galeria de arte, é a mulher de Michael Daly. Tem um caso com um jovem fotógrafo brasileiro, Rui (Juliano Cazarré), e o sexo com o garotão é ótimo, mas Rose quer terminar a relação.
* As coisas não estão indo bem para Rui. No mesmo dia em que Rose comunica que quer acabar o caso, sua namorada, Laura (Maria Flor, na foto abaixo), que havia descoberto a traição, resolve voltar para o Brasil. E de fato se encaminha para voltar, mas via Denver, nos Estados Unidos. No avião, senta-se ao lado de um senhor inglês.
* O senhor inglês que viaja ao lado de Laura se chama John (Anthony Hopkins). Tem uma história trágica. A filha, uma jovem provavelmente da mesma idade de Laura, saiu de casa e desapareceu, nunca mais deu notícias à família. Os pais achavam que ela poderia ter ido para os Estados Unidos; deram queixa do desaparecimento, comunicaram à polícia de várias cidades americanas. A polícia de Denver havia encontrado uma moça morta que correspondia à descrição de sua filha, e John estava indo fazer a identificação do corpo.
* Tyler (Ben Foster) é um criminoso, autor de crimes sexuais. Sua pena está terminando, ele está prestes a sair; tratou-se na prisão, deseja se livrar da vida de predador sexual, trabalha para isso com a ajuda de uma profissional, Fran (Marianne Jean-Baptiste), mas teme recair diante das tentações do mundo lá fora. Logo que é solto, encontra-se, no aeroporto de Denver, com a brasileira Laura.
Uma história feita de acasos, coincidências, quadrilhas drummondianas
Desde garoto, sou apaixonado por histórias de rondas, de quadrilhas drummondianas, de encontros e desencontros, acasos, coincidências. Jacques Demy fez filmes com histórias assim, depois Claude Lelouch, depois Krzysztof Kieslowski. O roteirista Guillermo Arriaga adora esse tipo de história – é o autor do roteiro de 21 Gramas e Babel e ele mesmo dirigiu Vidas Que Se Cruzam/The Burning Plain, que, como o próprio título brasileiro indica, também é uma espécie de La Ronde, de Short Cuts. O alemão de origem turca Fatih Akin fez um belo filme circular envolvendo personagens na Alemanha e na Turquia, Do Outro Lado.
Têm ficado bem comuns histórias assim.
A história criada por Peter Morgan vai fundo nessas coisas todas. No aeroporto de Denver, John-Anthony Hopkins passa ao lado de Tyler-Ben Foster, sem que um conheça o outro, é claro. Numa reunião dos AA, estão presentes John e Valentina, a russa que mora em Paris.
Há uma tomada especialmente brilhante: a câmara mostra o carrão em que estão Sergei e seu patrão, o mafioso russo. Sergei havia feito uma pesquisa na internet à procura de uma prostituta de luxo para atender ao patrão durante uma estada dele em Viena, para onde estão indo agora. A câmara faz um zoom para trás e vemos que ela está colocada num ônibus, em que estão Mirka e sua irmã Anna.
Numa outra tomada especialmente brilhante, a câmara mostra, em um restaurante do aeroporto de Denver, em segundo plano o rosto angustiado de Tyler, o ex-predator sexual que não quer voltar ao crime, e, em primeiro plano, a nuca de Laura, a brasileira que, angustiada com a traição do namorado, um tanto bebinha, está fogosa, e levanta os cabelos negros.
E – só para citar mais um momento de extremo brilho – a fala de John-Anthony Hopkins contando a sua história na reunião dos AA, uma história que termina com uma frase deixada num bilhete para ele por Laura, a brasileira, é um primor de texto, uma maravilha antológica.
Um filme que oferece réstias de esperança, mesmo neste mundo maluco que criamos
Por duas vezes, os personagens do filme falam sobre encruzilhadas, estradas que se dividem em duas, como no poema emblemático de Robert Frost, “The Road Not Taken”: “Two roads diverged in a yellow wood, / And sorry I could not travel both / And be one traveler, long I stood / And looked down one as far as I could / To where it bent in the undergrowth”.
Mary, que deveria, ela sim, ter um site de filmes, observou que, em todas as múltiplas tramas do filme, se dá bem quem, na encruzilhada, no pedaço da estrada em que se divide em duas, faz o opção pelo que o coração está pedindo.
Fernando Meirelles e Peter Morgan fizeram um filme que, além de brilhante, oferece réstias de esperança, mesmo num mundo maluco, violento, duro, angustiante, como este que criamos.
Anotação em novembro de 2012
360
De Fernando Meirelles, Inglaterra-Áustria-França-Brasil, 2011
Com Lucia Siposová (Mirka), Gabriela Marcinkova (Anna), Johannes Krisch (Rocco), Jude Law (Michael Daly), Peter Morgan (vendedor 2), Moritz Bleibtreu (vendedor 1), Jamel Debbouze (o franco-argelino), Dinara Drukarova (Valentina), Vladimir Vdovichenkov (Sergei), Patty Hannock (a terapeuta), Rachel Weisz (Rose), Juliano Cazarré (Rui), Maria Flor (Laura), Ben Foster (Tyler), Marianne Jean-Baptiste (Fran), Anthony Hopkins (John), Mark Ivanir (o patrão de Sergei)
Roteiro Peter Morgan
Baseado na peça Reigen, de Arthur Schnitzler, não citada nos créditos
Fotografia Adriano Goldman
Montagem Daniel Rezende
Produção Revolution Films, BBC Films, Dor Film Produktionsgesellschaft, Gravity Entertainment, Muse Productions, O2 Filmes, ORF Film/Fernseh-Abkommen, Unison Films. DVD Paris Filmes.
Cor, 110 min
***1/2
Eu também gosto bastante desse tipo de filme, e ao mesmo não gosto porque ele não se aprofunda em nenhum personagem. Enfim, assisti e gostei, mas dos filmes dele acho que ainda prefiro O Jardineiro Fiel.
A super Mary tem toda razão. O coração quer o que ele quer, e acho que não se engana.
Sobre a trama só vou falar sobre o muçulmano, que perdeu talvez a grande chance da vida dele, a de ser feliz com alguém, por puro fanatismo. Ela nem casada estava mais. Que dó.
Pontos que considerei negativos: a escolha de atores brasileiros ruins. Já conhecia o trabalho dos dois, são fracos.
Até quando vão ficar escalando atores mais velhos para representar personagens bem mais jovens? Acho que quando o ator/atriz tem um rosto que aparenta menos idade, tudo bem, mas quando não tem, o que é o mais natural, fica ridículo. Juliano Cazerré aparenta seus 32 anos, e não os 25 do filme. A atriz que faz a prostituta tem claramente mais de 30 também, mas ninguém começa essa “carreira” aos 30, acho que teriam que ter escalado alguém mais jovem.
Maria Flor em vez de aproveitar a oportunidade, talvez única, de contracenar com sir Anthony Hopkins, parecia que estava rodando um filme da Xuxa, bastante aquém do que o papel pedia, e do drama que se desenrolou. Para mim ela parece fazer sempre o papel dela mesma. Mas a curta amizade da personagem dela com o do Hopkins foi o que me emocionou.
Curiosidades que li sobre o filme e considero interessantes: o Fernando Meirelles disse que tinha um pouco de medo do Anthony Hopkins, mas que ele revelou ser uma pessoa de bem com a vida e muito gentil. Falou que ainda se surpreende por quererem trabalhar com ele, por causa da sua idade.
A história que o personagem dele conta é real, é a história dele, só não sei até que ponto. Ele é alcoólatra e tem uma filha.
O Ben Foster é conhecido por ser um “ator do método”, do tipo que incorpora o personagem até o final da filmagem. O diretor disse que ele chegou dez dias antes de começaram a rodar, e era como se ele fosse mesmo um criminoso sexual saído da cadeia. Não cumprimentava nem a Maria Flor, passava por ela direto. Segundo o Meirelles, em três anos, ele vai ser o cara.
Voltei pra esclarecer que fiquei com dó da mulher que estava a fim do muçulmano, a Valentina; não fiquei com dó dele. Ela já estava preparada psicologicamente pra ter um relacionamento com ele, mas levou uma rasteira, foi empurrada do 15º andar. Ele estava em conflito, e optou pelo fanatismo.
Sérgio, acho que ocorreu um erro de digitação: o nome do filme você certamente sabe que é 21 Gramas.
Jussara, querida, muito obrigado por tudo: pelas opiniões, sempre interessantes, inteligentes, pelas informações – e pela correção do meu erro de digitação. Você é bárbara.
Um abraço.
Sérgio
Também gostei muito do filme mas,o que não gostei,não é exatamente o fato de ele não se aprofundar em alguns personagens (alguns até sim)mas notar que algumas histórias ficaram mal terminadas.São muitos personagens – Uma prostituta,um gangster,um religioso fanático um executivo,sua esposa,a irmã da prostituta
um criminoso sexual e, outros mais.
Será que foi isso? Faltou tempo para dar acabamento à todos? Foi proposital? Ou fazia parte do roteiro,cabendo a nós, darmos o nosso final,à essas histórias tal qual um filme com final em aberto?
Achei que o personagem do Ben Foster devería ter uma participação maior,é um grande ator.
Lembro dele em “refém” e “o mensageiro”.
Também achei a Maria Flor bem fraquinha;não soube aproveitar a chance de atuar ao lado desse “monstro” Hopkins. Aquela cena na reunião dos AA,Hopkins brilhou demais.
Como eu disse,gostei deste filme mas gostei mais de ” O jardineiro fiel ” e ” Ensaio sôbre a cegueira “.
Caríssimo Sérgio,
Eu que agradeço tantos bons elogios (elogios só podem ser bons, mas a redundância é proposital) que nem sei se mereço (elogios de amigo são suspeitos). Isso que é começar o ano com o pé direito!
Abraços.
Ivan,
Geralmente um filme desse tipo é assim mesmo. Neste caso, ele quis mostrar a decisão dos personagens quando eles se viram à frente de um caminho com bifurcação. Cada um tomou sua decisão, e dali em diante seguiu com sua vida; mas não tem como o filme dizer o que veio depois. Isso só foi mostrado no caso do personagem do Jude Law, que voltou às boas com a mulher. Como o giro é de 360 graus, e a história começou com ele, nada mais natural que terminasse com ele também.
Jussara,
Valeu pelo esclarecimento; acredito que é isso mesmo que voce disse.
Exatamente como dizes, a história do Jude Law com a esposa teve acabamento mas, é como dizes também,começou com ele termina com ele.
Aliás, de todas as histórias foi a que achei mais fraquinha.
Fôste exata sôbre a Valentina,foi uma baita de uma rasteira,um tombo lá das alturas,o cara puxou o tapete dela com jeito …
Obs: vou além do Meirelles,para mim, o Ben Foster já é o cara.
Assim como o Sergio, gosto muito de ler teus comentários, Jussara. Eu disse certa vez aqui no site, que voce enxerga longe.
Um abraço, amiga. Mais uma vez, valeu !!