Anotação em 2011: No seu filme de 2009, entre muitas outras coisas Woody Allen a) mostra que continua genial; b) faz uma gigantesca gozação da persona que ele criou, seu Carlitos, o Judeu Nova-Iorquino Intelectual Neurótico; c) bota – coisa rara – um outro ator para fazer o papel da persona Woody Allen; d) retoma seu tema da paixão entre o homem bem mais velho e uma garotinha; e) reafirma sua velha crença em que, os livros de auto-ajuda e os psicólogos que nos desculpem, mas nas questões de amor é necessária uma boa dose de sorte.
Vou tentar explicar e justificar as afirmações feitas nos itens b a e. Quanto ao item a, esse, claro, é controverso. Há muita gente – e muita gente boa – que não suporta Woody Allen, que o considera um cineasta superestimado, overrated. Se fosse criada a comunidade Eu Odeio Woody Allen, seguramente teria tantos membros quanto William Bonner tem seguidores no Twitter. Vários odiadores de Woody Allen já registraram sua posição neste site.
Então, sobre o item a, é isso aí – cada um, cada um; gosto e cor não se discutem. Eu sou da outra parte da humanidade, e portanto os odiadores de Woody Allen não têm por que ler este texto.
Vamos aos outros itens.
Uma das mais longevas personalidades já criadas no cinema
O Judeu Nova-Iorquino Intelectual Neurótico. Essa é uma das mais duráveis, longevas personalidades já criadas no cinema. Talvez de fato só Carlitos, o vagabundo criado por Charles Chaplin, tenha aparecido em mais filmes do que a persona criada por Allen. Embora possua diferentes nomes – Alvy Singer em Annie Hall, Isaac Davis em Manhattan, Sandy Bates em Memórias, Mickey em Hannah e Suas Irmãs, Lenny em Poderosa Afrodite, Joe Berlin em Todos Dizem Eu Te Amo, para dar só alguns exemplos –, o personagem é sempre o mesmo, tão nítido e claro como o Carlitos de Chaplin, o Monsieur Hulot de Jacques Tati.
Os gauleses das histórias de Astérix e Obélix têm medo de que o céu lhes caia sobre as cabeças. O Judeu etc de Woody Allen tem todos os medos possíveis e imagináveis: de uma doença fatal, do fim do universo, das manchas solares, de qualquer coisa. Tem pouquíssimas certezas firmes, e vive mergulhado em dúvidas cruéis a respeito de tudo – a existência de Deus, o significado das religiões, o sentido da vida. E fala muito. Fala sem parar, torrentes de palavras jorrando de sua boca por segundo, um Niágara de considerações a respeito de tudo enchendo os ouvidos de quem está por perto – e também do espectador, é claro.
Em Tudo Pode Dar Certo/Whatever Works, o Judeu etc se chama Boris Yelnikoff; é, ou foi, no passado, um físico importante, que chegou a ser cotado (ou pelo menos acha que chegou) para o Nobel. Atualmente, na época em que se passa a ação, é o que os americanos chamam, com dura crueza, de has been, o que já foi, o que hoje não é nada – vive de dar aulas de xadrez para crianças, as quais trata pessimamente, da maneira mais grosseira possível. É o pessimista de plantão, o intelectual chato que se acha genial e pensa cque todo o mundo ao redor dele é débil mental, imbecil, cabeça de minhoca. Não crê em Deus, em religião alguma, em ideologia alguma. Logo que a ação começa, vemos Boris discutindo com alguns amigos no bar. É assim:
Boris: – “Não é isso que eu estou dizendo, imbecil. Vocês interpretam de forma completamente errada as minhas idéias. Nem sei por que converso com esses idiotas.”
Um amigo de Boris: – “Calma lá.”
Outro amigo: – “Não é verdade, Boris.”
Boris: – “Não me diga pra eu ter calma. Eu estou calmo. Pára com isso.”
Um amigo: – “Não venha pra cima de nós só porque não entendemos o que você está dizendo.”
Boris: – “Não estou indo pra cima de vocês. Não é a idéia por trás do cristianismo que estou criticando, ou do judaísmo, ou de qualquer religião. São os profissionais que as transformaram em negócio de grandes corporações.”
E aí expõe uma síntese do que pensa da vida:
– “Os ensinamentos básicos de Jesus são bem bonitos. Assim como era, aliás, a intenção original de Karl Marx. O que poderia dar errado? Todos vivendo em igualdade. Fazer pelos outros. Democracia, o povo governando. São ótimas idéias, todas elas, mas todas sofrem de uma falha fatal. Todas elas são baseadas na idéia falaciosa de que as pessoas são, essencialmente, decentes. De que não estúpidas, egoístas, gananciosas, covardes e pequenas.”
Woody Allen ri da própria persona que criou
Em suma: Boris é aquele tipo do chato de galocha que acha que a humanidade é um invenção que não deu certo mesmo e não tem jeito – e vive repetindo isso o dia inteiro para quem passar pela sua frente.
Boris Yelnikoff é muito parecido com a persona interpretada por Woody Allen em tantos outros de seus filmes, os Alvy Singer, Isaac Davis, Sandy Bates, Mickey, Lenny, Joe Berlin. Só que é exagerado em tudo – é exageradamente chato, exageradamente pessimista, exageradamente mal-humorado. É até exageradamente mal vestido, exageradamente desleixado, usa umas bermudas horrorosas, umas camisetas velhas, surradas, feias demais.
É Woody Allen gozando a persona que ele mesmo criou e interpretou ao longo de várias décadas, tirando sarro da cara do personagem, rindo do patético que ele é.
Até porque, com todo seu pessimismo, seu humor terrível, sua grosseria, sua falta de educação, sua eterna xingação de que o interlocutor é burro, idiota, imbecil, sua chatice atroz, Boris Yelnikoff terá sortes na vida. Sortes grandes.
O próprio cineasta poderia perfeitamente ter interpretado Boris Yelnikoff. Preferiu botar sua persona na pele de outro ator, Larry David. Larry David fala depressa como Woody Allen, gesticula como Woody Allen – só que consegue ser mais feio ainda que Woody Allen.
Que eu me lembre, em apenas um outro filme, além deste Tudo Pode Dar Certo, Allen botou outro ator para fazer o papel da persona que ele criou. Foi em Celebridades/Celebrity, o filme de 1998 – e, em Celebridades, o nova-iorquino intelectual neurótico foi interpretado por um sujeito boa pinta, o excelente ator e diretor inglês Kenneth Branagh.
Larry David, um homem da TV americana
Nunca tinha ouvido falar em Larry David. É um homem de TV; foi um dos criadores da série Seinfeld, lançada em 1990, que teve nove temporadas de grande sucesso. Foi também o criador da série Curb Your Enthusiasm, lançada em 2000, já com oito temporadas também de grande sucesso. Antes, muito antes, em 1975, foi um dos autores de textos de Saturday Night Live, um dos programas de maior audiência da TV americana. Como Woody Allen, é judeu, nova-iorquino, escritor, comediante. Embora pareça ter a mesma idade que Allen, é bem mais jovem – nasceu em 1947, e Allen é de 1935.
Depois da discussão transcrita acima, Larry David-Boris Yelnikoff anda um pouco na calçada do bar onde estava com os amigos e fala com a câmara, dirige-se diretamente ao espectador. Conta um pouco da sua história. Uma bela madrugada, algum tempo atrás, ele havia acordado às 4 horas com profunda ansiedade. Seus gritos acordaram sua mulher, Jessica (Carolyn McCormick); os dois discutiram, e aí Boris correu para a janela do apartamento, pulou – e sobreviveu! A queda foi amaciada por um toldo; ficou meses no hospital, saiu de lá manco e puto da vida com os médicos que o deixaram manco.
Depois disso, lá se foi o casamento com Jessica, uma mulher que ele havia conhecido na Universidade de Chicago, “de Q.I. alto e decote baixo”.
Dá para se prever o que vai acontecer entre o velho chato e a gatinha
Embora Boris não mereça – afinal, é um chato de galocha, presunçoso, que se acha o único cara do mundo que tem a perspectiva correta do grande quadro da vida –, a sorte o trata bem. Voltando para seu apartamento simples e um tanto favelento, num fim de noite, topa com uma garotinha tentando dormir no meio de sacos de lixo na calçada. Tem o fantástico nome de Melodie Saint-Anne Celestine (Evan Rachel Wood), herança de algum ancestral francês de Nova Orleans. Melodie fugiu de casa, em uma pequena cidade do Mississippi, Sul Profundo e atrasado, para ficar livre da mãe e do pai religiosos fanáticos. Tem – ou diz que tem – 21 anos de idade; acabou de chegar a Nova York, não conhece ninguém, não tem onde ficar – e acaba ficando no apartamento de Boris.
Estamos aí com uns 15 minutos do filme que tem os regulamentares 92: quase todos os filmes de Woody Allen têm isso, cerca de uma hora e meia, só, que passam depressa demais, sem que a gente perceba.
O que vai acontecer entre Boris, o pentelho já passado da meia-idade, e a gatinha Melodie, dá para se prever, embora seja um tanto estranho, um tanto difícil de o senso comum aceitar como normal. Mas, sendo um filme de Woody Allen, dá para se prever. Afinal, em Manhattan, de 1979, Isaac Davis já estava passando da meia-idade, e uma gatinha extraordinariamente bela, de apenas 17 anos de idade, Tracey, que vem na pele de Mariel Hemingway, apaixona-se perdidamente por ele. Woody Allen já estava com 66 anos quando fez o papel do investigador da companhia de seguros CW Briggs em O Escorpião de Jade, de 2001 – e CW Briggs esnoba ninguém menos que Charlize Theron, mas deixa apaixonadinha a personagem de Helen Hunt, então com 38. E a jovem deusa Scarlett Johansson, que trabalhou com ele em três filmes de sua recente fase européia – Match Point, de 2005, Scoop – O Grande Furo, de 2006, e Vicky Cristina Barcelona, de 2008 – deu entrevistas dizendo que achava o velhinho muito sexy.
Claro: mais importante ainda que as paixões dos personagens de Woody Allen por garotinhas bem jovem é a paixão do próprio artista. Allen chocou o mundo quando se tornou público seu caso com Soon-Yi Previn. Choveu todo tipo de crítica sobre ele: como pode um homem de mais de 50 anos abandonar a então mulher, Mia Farrow, para ficar com a filha dela? Na época, falou-se muito em incesto, mas nunca houve incesto ali: nascida na Coréia, Soon-Yi havia sido adotada por Mia Farrow e o compositor Andre Previn, quando os dois eram casados. Não havia ali laço de sangue algum, portanto não havia incesto algum.
Allen e Soon-Yi casaram-se em 1997, quando ela estava com 24 anos e ele com 62. (Nada que um Michel Temmer não tenha feito, embora comparar Allen a Temmer seja um insulto ao artista genial.) Continuam casados hoje, 14 anos depois.
Ao traçar o destino de seus personagens, Allen imita a divindidade
Já o caso do chato de galocha Boris com a gatinha bonitinha Melodie…
Não teria sentido adiantar o que acontece entre Boris e Melodie – seria spoiler. O que dá para dizer sem risco de atrapalhar quem ainda não viu o filme é que Woody Allen reservou para a segunda metade do filme muitas surpresas – ou, se não propriamente surpresas, belas reviravoltas. Surgem novos e ótimos personagens – e a ótima Patricia Clarkson (na foto) dá um show.
É fantástico como o contador de histórias e roteirista Woody Allen não se cansa nunca, como se mantém em forma, na criação dos personagens, na criação das tramas, na criação dos diálogos fantásticos, afiados, inteligentes, que caem sobre nossas cabeças na velocidade das águas do Iguaçu chegando perto do Paranazão.
Ao traçar o destino de seus personagens, Allen imita a divindade – ou, para quem não acredita nela, o acaso, o azar, o hasard, a sorte: mostra que, sim, é isso mesmo. Nas histórias de amor, é preciso uma boa dose de sorte.
Grande Woody Allen. Já lá se vão mais de quatro décadas, e a cada ano ele nos premia com uma beleza de filme.
Tudo Pode Dar Certo/Whatever Works
De Woody Allen, EUA, 2009
Com Larry David (Boris Yellnikoff), Evan Rachel Wood (Melody), Ed Begley, Jr. (John), Patricia Clarkson (Marietta), Conleth Hill (Leo Brockman), Michael McKean (Joe), Jessica Hecht (Helena), Christopher Evan Welch (Howard), Henry Cavill (Randy James), Carolyn McCormick (Jessica), John Gallagher, Jr. (Perry)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Harris Savides
Montagem Alisa Lepselter
Direção de arte Santo Loquasto
Produção Sony Pictures Classics, Wild Bunch, Gravier Productions, Perdido Productions. DVD Califórnia. Estreou em SP 30/4/2010
Cor, 92 min
***1/2
Eu sou da parte da humanidade que não só considera WA um gênio como é grata por todo fôlego e generosidade que ele tem de fazer, ano após ano, filmes bons, instigantes, adultos. Uma das coisas que mais gosto é justamente dos personagens verborrágicos que não nos permitem piscar, não permitem um segundo de distração. Faz mágica, este Woody (ontem estive revendo Vicky…ok, eu arrasto a asa pro javier bardem)
PS. Nota-se pelo comentário que não vi o filme, mas sou compulsiva na fala, ne?
PS2. Não é linda esta Patrícia Clarkson? que sorriso que ela tem…
Momento confissão: acho super plausível todos estes amores de gatinhas e cinquentões/sessentões. Não que eu seja (ou tenha sido) gatinha em qualquer época. Mas fui jovem. Tinha 17 anos e ele 52. E ficamos juntos e felizes até que eu ter 18 e meio e ele um Doutorado na França 😉
Este aqui, assisti na tarde de ontém.
Então foi isso que dizes lá no comêço deste texto, Sergio, que aconteceu comigo.
Eu passei o filme inteiro vendo o Allen na pele do Boris. Era ele quem estava ali.
Foi uma coisa incrível !!!!
Para quem como eu, há pouco tempo, não havia visto um filme de Allen, hoje já são vários que vi (alguns estão aqui no site) e, me tornei um fã desse gênio.
Uma ótima comédia cheia de sarcasmo e ironia.
Como pode não é, um sujeito com um QI acima da média, ser tão neurótico e cheio de frustrações. Fica enfurnado dentro de casa escutando musica clássica (isso é bom) mas reclamando de tudo e de todos.
Como não podia deixar de ser, em filmes do Wood, os diálogos são maravilhosos.
Como sempre a Patricia Clarkson está muito bem e, como diz a Luciana, muito bonita.
A Evan Rachel é que já não tem mais essa pinta de “môça ingênua”.
Super legal,o cara se descobrir gay já coroa e, a Marietta, passar a viver um ménage à trois. Como diria Paulo Gracindo em uma certa novela, “coisas de Laurinha”. Aqui, “coisas de Wood Allen”.
O Larry David, nossa, dispensa comentários, o cara esteve soberbo, magnífico !!
Filme para se aplaudir de pé.
Um abraço, Sergio !!
Alguém precisa dar ao Woddy Allen a idéia de fazer um filme sobre a boiada facebunda, big brother etc. Sairia totalmente do aquário dele, mas, se ele conseguisse, aposto que ficaria demais!
Adoro suas resenhas tanto quanto adoro Woody! Tenho que dizer que antes ou depois de ver qualquer filme corro pra cá!
Acho incrível como WA consegue por tanto tempo bater na mesma tecla e ainda sim chamar minha atenção! Esse personagem é divertidíssimo e Larry o interpreta como se fosse o próprio diretor!!
PS.: quando comecei a me interessar por filmes, principalmente pelos do WA, adorei saber desse site que além de ótimas observações, ama ele do mesmo jeito que eu!!!
Entrevista de 1976 na qual o diretor afirma “tenho a mente aberta quanto ao sexo. Eu não estou acima de reprovação; eu pertenço à reprovação. Quer dizer, se eu for pego num ninho de amor com quinze garotas de 12 anos amanhã, as pessoas pensariam, ‘é, eu sempre soube isso dele’ (…) Nada que poderia ser revelado surpreenderia ninguém. Eu admito isso mesmo.” Citado em http://maetempo.net/2014/02/08/incesto-e-abuso-sexual-na-infancia-de-woody-allen-a-realidade/