Anotação em 2011: Nunca tinha visto, mas sempre tinha amado Trinta Anos Esta Noite/Le Feu Follet, um dos primeiros filmes de Louis Malle, com Maurice Ronet como o belo homem que uma manhã, às vésperas de seus 30 anos, anuncia para si mesmo que vai se matar.
Há alguns poucos filmes assim, dos quais ouvi falar demais quando era adolescente, mas, por algum motivo, não vi na época. Ouvia falar deles, sabia do que tratavam, via as fotos – mas só fui ver décadas e décadas depois.
Trinta Anos Esta Noite era um deles. Le Feu Follet – fogo-fátuo, falso brilho, glória passageira.
É muito estranho ver só agora, quase 50 anos depois, um filme que a gente nunca viu mas sempre amou.
É dificílimo fazer uma avaliação equilibrada. Bem, mas acho que nunca fiz mesmo avaliação equilibrada hora alguma da vida.
O protagonista é para mim um ser de outro mundo, mais distante que um chinês ou marciano
É ainda hoje um grande filme, feito com imenso talento. Naturalmente, exibe de forma clara a marca da época em que foi feito, no que isso tem de maravilhoso, esplendoroso, e também no que tem de ruim, de aparência um tanto datada.
Trata, em boa parte, de um tema de importância eterna, e que me é muito próximo, o alcoolismo, a dependência do álcool.
Mas, de alguma maneira, o personagem central, o Alain Leroy interpretado por Maurice Ronet, me parece uns mil anos-luz distante, um ser de uma civilização que não consigo compreender, mais distante do meu mundo que um chinês, um marciano, um saturniano.
Alain Leroy é jovem, belo, foi admirado pelos homens e seduziu muitas mulheres; tem dívidas, mas não passa nem jamais passou por privação material alguma. No entanto, é depressivo, autodestrutivo; não trabalha, jamais trabalhou – o máximo de esforço que fez na vida foi tentar escrever um diário que jogou fora. Recusa-se a aceitar o passar dos anos, recusa-se a aceitar a idéia de ficar maduro. Diz que não consegue tocar as pessoas – e a verdade é que não faz qualquer esforço para isso, enredado em seu próprio umbigo, incapaz de enxergar um palmo à frente do nariz.
E assim Alain Leroy me pareceu hoje um ser tão distante, tão estranho, quanto se fosse um chinês ou um uraniano. Não consigo compreender seus valores.
A sensação que tive é de que Alain Leroy só existe na cabeça de um tipo de escritor e/ou cineasta francês – o sujeito que acha tudo na vida ruim, que se aborrece, que se condena ao tédio, a l’ennui.
Na minha opinião, só sente tédio quem é imbecil – e portanto na verdade Alain Leroy, além de ser para mim estranho, incompreensível, de um universo distante, me parece também um chato.
Jovens que dissipam a vida, a juventude, em doses industriais de bebida e desalento
Alain Leroy é um parente próximo de muitos dos personagens de F. Scott Fitzgerald, aqueles jovens dos anos 20 e 30 que dissipavam a vida, a beleza, a juventude e o conforto material em doses industriais de bebida e desalento.
A comparação dos personagens de Fitzgeral com o do livro de Pierre Drieu La Rochelle, que deu origem ao filme de Louis Malle, é muito óbvia. E Malle ainda faz questão de citar expressamente o grande autor americano pelo menos duas vezes: no belo, amplo quarto da clínica de repouso em que Alain está vivendo, há um exemplar de Babylon Revisited – o nome de um conto de Fitzgerald, exatamente sobre Paris, e de uma coletânea de suas histórias; e um personagem contará que Alain gostava de falar de Fitzgerald.
O estranho nisso é que desde adolescente sou apaixonado pelos personagens de Fitzgerald. Se é assim, por que então achei Alain, tão parecido com eles, um sujeito tão distante?
Bem, certamente terão sido os quase 50 anos que se passaram. É bem possível que eu tivesse me identificado com Alain, se o tivesse conhecido quando era bem jovem. Mas não o conheci – ouvi falar muito do filme, mas só vim a de fato conhecer o personagem agora.
“Vou deixar você com seu pior inimigo: você mesmo.”
Trinta Anos Esta Noite mistura belíssimo cinema – longos momentos sem fala alguma, imagens maravilhosas, estupendas, com a fotografia em esplendoroso preto-e-branco do mestre Ghislain Cloquet – com boas doses de literatura. São muitas as frases marcantes, impressionantes, que os personagens falam.
Quando a ação começa, Alain está abraçado na cama a Lydia (Léna Skerla, na foto acima). A primeira tomada que surge é um close-up do rosto de Lydia; depois teremos um close-up do rosto de Alain. É a primeira noite que Alain passa fora da clínica de repouso em Versailles em que trata do alcoolismo – faz quatro meses que ele não bebe. Levantam-se bem cedo na manhã seguinte: ele precisa voltar à clínica, ela tem algumas providências a tomar antes de embarcar de volta para Nova York, onde mora.
É na conversa entre Alain e Lydia que começamos a saber um pouco da vida dele. Alain é casado com Dorothy, uma americana; viveram em Nova York, não se vêem faz seis meses, há quatro meses ele está se tratando na clínica de Versailles, longe das tentações de Paris, como ele mesmo dirá. (E nesse detalhinho vai uma marca de que o tempo passou, de 1963 para cá: hoje, com o crescimento da cidade, Versailles foi engolida pela Grande Paris. No filme, é distante das tentações da cidade.)
O casamento de Alain e Dorothy ainda não acabou oficialmente. Foi Dorothy que deu a Lydia o endereço da clínica em que Alain estava internado. Lydia, como muitas outras mulheres que vão aparecer no filme – interpretadas por belas atrizes, Jeanne Moreau e Alexandra Stewart inclusive –, foi no passado apaixonada por Alain.
Alain pede a Lydia que não volte para Nova York, que fique com ele; confessa que precisa dela. Ela responde que não pode ficar, que tem compromissos. E acrescenta:
– “Estou deixando você com seu pior inimigo: você mesmo.”
Em seu quarto na clínica, Alain recebe a visita do médico. Ele está convencido de que Alain está curado – Alain, e também o espectador, a esta altura, sabem que ele não está. O médico pergunta:
– “Você ainda tem aquelas sensações de ansiedade?”
E Alain: – “Não são sensações de ansiedade, doutor. É uma ansiedade única, uma angústia perpétua.”
“Envelheci. As esperanças se foram, mas tenho certezas, agora.”
No dia seguinte – toda a ação do filme se passa ao longo de três dias –, Alain vai a Paris. Revê o bar de hotel em que passou muitas horas da vida, vai visitar o amigo Duborg (Bernard Noël), agora casado com Fanny (Ursula Kubler), que tem duas filhas. Conversam longamente – Alain está chocado com o antigo companheiro de noitadas e farras, agora, segundo ele, preso a um casamento burguês, uma vida sem qualquer graça. Copiei um trecho do diálogo:
Alain: – “Mas você não se entendia?”
Duborg: – “Fanny e suas filhas, a casa que a você parece velha, são parte da minha paixão.”
Alain: – “E o velho brilho nos seus olhos? Sua enorme energia?”
Duborg: – “Eu envelheci. Sim, envelheci. As esperanças se foram, mas tenho certezas, agora. Deixei minha juventude para outra vida. Você vira as costas e recusa a maturidade. Vive preso à adolescência. Daí a sua ansiedade.”
Alain: – “Eu me recuso a envelhecer.”
Duborg: – “Você chora sua juventude como se ela tivesse sido plena.”
Alain: – “Ela foi uma promessa. E também uma mentira”.
O espectador sente na pele a angústia que vai crescendo em Alain
Há muitos diálogos assim, fascinantes, belíssimos, literatura pura, neste filme feito por um diretor então muito jovem – Malle estava com 31 anos, praticamente a idade de seu personagem. Mas há também, repito, longas seqüências sem uma palavra sequer, de uma beleza impressionante. A sequência em que Alain se senta em um café na calçada, conversa com dois amigos, e depois fica ali sozinho, quando os amigos se levantam e vão embora, é maravilhosa, acachapante. Malle e seu diretor de fotografia Ghislain Cloquet focalizam as pessoas que passam pela rua, que estão sentadas no café parisiense, e o espectador sente na pele a angústia que vai crescendo em Alain.
Maurice Ronet, com aquele rosto de deus grego, tem uma interpretação absolutamente memorável.
E é fascinante ver Jeanne Moreau, ainda bem jovem (ela estava com 35 anos), ao lado de Maurice Ronet – os dois já haviam trabalhado juntos em Ascensor para o Cadafalso, em 1958, o primeiro longa-metragem de Louis Malle. No mesmo ano de Le Feu Follet ela faria com Malle Os Amantes, um escândalo na época, e um imenso sucesso de público e crítica que marcaria a carreira de ambos.
Malle percebeu a tempo que seu filme não poderia ser em cores
Trinta Anos Esta Noite foi apresentado em competição no Festival de Veneza, e ganhou o prêmio dos críticos italianos; Malle levou o prêmio especial do júri.
Um detalhinho que vejo no iMDB: Malle chegou a filmar umas poucas cenas em cores, mas logo mudou de idéia e fez o filme em preto-e-branco. Ainda bem. O filme simplesmente não poderia ser em cores.
Um detalhinho que se pode ver nos créditos iniciais: Volker Schlöndorff, depois um bom cineasta alemão, foi o assistente de direção de Malle.
Toda a música que aparece filme é de Erik Satie – no quarto de Alain na clínica, aparece um disco com obras de Satie. Um dos temas mais recorrentes é a “Gnossienne No. 1”, que Alexandre Desplat incluiria na trilha sonora de O Despertar de uma Paixão/The Painted Veil, de 2006.
Não encontro crítica de Pauline Kael sobre o filme.
A sinopse de Leonard Maltin é surpreendentemente acurada – Maltin não é de acompanhar muito bem os filmes europeus, mas deu a devida importância a The Fire Within, como o filme se chamou nos Estados Unidos. Deu 3.5 estrelas em 4: “Perturbador estudo do alcoolismo, enquanto Ronet, saído de um sanatório, visita seus velhos amigos em Paris pela última vez. Provavelmente o melhor dos primeiros filmes de Malle – com a fotografia, a trilha sonora (com a música de Erik Satie) e as interpretações obtendo o máximo de efeito, e com o mínino de auto-piedade”.
Diz o Dicionário de Filmes de Georges Sadoul: “O romance se passa em fins dos anos 1920. Louis Malle o transpôs para a Pariz de 1963, por onde erra um burguês deslocado, desesperado, alcoólatra. Sentido muito agudo da atmosfera e dos personagens. Maurice Ronet identificou-se de forma dilacerante com seu pobre herói”.
O Guide des Films de Jean Tulard demonstra encantamento pelo filme bouleversant – e bouleversant, meu Deus, é muito mais bonito que suas traduções perturbador, assombroso, espantoso, estupendo. “Uma das grandes realizações de Louis Malle. A busca angustiante de si mesmo e dos outros, essa incapacidade de viver, são realizadas através dos meios mais simples, mas terrivelmente eficazes: a decoração do quarto de Alain, as iluminações da Paris noturna, a utilização da voz em off, close-up sobre o rosto doloroso de Maurice Ronet… Um filme pungente, que nos toca no mais profundo, mesmo se seu lastimável ‘herói’ não passa, em suma, de um dandy cheio de veleidades.”
Depois desse texto – bouleversant como o filme –, não há mais absolutamente nada a dizer.
Trinta Anos Esta Noite/Le Feu Follet
De Louis Malle, França, 1963
Com Maurice Ronet (Alain Leroy), Léna Skerla (Lydia), Yvonne Clech (Mademoiselle Farnoux), Hubert Deschamps (D’Averseau), Jean-Paul Moulinot (Dr. La Barbinais), Mona Dol (Madame La Barbinais), Pierre Moncorbier (Moraine), René Dupuis (Charlie), Jeanne Moreau (Eva), Alexandra Stewart (Solange)
Roteiro Louis Malle
Baseado no romance de Pierre Drieu La Rochelle
Fotografia Ghislain Cloquet
Música Erik Satie
ProduçãoNouvelles Éditions de Films. DVD Lume
P&B, 108 min
***1/2
Título em inglês: The Fire Within.
O filme é estupendo. Louis Malle é o maior cineasta da “condição humana” em situação limite. É o filme ícone da geração que foi
jovem nos anos 60. Como amávamos Maurice Ronet, por causa de Feu Follet e Plein Soleil!!! Sua crítica à personalidade de Alain decorre, creio, do fato de não haver
assistido esse filme inesquecível quando
jovem. Mudemos o foco e filosofemos um pouco: Hoje, maduros, sabemos como saborear a vida, superar seus desafios, em suma, vivê-la dentro de nossos limites e adequar nossas
aspirações a esses limites. Mas, aos 18, 20
anos, a ansiedade e, especialmente, a angústia existencial infeccionam nossa vida.
É o momento em que começamos a nos interrogar
sobre o atroz da condição humana a que estamos confinados, e as respostas de Camus,
Sartre, Kierkegaard, etc., nos trazem
mais aflição… Para romper essa via pequeno burguesa, sem maiores perspectivas, que
nos traçaram, há a bebida, a droga, ou um grande amor malogrado… É um sofrimento mais lancinante do que o de Werther, por se
traduzir numa angústia sufocante e sem saída,
pois nada vale a pena. Os que superamos isso,
somos os felizes, que sabemos aproveitar a vida, não padecemos de problemas financeiros, e a vida está asseada e posta. Enfim, demos certo…Mas, quantos não ficaram pelo caminho? E, inconfessadamente,
avaliamos que, por um fio, nós também não soçobramos. Voltando ao filme, o tédio que
Alain experimenta não é aquele de bocejos,
mas um tédio dolorido, insuportavelmente angustiante. É depressão em seu estágio terminal, e assim seu fim é inexorável. E, por transmitir esse tédio patológico,
exacerbado, que santificava nossa angústia,
Feu Follet foi o filme símbolo e mais amado
de nossa geração.
Maravilha de comentário, caríssimo Mário! É um imenso prazer ter seus comentários no meu site; eles o engrandecem!
Um abraço.
Sérgio
de ler este texto, me deu vontade de ver o filme.
Sérgio, vc já fez o texto do filme Acossado do Godard? Vi este filme recentemente..
É um dos filmes que eu, hoje como 72 anos, dele ainda guardo de memória o título e algumas cenas. É puro “cinema arte”. Da cena do suicídio ficou-me a impressão, sentimento da época e idade em que vi o filme, de que eu, no lugar do personagem, não teria razão para me sucidar.