Que Mais Posso Querer / Cosa Voglio di Più

Nota: ★★★½

Anotação em 2011: Uma das muitas qualidades deste ótimo filme do italiano Silvio Soldini é a escolha dos atores, o casting. Todo o elenco está excelente, as interpretações são extraordinárias. Mas, além de serem ótimos, os atores, em especial os três protagonistas, têm uma outra característica em comum: não são especialmente belos.

Pode parecer um detalhe irrelevante. Não é. Foi, me parece, uma das grandes sacadas do diretor e de sua equipe. Que Mais Posso Querer/Cosa Voglio di Più (que beleza de título, meu Deus!) é um filme sobre pessoas comuns, absolutamente comuns, sem nada de especial, de marcante, de diferente da imensa maioria dos mortais. São pessoas comuns, vivendo essa coisa tão comum que é de repente tropeçar com um novo amor, e viver a dura, amarga experiência da infidelidade conjugal. Não teria qualquer sentido colocar atrizes e atores de beleza incomum para interpretar aquelas pessoas simples.

E aí me lembrei de uma frase que Claude Lelouch colocou na boca do personagem interpretado pelo belo Jean-Claude Brialy em Robert e Robert, de 1978, um filme sobre dois homens comuns, os Robert do título. Brialy interpreta o dono de uma agência de encontros de solitários à procura de um namorado/a, e já na seqüência de abertura ele diz: “As pessoas que vêm aqui esperam encontrar Alain Delon ou Catherine Deneuve. Só vêem os defeitos dos outros.”

Não há muitos Delons ou Deneuves na vida real das pessoas comuns.

Anna não é bela como Deneuve, nem encontrou na vida um Delon

Anna, a protagonista (maravilhosamente interpretada por uma atriz de que eu não lembrava, Alba Rohrwacher), não encontrou um Alain Delon na vida. Teve muita sorte, e encontrou Alessio (Giuseppe Battiston, outra excelente interpretação), uma ótima, maravilhosa pessoa, grande coração, uma pessoa tranqüila, sem grilos. Alessio, pequeno comerciante, dono de uma loja, é um homem simples, que ama Anna com essa espécie rara de amor, o amor em paz. Tem seus amigos, gosta de estar com eles; é um sujeito jeitoso, habilidoso, está sempre trabalhando em alguma coisa para melhorar o conforto do apartamento de classe média em que vivem; está sempre pronto a ajudar quem precise de alguma coisa – como, por exemplo, conforme vemos na seqüência inicial, levantar de madrugada para levar no seu carro a cunhada, a irmã mais jovem de Anna, para o hospital, no momento em que ela começou a sentir as dores do parto. Alessio não reclama de nada, é dessas pessoas bem humoradas, sempre bem dispostas.

Tem um detalhe: Alessio não é um Alain Delon, um deus Apolo. Não é feio, um horror, mas é bem gordão.

Não que Anna seja uma Catherine Deneuve, uma deusa Afrodite. Ela, ao contrário do marido, é um tipo mignonzinho, magrinha; é loura, e seus olhos são claros, lindos – mas ela não chega a ser propriamente bela. Tem um rosto comum, de gente comum.

Anna trabalha numa pequena empresa de seguros. Ela e Alessio têm a vida confortável, embora sem qualquer luxo – não passam por privações materiais, são classe média, normal. E teve a sorte na vida de encontrar um homem bom, que a ama em paz e a trata muito bem.

Um belo título que carrega todo o peso do drama de Anna

Cosa voglio di più? O que quero mais? E os exibidores brasileiros, que tantas vezes cometem crimes ao criar o título em português, desta vez acertaram em cheio, tiveram a sensibilidade de expressar exatamente o mesmo que o título original – Que mais posso querer?

Uma vez o contista Luiz Vilela comentou, na casa de Vivina e Gilberto, que até alguns títulos das músicas da dupla Simon & Garfunkel (a dupla ainda existia, quando ele fez o comentário) são um poema em si – e citou “Flowers never bend with the rainfall”, que de fato é um poema.

O título Cosa voglio di più é um acerto desse tipo. O título carrega todo o peso do drama que o belo filme vai nos mostrar.

A gente tem disso, essa inquietação, essa incapacidade de ficar bem

O diretor Soldini e esses dois excelentes atores, Alba Rohrwacher e Giuseppe Battiston (na foto acima), vão nos mostrar que Anna não está completamente feliz, tranqüila, realizada, com a vida simples que leva ao lado do homem bom que a ama e, ao contrário dela, está satisfeito, não tem grandes desejos, ambições, sonhos.

A gente tem disso, essa inquietação, essa incapacidade de ficar bem, de viver tranquilamente, de aproveitar bem o que tem, de desfrutar bem o fruto da vida que foi dada sem que se pedisse. Dotaram o bicho homem com essa característica, a inquietude – uns mais, outros menos, é verdade.

Alessio está bem. Anna poderia perfeitamente estar – mas não está.

A família, excitada com a chegada do sobrinho de Anna, menciona a questão – e do lado de Alessio e Anna, nada? Não há cobrança muito explícita, mas menciona-se a coisa. Todas as famílias são assim. Alessio e Anna conversam um pouco sobre o tema filhos; Alessio ainda não tinha parado para pensar no assunto, é cuca fresca, para ele está tudo bem, mas, se o assunto vem à baila, por que não? Ele topa.

Anna não diz claramente, mas percebemos que ela não quer ter filho; no mínimo, não quer ainda, ou tem dúvidas.

E aí surge Domenico (Pierfrancesco Favino, outro bom ator, na foto ao lado).

Domenico também não é nenhum Alain Delon, mas é quase um Javier Bardem; não é gordão como Alessio; é um tipo grandalhão, moreno, forte. Muitas mulheres gostam de tipos assim.

Anna o conhece por acaso, ele trabalhando como garçom de um buffet em uma festinha familiar. Encontra-o mais uma vez, também um tanto por acaso. Na terceira vez que se vêem, Anna se joga para cima dele.

Estamos aí bem no início do filme, com uns 15, no máximo 20 minutos. Veremos depois que não se tratará de um triângulo amoroso, mas de um quadrado, coisa igualmente comum: Domenico é casado, tem dois filhinhos.

O filme faz lembrar dois outros que tratam do mesmo tema, no mesmo meio

Para mim, foi impossível não lembrar do inesquecível As Duas Faces da Felicidade/Le Bonheur, a maravilha de filme em que Agnès Varda conta a história de um operário simples, boa gente, feliz no seu casamento, que por acaso topa na vida com uma bela mulher, e acredita, ousa acreditar que pode ter a felicidade em dobro.

A lembrança de Le Bonheur vem não propriamente pelo estilo do filme, mas pelo tema, a situação da infidelidade conjugal em um meio de pessoas simples, humildes, comuns, normais, não intelectualizadas, não de grande cultura.

Nisso tudo, Cosa Voglio di Più lembra também um filme francês bem recente, Mademoiselle Chambon, de Stéphane Brizé, de 2009. Nele, um outro trabalhador simples, um pedreiro, interpretado por Vincent Lindon, bem casado, feliz, tranqüilo, de repente fica conhecendo a Mademoiselle Chambon do título, a professora de seu filho, interpretada por Sandrine Kiberlain – outra ótima atriz (e ótima cantora) que não chega a ser uma Catherine Deneuve, uma deusa Afrodite.

Anna encontra seu tremor de terra – e, quando a terra treme, há imensos estragos

A grande diferença entre este filme de Silvio Soldini e os dois franceses é que, nestes, a entrada da terceira pessoa na vida do casal acontece absolutamente por acaso; os dois trabalhadores franceses estavam felizes, tranqüilos, distraídos, não estavam à procura de alguma coisa, um tremor de terra (já que me lembrei do contista Luiz Vilela), enquanto Anna estava inquieta.

Talvez nem a própria Anna tivesse consciência disso, porque sua vida era boa, confortável, mas ela estava, sim, à procura de um tremor de terra.

Quem procura acha e não perde tempo, dizia um dos muitos ditados que minha mãe costumava recitar. Anna encontra seu tremor de terra – e todos sabemos que, quando a terra treme, há imensos estragos, tragédias.

Muitos close-ups, muita câmara de mão, muitas pausas entre as seqüências

Silvio Soldini, autor de Pão e Tulipas, um filme que teve grande sucesso popular e ótima receptividade da crítica, usou três elementos, três pequenos detalhes, para contar essa história tão simples, comum, e por isso mesmo importante.

Os dois primeiros elementos vêm juntos: a câmara de mão e o close-up. Não há um uso exagerado da câmara de mão, não é daqueles que deixam o espectador tonto, como alguns dos filmes dinamarqueses do Dogma. Mas há uma insistência forte na câmara que persegue os personagens enquanto eles andam pelas suas casas, e nos close-ups, longos close-ups dos rostos dos protagonistas. É uma câmara uma tanto indiscreta, que penetra na intimidade dos personagens. Nas cenas de sexo, por exemplo, a câmara de Soldini não tem pudores: fica ali, parada, mostrando os amantes ao longo do ato sexual. Não que seja uma câmara que busque satisfazer o espectador voyeur, que deseja ver quasepornografia – de forma alguma, não é isso. Mas ela fica lá, sem cortes – até porque é necessário mostrar que a relação entre Anna e Domenico se faz a partir do sexo – o afeto vem depois, um tanto a fórceps, é verdade.

O segundo elemento que me chamou a atenção pode perfeitamente passar desapercebido. É um detalhinho. É o uso do fade out e fade in como que para dividir a história em capítulos. Ao final de uma seqüência de acontecimentos, uma seqüência de tomadas de um determinado dia na vida dos personagens, há o fade out, a tela fica toda negra por um segundo, dois, antes de haver o fade in, a volta de uma nova tomada. Esse pequeno recurso de criar como que capítulos, de fazer uma breve pausa entre uma seqüência e outra, muitas vezes não é usada. Soldini sabe utilizá-lo muito bem.

É um belo filme. Triste, triste. As interpretações são poderosas, magníficas. Aqueles personagens tão simples, gente tão comum, tão prosaica, sem nada de especial, permanecem na memória do espectador.

E essa atriz que eu não conhecia, com esse impronunciável nome tedesco, Alba Rohrwacher, me impressionou, me cativou. Alba Rohrwacher é uma toscana, filha de um alemão, o que explica o sobrenome complicado; nasceu em 1979, tem 32 filmes no currículo, dez prêmios e outras oito indicações. Foi só no momento de postar esta anotação que vi que este site já tem um filme com ela, Meu Irmão é Filho Único; lá ela faz um papel menor, e por isso não guardei nem seu rosto nem seu nome. Mas, daqui pra frente, encontrando filme com ela, vou nessa, assim como vou aos demais filmes de Silvio Soldini.

Que Mais Posso Querer/Cosa Voglio di Più

De Silvio Soldini, Itália-Suíça, 2010

Com Alba Rohrwacher (Anna), Pierfrancesco Favino (Domenico), Giuseppe Battiston (Alessio), Teresa Saponangelo (Miriam), Fabio Troiano (Bruno), Monica Nappo (Chicca), Tatiana Lepore (Bianca), Gisella Burinato (Tia Ines)

Roteiro Silvio Soldini, Doriana Leondeff e Angelo Carbone

Baseado em história de Silvio Soldini e Doriana Leondeff

Fotografia Ramiro Civita

Música Giovanni Venosta

Produção Lumière & Company, Radiotelevisione Svizzera Italiana (RTSI), Warner Bros. Pictures Company, Vega Film

Cor, 126 min

***1/2

Título em inglês: Come Undone. Na França: Ce que je veux de plus. Em Portugal: Que Mais Quero Eu

5 Comentários para “Que Mais Posso Querer / Cosa Voglio di Più”

  1. Gostei bastante do filme.
    Isso que vc falou de os atores não serem bonitos foi uma ótima observação. O Domenico não é propriamente bonito, mas é mesmo um tipo interessante. O único personagem bonito-bonito, na minha opinião, é o Bruno, amigo deles.

    Eu não consegui ver essa inquietação que vc viu na Anna, mas talvez ela estivesse mesmo “procurando”, pois as iniciativas partiram dela. Também não descarto o fato de ela ter se sentido atraída fisicamente pelo Domenico, pois como vc bem disse o marido dela é “gordão”, um contraste e tanto com um cara que apesar de já ter passado dos 40 é saradão, alto e moreno. “Muitas mulheres gostam de tipos assim.”
    Fiquei com dó do Alessio, não há como não ficar.

    E daí vêm aquelas pequenas coisas que acontecem em um caso assim, como o cara gastar 50 euros em uma hora no motel, enquanto a vacina do filho dele custou mais que isso, num momento em que a família anda com a grana curta.
    Não sei se foi intencional os roteiristas colocarem o Domenico com um filho bebê, que embora já grandinho ainda demanda muitos cuidados e atenção, sobrecarregando bastante a mulher/mãe. E embora a infidelidade seja sempre ruim, passar por uma traição nessa fase, com um filho ainda bebê, deve ser das mais doloridas.
    Pra mim só não ficou claro como era a relação dele com a mulher, antes do caso.

    Achei as cenas de sexo bem feitas; geralmente o cinema europeu faz as cenas de sexo de forma meio tosca, diferentemente do modo como os americanos costumam fazer: deixando a câmera longe, floreando e colocando musiquinha. Acho que o diretor conseguiu reproduzir quase fielmente a atração fatal que acomete os casais num início de namoro, caso, relação: o “desejo pegando fogo”, como diz a música, a pressa etc, etc.
    Só acho que o caso deles era apenas atração mesmo. Eles não tinham algo muito além disso.

    E como deve ser difícil essa vida de ter um(a) amante! São muitas mentiras e desculpas esfarrapadas, dá agonia só de ver.

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