Anotação em 2011: Serpentes de Luxo/Baby Face, feito em 1933 por um diretor não muito conhecido, Alfred E. Green, é um filme surpreendente, espantoso, ousado, que não parece de seu tempo.
Em plena vigência do Código Hays, o rígido código de autocensura aprovado pelos grandes estúdios de Hollywood, o filme conta a história de uma mulher ambiciosa, uma alpinista social sem qualquer tipo de vergonha na cara, que sobe na vida fazendo sexo com os chefes.
Pode?
Bem, teoricamente não deveria poder – era contra as determinações do código. Mas pôde. O filme foi feito, exibido, e continua aí, felizmente – está na programação do TCM, onde por pura sorte o vi, durante uma zapeada, alta madrugada, hora de dormir passada havia muito.
Mas como resistir a um filme de 1933 com Barbara Stanwyck? E, depois de ver duas cenas, e perceber do que trata a história, como abandonar o filme?
Já transcrevi trechos do Código Hays em anotações sobre outros filmes, mas é impossível falar deste Serpentes de Luxo/Baby Face sem transcrevê-los de novo. Está lá, no item Princípios Gerais:
“Nenhum filme será produzido que possa fazer abaixar os princípios morais daqueles que irão vê-lo. Desta forma, a simpatia da audiência jamais deve ser jogada para o lado do crime, do fazer errado, mal ou pecado. Princípios corretos de vida, sujeitos apenas às exigências do drama e do entretenimento, devem ser apresentados. A lei, natural ou humana, não será ridicularizada, nem simpatia pela sua violação será criada.”
Mais:
“O uso de bebidas alcoólicas na vida americana, quando não exigido pela trama ou pela caracterização apropriada, não será mostrado.”
E mais ainda:
“A santidade da instituição do casamento e do lar será preservada. (…) O adultério, às vezes material necessário para a trama, não deve ser tratado explicitamente, ou justificado, ou apresentado de forma atraente.”
Dando para um, para outro, para outro – e subindo na vida
Lily Powers – o papel de Barbra Stanwyck –, jovem de família muito pobre, depois de duras experiências num speakeasy, um daqueles bares clandestinos da época da Lei Seca, decide fazer de tudo para usufruir as benesses do dinheiro.
Era difícil encontrar trabalho – no início dos anos 1930, os Estados Unidos estavam mergulhados na Grande Depressão, até hoje a época mais negra da história do capitalismo. Havia filas de pessoas pedindo ao menos uma oportunidade de apresentar uma solicitação de emprego. Lily Powers apresenta-se na sede de um grande banco, identifica o funcionário que faz o filtro dos desempregados que se apresentam ali à procura de uma vaga, e se oferece a ele. Ganha a chance da primeira entrevista, e um emprego modesto num setor sem importância do banco.
Dá para o primeiro chefe, e sobe de andar, para uma posição mais alta, um salário melhor. E vai repetindo a ousadia, e vai subindo mais andares e melhores posições dentro do banco.
O diretor Alfred E. Green mostra diversas vezes um grande prédio de Manhattan, com o nome dos diversos departamentos do banco marcados nos andares. Vemos a escalada de Lily Powers graficamente, subindo os andares do arranha-céu.
Claro, não há explicitude explícita, como haveria se a história fosse contada pelo cinemão americano a partir dos anos 1980. Não se mostra Lily Powers levantando a saia e baixando a calcinha para cada chefe – mas não se procura esconder do que se está tratando. Para conquistar um dos chefes, já no alto da escala, da escada, um diretor – que aliás está noivo da filha pura, virginal, do presidente do banco –, primeiro Lily Powers se insinua, ousada, sensualidade aberta, clara, depois o leva para dentro do banheiro das mulheres, logo após o fim do expediente.
Uau!
É muito, mas muito ousado.
Vivia-se, repito, sob a Lei Seca, a Prohibition – como no Estado de São Paulo da lei fascista de José Serra, em que é proibido fumar, não se podia beber, nos Estados Unidos da Depressão. Pois mostram-se os chefes para quem Lily Powers dá bebendo, numa boa – e mostra-se que Lily Powers é melhor de copo do que os homens para quem dá.
E ela não se envergonha de usar o corpo como o corrimão da vida, o elevador do alpinismo social. Nada. Sorri um sorriso de vitoriosa, de quem se orgulha profundamente de seu talento.
Uma atriz de imenso talento, sensualíssima, que não recusava papéis ousados
Era o papel perfeito para Barbara Stanwyck. Atriz brilhante, sensualíssima, não recusava papéis ousados. Nascida em 1907, no Brooklyn, começou no cinema em 1927; naquele mesmo ano de 1933, faria outro papel que seguramente, na época, deve ter parecido escandaloso, em O Última Chá do General Yen, o de Megan Davis, uma jovem americana noiva de um missionário religioso na China, que acaba se apaixonando por um senhor de guerra chinês, um assassino cruel, que a mantém num cativeiro de ouro. Nesse filme que não parece nada com os demais feitos pelo gênio de Frank Capra, Barbara Stanwyck aparece em roupas íntimas, com as coxas de fora, e tem um caso de amor – chegado a um sadomasoquismo – fora do casamento. Um caso de amor fora do casamento que além de tudo é inter-racial, algo que Hollywood só viria a admitir muitas, muitas décadas mais tarde.
Em Serpentes de Luxo, La Stanwyck não chega a mostrar as coxas – mas mostra os joelhos, o iniciozinho das coxas, para o espectador e para o presidente do banco, que fica, imediata e fatalmente, deslumbrado com o espetáculo.
Onze anos depois de Serpentes de Luxo, as pernas – um dos calcanhares adornado por uma tornozeleira -, os joelhos e as coxas de La Stanwyck, mostrados antes mesmo de seu rosto, provocariam a paixão fatal do vendedor de seguros Walter Neff, interpretado por Fred MacMurray em Pacto de Sangue/Double Indemnity, de Billy Wilder, um dos mais perfeitos, maravilhosos filmes noir da história.
Uma das melhores atrizes de Hollywood. Sem beleza absoluta e sem Oscar
Uma das coisas maravilhosas de Barbara Stanwyck é que ela não chega a ser assim propriamente uma deusa Afrodite, uma beleza perfeita, acachapante. Havia na década de 30 muitas atrizes tão ou mais belas que ela, e haveria ainda mais nas décadas seguintes. Mas, se não tinha a beleza deslumbrante de uma Ava Gardner, uma Rita Hayworth, uma Liz Taylor, uma Kim Novak, tinha, talvez mais que todas essas e muitas outras estrelas da época de ouro do cinema americano, um talento interpretativo imenso, e uma intensa sensualidade.
(Particularmente, acho que Barbara Stanwyck ficaria ainda mais bela com o passar dos anos. Está, na minha opinião, mais bela nos filmes dos anos 40 do que está aqui, e também em O Último Chá do General Yen.)
Ao contrário de Bette Davis, Katharine Hepburn, Joan Fontaine, Olivia de Havilland, suas contemporâneas nos anos 1940, La Stanwyck jamais levou para casa aquela estatueta dourada que conseguiu se transformar no prêmio mais cobiçado do cinema. Ganhou 17 prêmios na carreira extensa, que durou até 1986 (morreria em 1990, aos 83 anos, portanto), e recebeu quatro indicações ao Oscar – por Stella Dallas, de 1938, Bola de Fogo, de 1941, Pacto de Sangue, de 1944, e Uma Vida por um Fio, de 1948, mas não levou nenhum deles. Ganharia um prêmio de consolação, um Oscar honorário, em 1982, pela “criatividade superlativa e contribuição única à arte de interpretação no cinema”.
Uma rara aparição de John Wayne de terno e gravata em Manhattan
Quase todos os atores que aparecem no filme, vários deles no papel dos homens que comem a protagonista e a ajudam no seu alpinismo irrefreável, não ficaram para a história: George Brent, Donald Cook, Arthur Hohl, Henry Kolker, Dougas Dumbrille.
Um deles, no entanto, nascido no mesmo ano do de Barbara Stanwyck, 1907, e que havia estreado na mesma época que ela, final dos anos 1920, já tinha, em 1933, aparecido em 18 filmes. Ainda não era famoso – faz um papel pequeno, um dos chefes da alpinista social –, mas, a partir de 1939, se transformaria em um dos maiores astros do cinema de todos os tempos. Chamava-se Marion Michael Morrison, e, no cinema, usava o nome de John Wayne.
Uma das características interessantes deste filme fascinante é ver o jovem John Wayne de terno e gravata, trabalhando num banco.
Até quase o finalzinho, uma mulher feliz com sua falta de moral
Mesmo com toda a ousadia dos produtores – a Warner Bros. –, do diretor, da atriz, não seria possível, em 1933, que tudo continuasse dando tão certo para a mulher que trepa para subir na vida, e então, nos últimos minutos do filme, tudo muda.
Mas, até quase bem perto do final, o que se tem é um filme ousado, que mostra uma personagem absolutamente amoral, e que vive absolutamente feliz com sua falta de moral. Afinal, numa sociedade em que o valor maior é juntar dinheiro, qual é o problema com a falta de moral?
O filme e o Código
Antes de ir aos alfarrábios para ver o que dizem a respeito deste filme de que nunca tinha ouvido falar, gostaria de registrar o seguinte: depois de ter visto tantos filmes que desafiam abertamente os padrões rígidos do Código Hays, começo a acreditar que ele, afinal de contas, não era tão rígido assim.
Pauline Kael não fala do filme no seu 5001 Nights at the Movies original, que tem muito mais títulos do que a edição brasileira, da Companhia das Letras, com seleção e tradução de Sérgio Augusto. A única resenha que consta do excelente Cinemania ’97 é a de Leonard Maltin; ele dá 2.5 estrelas em 4 para o filme, e traz uma informação que me deixa um pouco confuso:
“Obra pré-Production Code tem Stanwyck servindo num bar ilegal, e depois literalmente dormindo seu caminho andar a andar até o alto de um prédio de escritório de Nova York. Grande primeira metade dá lugar a uma conclusão tolamente moralista.”
O que me deixa um tanto confuso é o seguinte: o Código de Produção, ou Código Hays, passou a ser adotado para valer em 1933. O mesmo ano do filme. Será que o filme estreou no começo do ano, antes que a autocensura ficasse mais rígida? Pode ser. Deve ser isso.
Na internet, há menções ao fato de que o filme teve várias sequências cortadas, extirpadas da versão que chegou aos cinemas e é a que se pode ver hoje. E também se diz que o filme foi um dos responsáveis pelo aperto que haveria na censura a partir de então. (Volto ao tema em seguida.)
A história foi criada por Darryl F. Zanuck, chefão de estúdio
Vixe! Peguei o filme começado, não vi os créditos iniciais, e só agora, nesta altura da anotação, vejo que o autor da história do filme é Darryl F. Zanuck, um dos mais poderosos produtores que Hollywood já teve. Zanuck (1902-1979) já era um chefão importante de estúdio, em 1933. Tinha começado na Warner Bros. como argumentista e roteirista, no início dos anos 1920. Em 1929 já era chefe de produção do estúdio, e foi ele que supervisionou, na Warner, a passagem do cinema mudo para o falado – e foi nessa época que a Warner se transformou num grande estúdio, graças, em parte, aos filmes de gângster, musicais e amargos dramas sociais produzidos por ele.
Naquele mesmo ano de 1933 em que este filme foi lançado, Zanuck criou, com Joseph Schenck, a 20th Century Pictures, que no ano seguinte se fundiria com a Fox, criando a 20th Century Fox, que ele dirigiria até 1971.
Um ano tumultuado pela crise econômica e pelo debate sobre a censura
O ótimo livro That Was Hollywood – The 1930s, que trata bastante da censura, não traz uma única linha sobre este Baby Face. Mas mostra que 1933 foi um ano bastante tumultuado para a indústria americana de cinema. A Grande Depressão fazia sérios estragos nas finanças dos estúdios – que, na época, tinham suas próprias cadeias de salas de exibição. Os preços dos ingressos foram cortados, na tentativa de não perder público; chefes de estúdio, com o apoio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, sugeriram cortes nos salários dos profissionais; foi em função disso que Darryl F. Zanuck se demitiu da Warner, e também por causa da questão salarial que centenas de atores e roteiristas se desligaram da Academia (que até então representava os interesses de todos, patrões e empregados) e foram para os recém-criados Screen Actors Guild e Screen Writers Guild, os sindicados dos atores e dos roteiristas. (O Screen Directors Guild, o sindicato dos atores, seria criado em 1936.)
Sobre a questão da censura naquele ano de 1933, diz o livro:
“Mae West, que era a grande esperança da Paramount em 1933 com seus grandes sucessos She Done Him Wrong e I’m no Angel, fez ferver o debate sobre a censura com sua vulgaridade desavergonhada que fazia mesmo a mais inócua de suas falas soar picante. A crescente popularidade de Jean Harlow também inflamava os puritanos. (…) A Igreja Católica estava particularmente enfurecida com o fracasso do Escritório Hays em regular o conteúdo dos filmes, e em novembro os bispos da América, em sua reunião anual, iniciaram a organização da Legião de Decência, um grupo de pressão para lutar pela purificação do cinema.”
Os censores pediram cortes e modificações, e a Warner fez o que mandaram
No IMDb, vejo que o filme foi banido em algumas cidades americanas por causa do conteúdo sexual.
O Board of Censors do Estado de Nova York examinou o filme e o vetou, pedindo diversos cortes e modificações; a Warner atendeu às exigências dos censores antes da estréia, que ocorreu em julho de 1933.
Em uma das cenas cortadas, a personagem de Barbara Stanwyck é assediada diversas vezes por um sujeito no bar ilegal que pertence a seu pai. Depois de várias tentativas de avanço do sujeito, ela o agride com uma garrafada na cabeça, e ele sai dizendo que vai denunciar a existência do bar para a polícia. O pai vai tirar satisfações com ela, e ela replica, dura, que ele transformou a vida dela num inferno cercando-a de homens desde que tinha 14 anos.
Segundo o IMDb, uma cópia do filme antes desses cortes e mudanças exigidos pela censura foi localizada na Biblioteca do Congresso Nacional. Essa versão teve sua primeira apresentação pública no Festival de Cinema de Londres, em novembro de 2004, mais de 70 anos depois que o filme foi produzido.
A versão exibida agora no TCM, no entanto, é a censurada – me parece. Não deu para ter certeza.
Por mais que a gente ache que conhece um pouco, não conhece é nada
Então é isso. Baby Face é um filme fascinante por diversos motivos: pela ousadia, pela coragem, pelo detalhe de ter um John Wayne de terno e gravata seis anos antes de No Tempo das Diligências, pela sempre admirável presença na tela de Barbara Stanwyck – e também, at last but not at least, por ser pouco conhecido, por nos lembrar que, por mais que achemos que conhecemos um pouco de cinema, sempre há muito mais coisa a ser descoberta.
Para ficar num único exemplo: esse Alfred E. Green, cujo nome não me diz nada, dirigiu 114 filmes e ou episódios de TV, entre 1917 e 1958. Por essas e outras é que fico roxo de vergonha quando alguém diz que “entendo de cinema”.
Não entendo de coisa nenhuma. Só sei que nada sei – e cada vez sei menos.
Serpentes de Luxo/Baby Face
De Alfred E. Green, EUA, 1933
Com Barbara Stanwyck (Lily Powers, apelidada de Baby Face), George Brent (Trenholm), Donald Cook (Stevens), Arthur Hohl (Sipple), John Wayne (Jimmy McCoy), Henry Kolker (Mr. Carter), Margaret Lindsay (Ann Carter)
Roteiro Gene Markey e Kathryn Scola
Baseado em história de Darryl F. Zanuck
Fotografia James Van Trees
Produção Warner Bros.
P&B, 76 min
***
Título em Portugal: A Mulher que nos Perde
Assisti esse filme somente tendo Barbara Stanwick como referência e, como você, fiquei impressionado. Que audacioso! O Green fez também alguns dramas muito interessantes com a Bette Davis.
Belo texto. Parabéns.
Cumprimentos cinéfilos
O Falcão Maltês
O famigerado Código Hayes entrou em vigor em 1934, por isso deu tempo de BABY FACE entrar em cartaz no final de 1933 e “enlouquecer a plateia”.
Outro grande filme, lançado um ano antes, foi “A Mulher Parisiense dos Cabelos de Fogo” / Red Headed Woman, dirigido por Jack Conway e estrelado por Jean Harlow, filme este com história muito parecida.